quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

A Teoria da Constituição Como Árvore Viva de Wil Waluchow


Wilfrid J. Waluchow é um professor da MacMaster University, no Canadá. Último orientando de doutorado de Herbert Hart, é atualmente um dos bastiões da teoria que, por sua causa, passou a ser conhecida como positivismo jurídico inclusivo, defendida em uma obra sua homônima (1994), até o momento disponível apena em inglês. Esta postagem, no entanto, volta-se sobre uma outra parte da obra de Waluchow, situada no campo da teoria constitucional.

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Waluchow
Em 2006, face um celeuma levantado tanto no campo acadêmico quanto leigo em relação à atuação dos juízes em casos constitucionais a década de 1980 (quando foi promulgada a Carta Canadense de Direitos e Liberdades), Waluchow publicou um livro chamado “A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree”, em que defende uma forma alternativa de se compreender os textos constitucionais e, a partir disso, deriva argumentos favoráveis ao instituto do controle de constitucionalidade das leis (judicial review). Elegendo Waldron como seu principal oponente, Waluchow pretende nos convencer que uma sociedade com uma carta de direitos e um sistema de jurisdição constitucional relativo a ela são não apenas compatíveis com o regime democrático, como a forma mais desejável de democracia nas atuais circunstâncias.
A ideia central a ser sustentada no decorrer de todo o livro é que os debates em relação aos aspectos positivos e negativos em relação às constituições e os respectivos malefícios ou benefícios que elas trazem foram todos eles travados sobre os mesmos pressupostos equivocados. Tanto aqueles que viram nas constituições e na jurisdição constitucional elementos importantes e desejáveis (como Rawls, Dworkin e Freeman) quanto aqueles que os viram como nefastos e repudiáveis (como Waldron) tinham em mente uma certa compreensão a respeito do que é uma constituição e que tipo de papel ela cumpre.
De fato, os que se colocam de um lado e de outro-que Waluchow nomeia, respectivamente, de defensores (advocates) e críticos (critics) sempre formularam seus argumentos sobre a concepção de que a constituição ou os documentos constitucionais são o estabelecimento de pontos de acordo. Quer dizer, a constituição é aquele documento cujo conteúdo fixa determinações que precisam ser levadas em conta e tomadas como pressupostas por todo o processo político a ser realizado daí por diante, como se ela fosse uma espécie de manual das regras do jogo, estabelecendo o que é permitido e o que não é, quais direitos fundamentais os indivíduos têm e quais não, quais são as liberdades básicas que todos possuem, que tipo de posturas são inadmissíveis no trato dos cidadãos, etc.
Dessa maneira, os defensores foram aqueles que argumentaram, de uma forma ou de outra, que esse mínimo normativo é indispensável para a saúde política da sociedade e para a convivência harmônica entre pessoas com formas de vida e de pensamento tão distintas entre si, como é o caso da maioria das sociedades contemporâneas. Os críticos, a seu turno, foram aqueles que tentaram mostrar o quão inverossímil é a tentativa de se criar tais pontos fixos e o quão contraditório com a lógica da autodeterminação seria a existência de algo assim. Como os dois grupos partem da premissa de que uma constituição é algo produzido no passado e feito para se manter constante (ainda que eventualmente precise passar por alguma modificação), Waluchow diz que ambas se tratam de “visões fixas” a respeito de constituições.
Ao se inserir nessa discussão por meio da sua obra, o que Waluchow pretende fazer portanto, não é apresentar argumentos que apoiem ou endossem qualquer uma dessas duas, mas sim propor uma terceira via, uma que esteja embasada em uma outra perspectiva sobre as constituições que não seja nenhuma das visões fixas que subjazem ao embate teórico de até então. É justamente essa sua própria visão que recebe o nome de árvore viva.
Assim, diz Waluchow, em vez de concebermos a constituição como um conjunto de pontos fixos de pré-compromisso, que permanecem sempre a mesma coisa uma vez criados, deveríamos concebê-la como uma coleção de conceitos e de noções que se transformam e que evoluem com o passar do tempo, tal como se renovam as folhas e os galhos de uma árvore viva, o que justifica o seu nome.
A ideia de constituição como árvore viva remonta a um famoso caso constitucional canadense, decidido em 1930: o caso Edwards v. A. G. of Canada. Em síntese, trata-se de um processo em que se discutia a possibilidade mulheres conquistarem uma cadeira no parlamento canadense. Mais especificamente, a discussão era sobre se o termo “pessoas qualificadas” (qualified persons) empregado na norma constitucional pertinente, poderia se referir também a mulheres, dado que ao longo da história do Canadá ele havia sido interpretado sempre como uma referência a homens para fins de participação política.
Na ocasião, a Suprema Corte manteve a interpretação de pessoas qualificadas exclusivamente como significando pessoas do sexo masculino. Apenas quando se recorreu ao tribunal superior, o chamado Privy Council (uma corte situada na Inglaterra e que, à época de Edwards, ainda tinha jurisdição sobre o Canadá), que reverteu a decisão e estabeleceu como interpretação vinculante que homens e mulheres teriam direito a ocupar cargos legislativos de forma igual. Como justificativa desse entendimento, um dos juízes responsáveis pelo caso, Lord Sankey, cunhou pela primeira vez o termo “árvore viva” (living tree), para se referir à Constituição.
E como se dá, metaforicamente falando, o crescimento da árvore viva? A resposta a essa pergunta é o motivo pelo qual o livro se chama “A Common Law Theory of Judicial Review”. Ao contrário do que se poderia pensar, sobretudo para quem está acostumado a um sistema de civil law, as transformações na árvore constitucional, na teoria de Waluchow, não são aquelas que ocorrem mediante procedimentos de emendas constitucionais ou reformas de nenhum tipo promovidas pelo legislativo. Antes, é por meio das decisões judicias que os “galhos da árvore” (concepções, ideias, interpretações) vão se renovando e sendo substituídos.
Trata-se de uma tentativa teórica de resolver uma tensão entre dois aspectos do Direito pensados por Hart em suas reflexões sobre textura aberta referidas anteriormente. De um lado, diz Hart, um sistema jurídico precisa ser tal que contenha respostas estáveis para pelo menos boa parte dos casos que surjam para serem resolvidos. No entanto, o mesmo sistema não pode ser excessivamente rígido naquilo que ele determina, porque do contrário seria incapaz de se adaptar às novas questões e demandas que surgem à medida que o tempo passa e a sociedade se transforma.
Nesse sentido, a ideia por trás da figura da living tree é justamente uma concepção que dê conta dessas duas demandas ao mesmo tempo. A constituição, assim entendida, continua a representar limites bem estabelecidos ao exercício do poder estatal. É apenas os conceitos nela contidos estão sujeitos a mudanças graduais. Essas mudanças se operam não por meio de processos legislativos, mas sim por meio da cumulação de diversas decisões judiciais, que aos poucos vão alterando o entendimento que se tinha a respeito daquele determinado conceito. Estabilidade com flexibilidade, segurança sem atravancamento. Diante de um caso constitucional desafiador e diferenciado em relação àqueles com os quais já se está acostumado, o juiz, dadas as circunstâncias do seu tempo e do caso em mão, pode tomar uma decisão que se afaste daquela que tradicionalmente foi tomada, na medida em que isso signifique uma atualização e uma melhor adaptação entre aquilo que a norma constitucional tem a dizer e a situação atual. Uma seguida da outra, decisões dessa natureza fazem com que o conteúdo da constituição passe a ser outro, capaz de acompanhar o estado da sociedade naquele momento.
Ao lidar com a questão de como funcionaria a decisão judicial a partir dessa perspectiva, Waluchow estabelece que ela precisa estar em consonância com a moralidade constitucional daquela sociedade, isto é, com os valores morais abraçados pela comunidade enraizados no Direito Constitucional.  Com isso, ele propõe uma distinção entre opinião moral e compromisso moral. Opinião moral é todo tipo de posicionamento sobre o mérito moral de uma questão. As opiniões morais variam fortemente de pessoa para pessoa, sobretudo em sociedades altamente plurais como as contemporâneas. Compromissos morais, por sua vez, são aqueles tão caros que dificilmente a comunidade estaria disposta a abrir mão.
Aplicando essa mesma ideia ao caso Edwards. Uma vez que a sociedade já admitia que mulheres assumissem empregos, estudassem, fizessem suas próprias escolhas e opinassem publicamente, não haveria mais nenhuma razão pela qual elas deveriam continuar privadas da participação em cargos políticos. Isso seria por si só contraditório com os compromissos morais que a sociedade canadense passou a assumir na medida em que admitiu essas novas formas de emancipação feminina. A conclusão é que a decisão de fato deveria ter sido tomada em favor da causa de Edwards e, tal como ocorreu, reconhece o direito feminino de assumir um cargo político.
Finalmente, uma vez dito tudo isso, Waluchow acredita que o juiz seja o mais adequado para a tarefa de velar pelo crescimento da árvore exatamente porque, pelo fato de não depender de aprovação ou desaprovação popular, o juiz tem a possibilidade de decidir sem se preocupar com o futuro da sua carreira (isto é, sem se preocupar se irá se manter no cargo de juiz ou não). Além disso, por não ser um representante direito da vontade popular e por não ser eleito, o juiz se encontra em uma posição menos suscetível de ser seduzido pelo calor das emoções, geralmente quando se trata de momentos de crise ou celeuma.

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