Wilfrid
J. Waluchow é um professor da MacMaster University, no Canadá. Último
orientando de doutorado de Herbert Hart, é atualmente um dos bastiões da teoria
que, por sua causa, passou a ser conhecida como positivismo jurídico inclusivo,
defendida em uma obra sua homônima (1994), até o momento disponível apena em
inglês. Esta postagem, no entanto, volta-se sobre uma outra parte da obra de
Waluchow, situada no campo da teoria constitucional.
Waluchow
Em
2006, face um celeuma levantado tanto no campo acadêmico quanto leigo em relação à
atuação dos juízes em casos constitucionais a década de 1980 (quando foi promulgada a Carta Canadense de Direitos e Liberdades), Waluchow publicou um livro chamado
“A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree”, em que defende uma
forma alternativa de se compreender os textos constitucionais e, a partir
disso, deriva argumentos favoráveis ao instituto do controle de
constitucionalidade das leis (judicial review). Elegendo Waldron como seu
principal oponente, Waluchow pretende nos convencer que uma sociedade com uma
carta de direitos e um sistema de jurisdição constitucional relativo a ela são
não apenas compatíveis com o regime democrático, como a forma mais desejável de
democracia nas atuais circunstâncias.
A
ideia central a ser sustentada no decorrer de todo o livro é que os debates em
relação aos aspectos positivos e negativos em relação às constituições e os
respectivos malefícios ou benefícios que elas trazem foram todos eles travados
sobre os mesmos pressupostos equivocados. Tanto aqueles que viram nas
constituições e na jurisdição constitucional elementos importantes e desejáveis
(como Rawls, Dworkin e Freeman) quanto aqueles que os viram como nefastos e
repudiáveis (como Waldron) tinham em mente uma certa compreensão a respeito do
que é uma constituição e que tipo de papel ela cumpre.
De
fato, os que se colocam de um lado e de outro-que Waluchow nomeia,
respectivamente, de defensores (advocates) e críticos (critics) sempre
formularam seus argumentos sobre a concepção de que a constituição ou os
documentos constitucionais são o estabelecimento de pontos de acordo. Quer
dizer, a constituição é aquele documento cujo conteúdo fixa determinações que
precisam ser levadas em conta e tomadas como pressupostas por todo o processo
político a ser realizado daí por diante, como se ela fosse uma espécie de
manual das regras do jogo, estabelecendo o que é permitido e o que não é, quais
direitos fundamentais os indivíduos têm e quais não, quais são as liberdades
básicas que todos possuem, que tipo de posturas são inadmissíveis no trato dos cidadãos,
etc.
Dessa
maneira, os defensores foram aqueles que argumentaram, de uma forma ou de
outra, que esse mínimo normativo é indispensável para a saúde política da
sociedade e para a convivência harmônica entre pessoas com formas de vida e de
pensamento tão distintas entre si, como é o caso da maioria das sociedades
contemporâneas. Os críticos, a seu turno, foram aqueles que tentaram mostrar o
quão inverossímil é a tentativa de se criar tais pontos fixos e o quão
contraditório com a lógica da autodeterminação seria a existência de algo
assim. Como os dois grupos partem da premissa de que uma constituição é algo
produzido no passado e feito para se manter constante (ainda que eventualmente
precise passar por alguma modificação), Waluchow diz que ambas se tratam de “visões
fixas” a respeito de constituições.
Ao
se inserir nessa discussão por meio da sua obra, o que Waluchow pretende fazer
portanto, não é apresentar argumentos que apoiem ou endossem qualquer uma
dessas duas, mas sim propor uma terceira via, uma que esteja embasada em uma
outra perspectiva sobre as constituições que não seja nenhuma das visões fixas
que subjazem ao embate teórico de até então. É justamente essa sua própria
visão que recebe o nome de árvore viva.
Assim,
diz Waluchow, em vez de concebermos a constituição como um conjunto de pontos
fixos de pré-compromisso, que permanecem sempre a mesma coisa uma vez criados,
deveríamos concebê-la como uma coleção de conceitos e de noções que se
transformam e que evoluem com o passar do tempo, tal como se renovam as folhas
e os galhos de uma árvore viva, o que justifica o seu nome.
A ideia de constituição como árvore viva
remonta a um famoso caso constitucional canadense, decidido em 1930: o caso
Edwards v. A. G. of Canada. Em síntese, trata-se de um processo em que se
discutia a possibilidade mulheres conquistarem uma cadeira no parlamento
canadense. Mais especificamente, a discussão era sobre se o termo “pessoas
qualificadas” (qualified persons) empregado na norma constitucional pertinente,
poderia se referir também a mulheres, dado que ao longo da história do Canadá
ele havia sido interpretado sempre como uma referência a homens para fins de participação
política.
Na
ocasião, a Suprema Corte manteve a interpretação de pessoas qualificadas
exclusivamente como significando pessoas do sexo masculino. Apenas quando se
recorreu ao tribunal superior, o chamado Privy Council (uma corte situada na
Inglaterra e que, à época de Edwards, ainda tinha jurisdição sobre o Canadá),
que reverteu a decisão e estabeleceu como interpretação vinculante que homens e
mulheres teriam direito a ocupar cargos legislativos de forma igual. Como
justificativa desse entendimento, um dos juízes responsáveis pelo caso, Lord
Sankey, cunhou pela primeira vez o termo “árvore viva” (living tree), para se
referir à Constituição.
E
como se dá, metaforicamente falando, o crescimento da árvore viva? A resposta a
essa pergunta é o motivo pelo qual o livro se chama “A Common Law Theory of Judicial Review”. Ao contrário do que se
poderia pensar, sobretudo para quem está acostumado a um sistema de civil law,
as transformações na árvore constitucional, na teoria de Waluchow, não são
aquelas que ocorrem mediante procedimentos de emendas constitucionais ou
reformas de nenhum tipo promovidas pelo legislativo. Antes, é por meio das
decisões judicias que os “galhos da árvore” (concepções, ideias,
interpretações) vão se renovando e sendo substituídos.
Trata-se
de uma tentativa teórica de resolver uma tensão entre dois aspectos do Direito
pensados por Hart em suas reflexões sobre textura aberta referidas
anteriormente. De um lado, diz Hart, um sistema jurídico precisa ser tal que
contenha respostas estáveis para pelo menos boa parte dos casos que surjam para
serem resolvidos. No entanto, o mesmo sistema não pode ser excessivamente
rígido naquilo que ele determina, porque do contrário seria incapaz de se
adaptar às novas questões e demandas que surgem à medida que o tempo passa e a
sociedade se transforma.
Nesse
sentido, a ideia por trás da figura da living
tree é justamente uma concepção que dê conta dessas duas demandas ao mesmo
tempo. A constituição, assim entendida, continua a representar limites bem
estabelecidos ao exercício do poder estatal. É apenas os conceitos nela
contidos estão sujeitos a mudanças graduais. Essas mudanças se operam não por
meio de processos legislativos, mas sim por meio da cumulação de diversas
decisões judiciais, que aos poucos vão alterando o entendimento que se tinha a
respeito daquele determinado conceito. Estabilidade com flexibilidade, segurança
sem atravancamento. Diante de um caso constitucional desafiador e diferenciado
em relação àqueles com os quais já se está acostumado, o juiz, dadas as
circunstâncias do seu tempo e do caso em mão, pode tomar uma decisão que se
afaste daquela que tradicionalmente foi tomada, na medida em que isso
signifique uma atualização e uma melhor adaptação entre aquilo que a norma
constitucional tem a dizer e a situação atual. Uma seguida da outra, decisões
dessa natureza fazem com que o conteúdo da constituição passe a ser outro,
capaz de acompanhar o estado da sociedade naquele momento.
Ao
lidar com a questão de como funcionaria a decisão judicial a partir dessa
perspectiva, Waluchow estabelece que ela precisa estar em consonância com a
moralidade constitucional daquela sociedade, isto é, com os valores morais
abraçados pela comunidade enraizados no Direito Constitucional. Com isso, ele propõe uma distinção entre
opinião moral e compromisso moral. Opinião moral é todo tipo de posicionamento
sobre o mérito moral de uma questão. As opiniões morais variam fortemente de
pessoa para pessoa, sobretudo em sociedades altamente plurais como as
contemporâneas. Compromissos morais, por sua vez, são aqueles tão caros que
dificilmente a comunidade estaria disposta a abrir mão.
Aplicando
essa mesma ideia ao caso Edwards. Uma vez que a sociedade já admitia que mulheres
assumissem empregos, estudassem, fizessem suas próprias escolhas e opinassem
publicamente, não haveria mais nenhuma razão pela qual elas deveriam continuar
privadas da participação em cargos políticos. Isso seria por si só
contraditório com os compromissos morais que a sociedade canadense passou a
assumir na medida em que admitiu essas novas formas de emancipação feminina. A conclusão
é que a decisão de fato deveria ter sido tomada em favor da causa de Edwards e,
tal como ocorreu, reconhece o direito feminino de assumir um cargo político.
Finalmente,
uma vez dito tudo isso, Waluchow acredita que o juiz seja o mais adequado para
a tarefa de velar pelo crescimento da árvore exatamente porque, pelo fato de
não depender de aprovação ou desaprovação popular, o juiz tem a possibilidade
de decidir sem se preocupar com o futuro da sua carreira (isto é, sem se
preocupar se irá se manter no cargo de juiz ou não). Além disso, por não ser um
representante direito da vontade popular e por não ser eleito, o juiz se
encontra em uma posição menos suscetível de ser seduzido pelo calor das
emoções, geralmente quando se trata de momentos de crise ou celeuma.
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