sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

O Que São Tipos Ideais e Qual sua Importância na Teoria Weberiana


Este texto é um resumo, já colocado em forma texto acadêmico, elaborado por mim estudando minhas disciplinas introdutórias do primeiro semestre do curso de direito, que envolviam algumas noções iniciais de sociologia. Deixo-o aqui para que possa de alguma forma contribuir com quem esteja se ocupando do estudo do mesmo assunto, bem como para que seja devidamente criticado em seus eventuais equívocos.


Basicamente, são dois os problemas que levam Weber a pensar nos chamados tipos ideais. Antes de dizer diretamente o que esses tipos são, parece mais conveniente e mais didático explicar quais são esses dois problemas e como eles estão vinculados à concepção weberiana de ciência.
Como estudioso alemão dedicado que era, Weber não poderia ter deixado de se ocupar das questões do seu tempo. Naquela época, segunda metade do século XIX, uma das principais discussões era exatamente sobre qual seria o melhor método para as ciências sociais[1]. Uma das propostas era de que o melhor método seria justamente aquele que mais aproximasse as essas ciências das ciências da natureza. Seria, portanto, um método baseado na formulação de leis gerais e abstratas, como a lei da gravidade. Weber se opõe terminantemente a esse método. No seu pensar, o diferencial das ciências socias seria o fato de, no âmbito das suas pesquisas, as particularidades terem uma importância muito maior do que nas ciências naturais. Explica-se: quando se trata da química, da biologia ou da física, uma teoria é tanto melhor quanto mais fenômenos for capaz de explicar ao mesmo tempo. Nas ciências sociais, por outro lado, o que se busca não são determinações genéricas e abrangentes, mas sim o conhecimento acerca de aspectos particulares e específicos. Quando o antropólogo se dedica a estudar uma tribo indígena, sua intenção não é extrair conclusões válidas para toda e qualquer tribo, mas sim conseguir delimitar da melhor forma possível qual é o modo de vida, quais são as tradições e quais são os hábitos que se encontram ali.
Assim, diz Weber, ainda que fosse possível fazer sociais estabelecendo relações de causa e efeito entre fatos; ainda que fosse possível formular enunciados do tipo “se uma sociedade passar por uma crise econômica, ela passará por reviravoltas políticas”, isso em nada contribuiria no sentido de explicitar as individualidades e especificidades dos fenômenos sociais. Aparece, então, o primeiro problema: encontrar uma metodologia capaz de exprimir as particularidades.
O segundo problema tem a ver com a linguagem usada. O trabalho de um cientista que lida com indivíduos em sociedade, como o de qualquer cientista, exige objetividade e precisão. No entanto, vários do termos pertencentes ao vocabulário típico desse profissional não têm significados de precisão satisfatória, sobretudo no âmbito da Sociologia, da Ciência Política, da Antropologia e de outras disciplinas afins. Quando se usa o termo capitalismo, por exemplo, aquilo de que se fala é um modo de produção o qual assume características diversas e particulares a depender de onde ele se instale. São tantas e tão variadas as suas formas a ponto de se tornar difícil dizer o que exatamente se está designando quando a palavra é usada. Prova disso é existência de um descordo entre historiadores sobre se o chamado mercantilismo já era propriamente uma manifestação do capitalismo ou apenas uma fase anterior a ele. O mesmo ocorre com o feudalismo, uma vez que se discute se ele existiu ou não em Portugal.
Por outro lado, também não seria possível a um cientista elaborar um conceito que contivesse absolutamente todas as informações possíveis a respeito de um dado objeto. Com efeito, qualquer espécie de produção conceitual implica necessariamente uma generalização em maior ou menor grau. Weber acredita que todo objeto de estudo possui conta sempre com incontáveis aspectos e formas de abordagem diferentes. Seria completamente impossível uma teoria dar conta de todos eles ao mesmo tempo. Sendo assim, ao iniciar suas construções teóricas, o cientista sempre seleciona quais partes do todo, ou seja, quais facetas do objeto, ele levará em consideração, restando excluídas todas as demais. Novamente falando sobre o capitalismo, seria completamente inconcebível um único estudo conseguir discorrer ao mesmo tempo sobre os seus fundamentos econômicos, sobre sua relação com a pobreza, sobre o lugar das mulheres no seu interior, sobre sua relação com o racismo, sobre sua relação com o meio ambiente, sua origem histórica, suas fases de evolução, seu estado atual e muitas outras coisas. Para se estudar tudo isso, várias empreitadas científicas, cada uma com suas finalidades e pressupostos próprios, seriam necessárias.
Ao tratar dessa problemática, Weber propõe como ferramenta metodológica para auxiliar em atividades de análises e estudos sociais os chamados tipos ideias. Um tipo ideal é uma construção racional e mental feita a partir do fenômeno estudo em si, baseada em postos de vista a respeito dele e em seus aspectos recorrentes. Dito de outro modo, um tipo ideal é uma produção imaginária do cientista que reúne características ou manifestações marcantes e mais ou menos universais de uma certa coisa em questão. A utilidade de tal construção não está no fato de ela substituir o objeto real estudado por uma versão abstrata deste, mas sim no fato de o contraste entre as duas coisas produzir observações informativas e esclarecedoras a respeito do real. Nas palavras do próprio autor,
Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou vários pontos de vista, e mediante o encadeamento de grande quan­tidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentua­ dos, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento.
Torna-se impossível encontrar empiricamente na realidade esse quadro, na sua pureza conceituai, pois trata-se de uma utopia. (WEBER, 2003, p.107)


Voltemos agora ao exemplo do capitalismo. A elaboração de um tipo ideal desse modo de produção, se estamos falando do ponto de vista econômico, deveria ser feita reunindo-se e enfatizando-se vários aspectos amplos e gerais do capitalismo que se tornam evidente quando ele se faz presente na realidade. Nesse caso, o tipo ideal, ou seja, o modelo ideal do capitalismo, precisaria conter o fato de os indivíduos visarem ao lucro sempre e na maior medida possível, o fato de haver um intenso e relativamente livre fluxo monetário, o fato de haver relações bilaterais nas quais um contribui com um pagamento fixo (salário) e o outro responde com a venda de sua força de trabalho, etc. Feito isso, o resultado seria um esboço do que o capitalismo geralmente é e de como ele geralmente se apresenta. Ao se contrastar esse tipo ideal com o capitalismo no Brasil, na Índia, na China, na Suécia ou em qualquer lugar, as especificidades de cada um desses “capitalismos” se tornariam muito mais evidentes e, portanto, enriqueceriam a análise feita utilizando esse recurso feito pelo cientista. Além disso, quantos mais os indivíduos correspondessem ao perfil delineado no tipo ideal, mais se poderia prever seus comportamentos e os respectivos desdobramentos no meio social.   
O motivo pelo qual Weber chama o tipo ideal de utopia, como dito por ele mesmo, é o fato de a realidade em si não apresentar nenhum exemplo de algo exatamente igual ao seu tipo ideal. Continuando com nosso exemplo, isso significa dizer que em lugar e em momento nenhum seria possível achar um capitalismo que fosse igual ao tipo ideal criado. Não poderia ser de outra forma, pois o tipo ideal, tendo sido construído pelo ser humano, existe apenas enquanto objeto intelectual e serve apenas como um meio, jamais como um modelo de dever ser ou uma versão melhorada do objeto para cujo estudo foi criado.
Weber afirmou que, na verdade, muitos cientistas sociais já usam a metodologia dos tipos ideais nas suas pesquisas, embora muitas vezes não se deem conta disso. Quando um historiador fornece uma definição sobre o que era o regime escravista no Brasil colonial, o que ele está fazendo além de construir um tipo ideal desse regime? Obviamente, houve diversos escravos cujo modo de vida não era exatamente o mesmo que consta na definição dada. Havia escravos (poucos, é verdade), que gozavam de melhor condição por terem afinidade com seus senhores. Mas a percepção dessas exceções só se torna evidente graças ao contraste e às diferenças que elas apresentam em relação ao tipo ideal.
Ideologias e formas de pensamento religiosas só são compreensíveis graças aos tipos ideias que produzimos sobre elas. Com efeito, se tomarmos o exemplo do cristianismo, é fácil perceber como cada cristão tem uma concepção e uma interpretação pessoal sobre o que essa doutrina significa, seja pela sua vertente, pelo como foi introduzido a ela, pelas leituras que fez a seu respeito, etc. Estritamente falando, portanto, não há um cristianismo, mas sim vários, tão numerosos quanto os seus adeptos. Desse modo, a única forma de transformar o cristianismo em algo que a compreensão possa captar é reunindo seus traços frequentes sob um ou mais de um ponto de vista, criando um tipo ideal do cristianismo. Foi exatamente esse o caminho tomado por Weber ao fazer suas análises sobre o protestantismo em “A Ética protestante e o espírito do capitalismo.”
Por fim, convém dizer que a produção dos tipos ideais é o que está subjacente a todos os conceitos da sociologia weberiana. Os tipos de ação social, de dominação e todas as outras categorias com que Weber tenta compreender a sociedade nada mais são do que tipos ideais. Essa é uma observação relevante justamente porque a falta dela pode levar a grandes equívocos de entendimento a respeito da teoria weberiana. Um deles seria pensar que as descrições dadas por Weber da burocracia, do patrimonialismo e de outras categorias sociológicas são pouco demonstrativas da realidade. Ao se entender que tudo não passa de instrumentos de análise, a compreensão da obra do grande sociólogo alemão se torna muito mais fácil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FREUND, J. Sociologia de Max Weber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
SAINT-PIERRE, H. L. Max Weber: entre a paixão e a razão. 3. ed. Campinas: Editora Unicamp, 2009.
WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: UNB, 1999.                                              

______. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. In Max Weber: sociologia. COHN, G. (org.). 7ª. ed.. São Paulo: Ática, 2003.




[1] Ou ciências da cultura, ou ciências humanas, ou ciências do espírito, que eram os nomenclaturas geralmente usadas na época

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

A Teoria da Constituição Como Árvore Viva de Wil Waluchow


Wilfrid J. Waluchow é um professor da MacMaster University, no Canadá. Último orientando de doutorado de Herbert Hart, é atualmente um dos bastiões da teoria que, por sua causa, passou a ser conhecida como positivismo jurídico inclusivo, defendida em uma obra sua homônima (1994), até o momento disponível apena em inglês. Esta postagem, no entanto, volta-se sobre uma outra parte da obra de Waluchow, situada no campo da teoria constitucional.

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Waluchow
Em 2006, face um celeuma levantado tanto no campo acadêmico quanto leigo em relação à atuação dos juízes em casos constitucionais a década de 1980 (quando foi promulgada a Carta Canadense de Direitos e Liberdades), Waluchow publicou um livro chamado “A Common Law Theory of Judicial Review: The Living Tree”, em que defende uma forma alternativa de se compreender os textos constitucionais e, a partir disso, deriva argumentos favoráveis ao instituto do controle de constitucionalidade das leis (judicial review). Elegendo Waldron como seu principal oponente, Waluchow pretende nos convencer que uma sociedade com uma carta de direitos e um sistema de jurisdição constitucional relativo a ela são não apenas compatíveis com o regime democrático, como a forma mais desejável de democracia nas atuais circunstâncias.
A ideia central a ser sustentada no decorrer de todo o livro é que os debates em relação aos aspectos positivos e negativos em relação às constituições e os respectivos malefícios ou benefícios que elas trazem foram todos eles travados sobre os mesmos pressupostos equivocados. Tanto aqueles que viram nas constituições e na jurisdição constitucional elementos importantes e desejáveis (como Rawls, Dworkin e Freeman) quanto aqueles que os viram como nefastos e repudiáveis (como Waldron) tinham em mente uma certa compreensão a respeito do que é uma constituição e que tipo de papel ela cumpre.
De fato, os que se colocam de um lado e de outro-que Waluchow nomeia, respectivamente, de defensores (advocates) e críticos (critics) sempre formularam seus argumentos sobre a concepção de que a constituição ou os documentos constitucionais são o estabelecimento de pontos de acordo. Quer dizer, a constituição é aquele documento cujo conteúdo fixa determinações que precisam ser levadas em conta e tomadas como pressupostas por todo o processo político a ser realizado daí por diante, como se ela fosse uma espécie de manual das regras do jogo, estabelecendo o que é permitido e o que não é, quais direitos fundamentais os indivíduos têm e quais não, quais são as liberdades básicas que todos possuem, que tipo de posturas são inadmissíveis no trato dos cidadãos, etc.
Dessa maneira, os defensores foram aqueles que argumentaram, de uma forma ou de outra, que esse mínimo normativo é indispensável para a saúde política da sociedade e para a convivência harmônica entre pessoas com formas de vida e de pensamento tão distintas entre si, como é o caso da maioria das sociedades contemporâneas. Os críticos, a seu turno, foram aqueles que tentaram mostrar o quão inverossímil é a tentativa de se criar tais pontos fixos e o quão contraditório com a lógica da autodeterminação seria a existência de algo assim. Como os dois grupos partem da premissa de que uma constituição é algo produzido no passado e feito para se manter constante (ainda que eventualmente precise passar por alguma modificação), Waluchow diz que ambas se tratam de “visões fixas” a respeito de constituições.
Ao se inserir nessa discussão por meio da sua obra, o que Waluchow pretende fazer portanto, não é apresentar argumentos que apoiem ou endossem qualquer uma dessas duas, mas sim propor uma terceira via, uma que esteja embasada em uma outra perspectiva sobre as constituições que não seja nenhuma das visões fixas que subjazem ao embate teórico de até então. É justamente essa sua própria visão que recebe o nome de árvore viva.
Assim, diz Waluchow, em vez de concebermos a constituição como um conjunto de pontos fixos de pré-compromisso, que permanecem sempre a mesma coisa uma vez criados, deveríamos concebê-la como uma coleção de conceitos e de noções que se transformam e que evoluem com o passar do tempo, tal como se renovam as folhas e os galhos de uma árvore viva, o que justifica o seu nome.
A ideia de constituição como árvore viva remonta a um famoso caso constitucional canadense, decidido em 1930: o caso Edwards v. A. G. of Canada. Em síntese, trata-se de um processo em que se discutia a possibilidade mulheres conquistarem uma cadeira no parlamento canadense. Mais especificamente, a discussão era sobre se o termo “pessoas qualificadas” (qualified persons) empregado na norma constitucional pertinente, poderia se referir também a mulheres, dado que ao longo da história do Canadá ele havia sido interpretado sempre como uma referência a homens para fins de participação política.
Na ocasião, a Suprema Corte manteve a interpretação de pessoas qualificadas exclusivamente como significando pessoas do sexo masculino. Apenas quando se recorreu ao tribunal superior, o chamado Privy Council (uma corte situada na Inglaterra e que, à época de Edwards, ainda tinha jurisdição sobre o Canadá), que reverteu a decisão e estabeleceu como interpretação vinculante que homens e mulheres teriam direito a ocupar cargos legislativos de forma igual. Como justificativa desse entendimento, um dos juízes responsáveis pelo caso, Lord Sankey, cunhou pela primeira vez o termo “árvore viva” (living tree), para se referir à Constituição.
E como se dá, metaforicamente falando, o crescimento da árvore viva? A resposta a essa pergunta é o motivo pelo qual o livro se chama “A Common Law Theory of Judicial Review”. Ao contrário do que se poderia pensar, sobretudo para quem está acostumado a um sistema de civil law, as transformações na árvore constitucional, na teoria de Waluchow, não são aquelas que ocorrem mediante procedimentos de emendas constitucionais ou reformas de nenhum tipo promovidas pelo legislativo. Antes, é por meio das decisões judicias que os “galhos da árvore” (concepções, ideias, interpretações) vão se renovando e sendo substituídos.
Trata-se de uma tentativa teórica de resolver uma tensão entre dois aspectos do Direito pensados por Hart em suas reflexões sobre textura aberta referidas anteriormente. De um lado, diz Hart, um sistema jurídico precisa ser tal que contenha respostas estáveis para pelo menos boa parte dos casos que surjam para serem resolvidos. No entanto, o mesmo sistema não pode ser excessivamente rígido naquilo que ele determina, porque do contrário seria incapaz de se adaptar às novas questões e demandas que surgem à medida que o tempo passa e a sociedade se transforma.
Nesse sentido, a ideia por trás da figura da living tree é justamente uma concepção que dê conta dessas duas demandas ao mesmo tempo. A constituição, assim entendida, continua a representar limites bem estabelecidos ao exercício do poder estatal. É apenas os conceitos nela contidos estão sujeitos a mudanças graduais. Essas mudanças se operam não por meio de processos legislativos, mas sim por meio da cumulação de diversas decisões judiciais, que aos poucos vão alterando o entendimento que se tinha a respeito daquele determinado conceito. Estabilidade com flexibilidade, segurança sem atravancamento. Diante de um caso constitucional desafiador e diferenciado em relação àqueles com os quais já se está acostumado, o juiz, dadas as circunstâncias do seu tempo e do caso em mão, pode tomar uma decisão que se afaste daquela que tradicionalmente foi tomada, na medida em que isso signifique uma atualização e uma melhor adaptação entre aquilo que a norma constitucional tem a dizer e a situação atual. Uma seguida da outra, decisões dessa natureza fazem com que o conteúdo da constituição passe a ser outro, capaz de acompanhar o estado da sociedade naquele momento.
Ao lidar com a questão de como funcionaria a decisão judicial a partir dessa perspectiva, Waluchow estabelece que ela precisa estar em consonância com a moralidade constitucional daquela sociedade, isto é, com os valores morais abraçados pela comunidade enraizados no Direito Constitucional.  Com isso, ele propõe uma distinção entre opinião moral e compromisso moral. Opinião moral é todo tipo de posicionamento sobre o mérito moral de uma questão. As opiniões morais variam fortemente de pessoa para pessoa, sobretudo em sociedades altamente plurais como as contemporâneas. Compromissos morais, por sua vez, são aqueles tão caros que dificilmente a comunidade estaria disposta a abrir mão.
Aplicando essa mesma ideia ao caso Edwards. Uma vez que a sociedade já admitia que mulheres assumissem empregos, estudassem, fizessem suas próprias escolhas e opinassem publicamente, não haveria mais nenhuma razão pela qual elas deveriam continuar privadas da participação em cargos políticos. Isso seria por si só contraditório com os compromissos morais que a sociedade canadense passou a assumir na medida em que admitiu essas novas formas de emancipação feminina. A conclusão é que a decisão de fato deveria ter sido tomada em favor da causa de Edwards e, tal como ocorreu, reconhece o direito feminino de assumir um cargo político.
Finalmente, uma vez dito tudo isso, Waluchow acredita que o juiz seja o mais adequado para a tarefa de velar pelo crescimento da árvore exatamente porque, pelo fato de não depender de aprovação ou desaprovação popular, o juiz tem a possibilidade de decidir sem se preocupar com o futuro da sua carreira (isto é, sem se preocupar se irá se manter no cargo de juiz ou não). Além disso, por não ser um representante direito da vontade popular e por não ser eleito, o juiz se encontra em uma posição menos suscetível de ser seduzido pelo calor das emoções, geralmente quando se trata de momentos de crise ou celeuma.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Waldron e a Crítica do Constitucionalismo



Jeremy Waldron é um dos principais teóricos da Filosofia do Direito anglo-saxã atualmente e um dos mais ferrenhos críticos da atuação exacerbada do judiciário. Neozelandês radicado nos Estados Unidos, Waldron está inserido em um campo de debate pouco explorado (para não dizer inexistente no Brasil), e é isso o que o torna tão interessante. Trata-se do debate a respeito da legitimidade ou ilegitimidade da constituições escritas e sobretudo do controle de constitucionalidade (que no mundo anglófono recebe o nome de judicial review). Juntamente com Richard Bellamy e John Hart Ely, Waldron se insere entre aqueles que, em alguma medida, repudiam o constitucionalismo e as estruturas que o acompanham, como cortes constitucionais, etc.
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(Jeremy Waldron (1953-)
Em seu livro Law and Disagreement (1999) Waldron lança o que talvez sejam o mais sérios desafios que quem quer defenda a importância de haver uma constituição e um sistema de jurisdição constitucional precisa enfrentar. De um modo geral, Waldron baseia todas as suas teses a respeito da legitimidade de uma constituição ou de controle de constitucionalidade na sua ideia central dos desacordos. Waldron acredita que as sociedades contemporâneas sejam marcadas pelo fato de que os indivíduos discordam radicalmente entre si a respeito dos mais diversos assuntos, cada um sustentando opiniões que no geral são inteiramente diferentes umas das outras.
Uma vez que tenhamos consciência desse fato, resta que um regime verdadeiramente democrático precisa se estruturar de tal forma a assegurar o maior grau de respeito e de participação em relação a todos no campo da política, de forma que toda essa miríade de ideias e de visões de mundo possam conviver sem que uma se sobreponha a ou subjugue qualquer outra. Essa é a grande exigência normativa que orienta a forma como Waldron pensa o Direito e avalia instituições. O caráter democrático de um regime político está não nos resultados que dele obtemos, mas antes nos procedimentos que empregamos para chegar aos resultados. Por isso pode-se dizer que Waldron, ao contrário, por exemplo, de Dworkin, é um procedimentalista.
Como sua teoria se propõe a investigar qual o modelo institucional melhor se adequa com esse ideal, isto é, qual a forma do Direito que melhor realiza tal exigência, Waldron pode ser classificado como um positivista normativo, ao lado de autores como Frederick Schauer, Tom Campbell e Neil MacCormik. O objetivo da postagem de hoje é esboçar alguns (de forma alguma a maior parte e muito menos de forma exaustiva) dos seus principais argumentos de forma sintética. O modo como os argumentos estão elencados e nomeados não corresponde nem a qualquer nomenclatura que Waldron lhes dê nem a qualquer sequência cronológica das ideias que foram surgindo ao longo de sua escrita.

Argumento Dos Predadores Hobbesianos.

O argumento dos predadores hobbesianos (terminologia empregada por W.J. Waluchow) é um argumento voltado a desafiar a própria lógica por trás de se ter uma carta de direitos na forma de uma constituição escrita. Pode ser formulado da seguinte forma. A ideia de se elaborar um documento que lista, enumera e explicita os direitos fundamentais dos indivíduos (carta de direitos), de uma forma que esse documento está protegido contra alterações aleatórias (que na dogmática brasileira é uma característica chamada de “rigidez”, e no inglês, “entrenchment”), é uma: segurança. É a preocupação de fazer com que estes direitos fundamentais estejam a salvo das reviravoltas que volta e meia acontecem no campo da política, de modo, que não importando quem governe ou quais suas ideias, as pessoas possam sempre dispor de uma mesmo rol de direitos que as protegem contra a tirania e o autoritarismo. Trata-se de resguardar normas muito relevantes das idas e vindas aparentemente inevitáveis até no mais otimista dos cenários.
No entanto, diz Waldron, essa ideia é incompatível com a própria noção de direitos fundamentais universais. Reconhecer que todos gozam de certos direitos, como os relacionados à liberdade ou igualdade, é reconhecer que essas pessoas são racionais e razoáveis o bastante para exercê-los. Em outras palavras, se alguém tem um direito que lhe assiste, isso só faz sentido se essa pessoa for uma ser minimamente responsável, consciente e capaz de exercê-lo. Significa que essa pessoa saiba o que esse direito significa e o que ele lhe permite. Do contrário, esses direitos não teriam razão de existir. Por isso recém-nascidos não têm direito a decidir se e com quem querem se casar. Também por isso pessoas sem treinamento ou instrução alguma não têm direito a portar armamentos utilizados especificamente pelas forças armadas.
Ora, se é assim, continua Waldron, não faz sentido que os direito fundamentais sejam normas com um regras especiais que tornam sua alteração mais difícil. Se é real o risco de que esses direitos sejam ameaçados pelo curso dos acontecimentos no domínio da política, como é possível que as pessoas tenham condições de serem titulares desses direitos? Se é verdade que as pessoas são propensas atentar contra esses direitos caso tenham a oportunidade, isso não seria negar que elas tenham a racionalidade e a razoabilidade que precisariam ter para merecerem ser sujeito desses direitos?
Disso se conclui que entre a existência dos direitos fundamentais e a rigidez das normas que os abrigam, há uma contradição. As razões a favor de sua rigidez (imprevisibilidade, instabilidade, violação de direitos, etc.) só faz sentido se as pessoas forem vistas como homens hobbesianos em estado de natureza, o que seria um bom motivo para questionar porque elas ainda assim poderia gozar de direitos fundamentais. Como não estamos dispostos a abrir mão de nossa condição enquanto sujeito de direitos dessa natureza, resta concluir que não há porque se ter uma constituição escrita.

Argumento de Ameaça ao Autogoverno

Este segundo argumento, como o próprio nome já adiante, serve para tentar mostrar que a existência de um texto constitucional e um sistema de controle de constitucionalidade são fatores de risco contra a própria existência de um modo de fazer política autodeterminado que uma democracia pressupõe.
Com efeito, segundo nossas intuições mais básicas, um regime democrático é aquele em que os cidadãos, direta ou indiretamente, exercem papel determinante na tomada de decisões e nas escolha dos rumos a serem seguidos pela sociedade. Essa participação será direta quando forem os cidadãos mesmos quem toma as decisões de forma definitiva. Será indireta quando eles escolherem alguém (um representante) para tomá-las em seu lugar. De qualquer modo, em qualquer sociedade que pretenda ser democrática, não pode haver decisões que de alguma forma não sejam ungidas pela pia batismal do voto popular.
No entanto, diz Waldron, aparecer de não estar explícito, é exatamente isso o que acontece quando se tem uma constituição escrita, sobretudo quando esta adota algum grau de rigidez em suas normas. Isso pelo simples fato de que uma constituição é sempre produto de uma deliberação em um determinado momento passado, por determinadas pessoas vivas naquele momento. Decorrido algum tempo após a promulgação da constituição, haverá aqueles que, por causa dessa anterioridade, não opinaram ou deliberaram de forma alguma sobre essa constituição agora vigente.
Por outras palavras, haverá indivíduos governados por normas que eles próprios não escolheram para si.  É uma decisão tomada no passado e por pessoas do passado, mas que continua gerando obrigações para as pessoas do presente, quer elas tenham se posicionado a respeito dela, quer não. Ora, mas não seria isso privar os indivíduos de sua capacidade de autogoverno? Ao fazer, no caso dos EUA, com que uma população inteira do século XXI viva segundo normas produzidas no século XVIII, sem que elas tenham tido a oportunidade de decidir se as aprovam ou não, não seria isso condená-las a serem regidas pelo passado? Não seria privá-las da liberdade de escolher sob quais normas desejam viver?
É como se a existência de uma constituição regulando assuntos importantes como liberdade de expressão, sistema eleitoral e direitos sociais, tirasse das mãos dos indivíduos o poder de decidir de que forma cada um desses temas deve ser regulado. Valer dizer, a presença de uma constituição na esfera política restringe o espaço de deliberação do cidadão, de modo que ele pode se posicionar sobre certos temas, mas outros não, a saber, aquilo que já tiver sido fixado pelo texto constitucional. Para Waldron, é como se a existência da constituição fosse por si só uma ofensa ao direito de autodeterminação, na forma de autogoverno, dos indivíduos.

Argumento da Tirania Judicial

Se levarmos a sério o fato dos desacordos entre as pessoas, e examinarmos de forma mais detida como as questões são discutidas e decididas dentro de um tribunal, iremos concluir que as mesmas divergências que os cidadãos comuns apresentam ao debaterem certos assuntos, os juízes também apresentam ao resolver as lides de que são encarregados. Apesar de todo o treinamento e preparação em termos de domínio da dogmática, conhecimento dos precedentes e interpretação das normas pertinentes ao caso concreto, nada disso é capaz de fazer com que o juiz chegue a algum tipo de conclusão mais certa, mais objetiva ou mais precisa a respeito de temas controversos.
A grande prova disso é que, normalmente, quando um assunto altamente polêmico como aborto, eutanásia, uso de células tronco embrionárias, armamento da população, reforma agrária e muitos outros, chegam para serem analisados perante um tribunal, a decisão que se obtém em colegiado é uma divisão entre seus membros. Seria como um placar 5x4 na Suprema Corte dos Estados Unidos, ou um 6x5 no nosso Supremo Tribunal Federal. Um resultado como esse apenas demonstra que, no fundo, o que está em jogo não é qual a decisão correta à luz do que o Direito estabelece, porque a própria concepção de uma resposta correta implica que o indivíduo assuma uma opinião entre as várias existentes na sociedade.
Quando se chega a uma situação na qual os membros da corte não são capazes de entrar em consenso, o que acontece é que o resultado final do mérito é dado por uma mera contagem de quantos votaram em um sentido e quantos votaram em outro. Em outros termos, no fim das contas, tudo acaba em uma decisão segundo o critério majoritário: o lado que tiver mais magistrados a seu favor é o lado vitorioso. Contudo, se apesar de toda a qualificação profissional e intelectual dos que estão decidindo, ainda assim observamos o mesmo nível de divergência comum, por que deixar que tais questões sejam decididas por pessoas que não são eleitas e que não representam ninguém?
Ao encarregarmos um grupo de juízes de darem a palavra final sobre um determinado assunto que diz respeito a todos (como são os casos constitucionais em sua totalidade), o que se está fazendo, na prática, é transferir o poder de decisão sobre aquele assunto das mãos do povo para as mãos de uma minoria cujas incertezas e dúvidas são as mesmas incertezas e mesmas dúvidas que qualquer círculo com nove (no caso dos EUA) ou onze (no caso do Brasil) pessoas quaisquer. Por trás da falsa aura de segurança e de precisão que o discurso defensor do controle de constitucionalidade professa, está um perverso arranjo institucional por meio do qual há um desvio da competência sobre a deliberação em assuntos importantes do Legislativo (que é eleito e representa a vontade popular) para o Judiciário. Configura-se, assim, uma sabotagem da democracia, fazendo com que sejamos, de uma forma inaceitável, governados por juízes.

Argumento do Vício de Linguagem

O que estou aqui chamando de argumento do vício de linguagem é um ataque de Waldron contra os efeitos que um texto constitucional tem sobre o processo de decisão em casos constitucionais devido a seus aspectos linguísticos. À medida que uma constituição se perpetua e cria uma tradição ao longo do tempo, cada vez mais aumenta a preocupação com o sentido das expressões particulares que ela emprega, ao mesmo tempo em que diminui a importância de discussões de natureza social, histórica ou política pertinentes em relação àquele caso.
O exemplo de Waldron é o que historicamente aconteceu com a palavra inglesa “speech” no Direito Constitucional dos EUA, palavra essa que se apresenta em conceitos fundamentais, como o de liberdade de expressão (freedom of speech). Como se sabe, o termo speech, na língua inglesa, está associado a formas de expressão verbal faladas, como o discurso, a fala política, dentre outros. Quando se tornou necessário discutir liberdade de expressão em relação a formas de se vestir e movimentos corporais, o que aconteceu foi que o debate jurídico acabou por se concentrar predominantemente em discutir se essas formas de expressão podem ser consideradas como algum tipo de “speech”, em vez de focar no aspecto da legitimidade ou da aceitabilidade dessas manifestações.
Algo comparável foi o que aconteceu no Brasil com a questão do casamento homoafetivos. Apesar de todo o campo fértil de debate que se poderia realizar, sobre preconceito, discriminação, opressão histórica, apagamento de identidades, pluralidade de formas de vida e muitas outras coisas, a discussão jurídica sobre a aceitabilidade ou não dessa forma de casamento ficou restrita, durante muito tempo, a uma polêmica sobre se ela está ou não contemplada nos termos homem e mulher, presentes na Constituição Federal de 1988, art. 226, §3º.
Em suma, um dos problemas que Waldron vê como inevitáveis da adoção de uma carta constitucional é priorização de pequenas controvérsias sobre uso de palavras que vem acompanhada de um brutal afastamento daqueles aspectos que realmente importam para uma sociedade plural.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

O Debate Hart-Fuller (Parte 1)


O positivismo jurídico e o jusnaturalismo historicamente são teorias que sempre se digladiaram entre si, em uma tentativa de provar qual é a melhor forma de se pensar o Direito. É uma guerra contínua de várias batalhas, cada uma com suas baixas e conquistas. Um dos episódios mais dramáticos desse conflito foi o debate, no mundo da filosofia do Direito analítica, travado entre H.L.A. Hart (1907-1992) e Lon L. Fuller (1902-1978), representando o positivismo e o jusnaturalismo, respectivamente. Embora o debate Hart-Fuller remeta a diversos textos de ambos os autores, nesta postagem abordarei apenas dois deles: os artigos “Positivism and The Separation of Law and Morals” (de Hart) e “Positivism and Fidelity to Law- a Reply to Professor Hart” (de Fuller), ambos publicados na Harvard Law Review em 1958 e disponíveis gratuitamente na internet.
Em “Positivism and The Separation of Law and Morals”, Hart tem como objetivo central defender a tese da separação (ou separabilidade) entre direito e moral. Trata-se de uma ideia que pode ser mais ou menos sintetizada na seguinte sentença: uma norma moralmente reprovável não deixa de ser uma norma válida. Em outras palavras, trata-se de afirmar, para usar termos mais próximos do de Hart, que a existência e a validade do direito são uma coisa enquanto que sua admissibilidade, injustiça ou reprovabilidade moral são outra distinta e independente da primeira. Uma lei pode ser injusta ou perversa, sem que por isso deixe de ser lei.

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H.L.A. Hart (1907-1992)
A tese que Hart está sustentando não é de sua autoria. Na verdade, é uma proposta que remonta à tradição utilitarista britânica, que inclui nomes como os de Jeremy Bentham e John Austin. Aquele era um pensador por quem Hart nutria profunda admiração; este, o teórico que propôs teorias cuja refutação constituiu o ponto de partida para que Hart desenvolvesse seu próprio pensamento jurídico de forma madura em “O Conceito de Direito” (1961). Como fica bastante claro no texto, a separação entre direito e moral pensada por Bentham e Austin precisa sem compreendida no contexto de sua formulação. Ambos os autores eram reformadores convictos, que pretendiam remodelar o sistema jurídico britânico, porém sempre mantendo o respeito pelo direito e evitando tudo aquilo que pudesse levar a sociedade ao colapso. A ideia de separar direito e moral no nível da validade é justamente para que assim seja possível a crítica moral do direito.
Em outras palavras, Hart comunga do pensamento de Austin e Bentham ao acreditar que é somente pelo entendimento da validade jurídica como algo independente da moral que seríamos capazes de lançar mal livremente de valores morais para avaliar o direito, seja elogiando-o (dizendo que ele é justo ou bom), seja criticando-o (acusando de ser perverso e injusto). Bentham, sobretudo, temia que, se considerações morais se imiscuíssem com questões de validade jurídica, o direito estaria vulnerável a distorções por parte de concepções morais dos indivíduos. Uma visão anarquistas privaria qualquer norma jurídica de sua validade, ao passo que uma visão reacionária cortaria pela raiz qualquer tentativa de crítica das normas existentes.
Hart admite que a tese da separação historicamente foi uma das principais bandeiras do positivismo, juntamente com a tese analítica (de que é importante uma abordagem preocupada em esclarecer e explicitar cada um dos conceitos que fazem parte do direito) e a tese do imperativismo (de que o direito é composto por uma série comandos, de imperativos baseados em ameaças que asseguram seu cumprimento). Admite também que essas duas são, pelo menos em alguma medida criticáveis, sobretudo o imperativismo. Contudo, nega que a rejeição destas duas implique também a rejeição da tese da separação.
Uma outra possibilidade a se considerar seriam os chamados casos difíceis: aqueles casos em que não se consegue definir, sem dificuldade, qual seria a resposta correta a ser dada. Neste ponto, Hart introduz um exemplo famoso. Suponhamos a criação de uma norma que estabeleça que é “proibida a entrada de veículos no parque”. Ninguém duvidaria de que carros e motos se enquadram nessa proibição, mas o que dizer de patinetes, patins ou skates? Deveriam estes ser barrados também? Em um caso como esse, se há uma resposta correta, ela seguramente não pode ser obtida por nenhum procedimento lógico dedutivo ou silogístico, de subsunção do geral ao concreto. A forma de se embasar uma solução teria de ser, portanto, uma fundamentação moral.
Mas nem neste aspecto Hart está disposto a ceder a tese da separação. Quando se diz que, nos casos difíceis, a moral seria necessária para determinar o que o direito deixou em aberto, diz Hart, isso já seria se referir ao direito e à moral como duas coisas distintas. Seria empregar a separação, em vez de refutá-la. Afinal, não faz sentido afirmar que uma coisa necessita de outra se elas já forem conectadas e indissociáveis entre si.
No entanto, o que talvez seja o mais importante no debate Hart Fuller é o ponto seguinte abordado por Hart. Diz respeito à chamada fórmula de Radbruch, formulada pelo filósofo Gustav Radbruch, segundo a qual leis patentemente injustas não são leis. A polêmica em torno desta teoria diz respeito à discussão sobre uma série de problemas de natureza jurídica enfrentados após a derrocada do regime nazista. O mais saliente deles é o de como tratar e considerar aquilo que foi feito de moralmente condenável sob a égide da lei nazista. Em outras palavras: como devemos interpretar os terríveis atos (de discriminação, extermínio e perseguição) que ninguém hesitaria em dizer que foram moralmente equivocados, mas que forma praticados em plena conformidade com as leis do regime?
A saída encontrada por Radbruch, para resumi-lo em poucas frases, consiste em afirmar que essas leis que permitiram a barbárie simplesmente não eram leis, porque desrespeitavam valores morais minimamente exigíveis de uma legislação. Em outras palavras, por conta de seu conteúdo ser tão nefasto e repugnante do ponto de vista moral, aqueles atos legislativos não merecem ser chamados de leis que um dia foram válidas. Na verdade, nunca tiveram validade, o que claramente pressupõe uma conexão entre direito e moral.
Para deixar mais clara a discussão que está estabelecendo, Hart expõe em seu texto um caso discutido pelo próprio Radbruch. Tratava-se de uma situação em que um oficial nazista fora denunciado por sua esposa por suspostamente ter confessado a ela sua discordância em relação ao regime quanto esteve em casa. Condenado à morte pelas autoridades, o oficial só não foi executado por que foi preciso reaproveita-lo no campo de batalha. Após o fim do nazismo na Alemanha, a mesma esposa foi levada a julgamento, a fim de averiguar sua responsabilidade pelo risco sofrido pelo marido. Na ocasião, a defesa alegou que o ato da denúncia não seria punível, dado que era perfeitamente legal quando foi praticado.
A este respeito, Hart uma vez mais se mantém firme em defender a separação entre direito e moral. Da forma como enxerga, Hart acha que a opção tomada por Radbruch (de dizer que leis injustas não são leis) é uma má opção por dois motivos principais. Primeiro porque, sem nenhum motivo realmente convincente, ela pretende que assumamos um ponto de vista complexo e até confuso conceitualmente (de que uma lei não é lei se for injusta) em detrimento de um outro mais intuitivo e mais facilmente explicável (de que uma lei como a do caso é uma lei, apenas é perversa demais para ser aplicada). Segundo, porque essa saída na verdade joga para debaixo dos tapetes um outro problema, também moral, e tão sério quanto: punir a mulher pelo seu ato seria como que aplicar uma lei de forma retroativa (aplicando-se ao momento em que foi feita a denúncia). Daí porque, para Hart, não há que se negar que as leis cruéis do nazismo sejam realmente leis.
 Finalizando esta primeira parte do debate, também é neste texto de 1958 que Hart primeiro delineia algumas das afirmações que mais tarde desenvolveria em “O Conceito de Direito” (capítulo IX) sobre o chamado conteúdo mínimo do Direito Natural.
É um raciocínio que pode ser exposto assim: por mais que aceitemos que de fato a reprovabilidade moral de uma lei nada tenha a ver, a princípio, com sua validade jurídica, pode-se ainda pensar se o sistema jurídico como um todo tem ou não uma relação direta com a moralidade. De fato, por mais que as leis individualmente não se tornem inválidas por serem moralmente más, ainda parecesse convincente que um sistema jurídico que fosse perverso como um todo, que não protegesse as pessoas contra ameaças de outrem, que não assegurasse um mínimo de condições de vida, não seria de fato um sistema jurídico.
A resposta de Hart para essa questão por um lado admite a pertinência da objeção, mas não que ela prove a falsidade da separação entre direito e moral. O que de certa confere razão a essa objeção é que há certos fatos contingentes da existência humana no mundo que não podem deixar de ser contemplados pelas regras de qualquer sistema jurídico, sob pena de se tornar insustentável e impossível de continuar existindo. Esses fatos contingentes são o que Har chama de truísmos. No contexto em que está empregando essa expressão, um truísmo é um dado verdadeiro, porém não é acompanhado de uma demonstração lógica ou científica rigorosa. É apenas algo que reconheceríamos como verdade a partir do que sabemos e das experiências que temos da realidade comum.
Cada um desses truísmos (que Hart só viria a elencar em forma de lista em 1961) fornece um bom motivo para que o sistema jurídico possua regras com certo conteúdo fundamental. Fundamental porque, se o Direito não contivesse essas regras, a consequência seria que a vida de todos estaria seriamente ameaçada de uma forma ou de outra. A consequência mais provável seria que uma sociedade sem as regras correspondentes a esses truísmos simplesmente entraria em colapso e se desmantelaria.
No texto de 1958, no entanto, Hart se limita a uma experiência de pensamento. Suponhamos que os seres humanos passassem por uma mutação e se transformassem em seres dotados de uma proteção natural contra ataques, como um casco de caranguejo, e se tornassem capazes de extrair seus nutrientes do meio externo, como seres autótrofos. Nesse contexto, não haveria necessidade de regras que proíbam o uso livre da violência, regras que protejam a propriedade ou que resguardem os direitos dos indivíduos a um mínimo de alimentação. Na nossa sociedade, contudo, regras como essas são indispensáveis, dada a inegável condição humana de vulnerabilidade em face dos outros e dependência de recursos do mundo exterior para sobreviver.
O que fica provado, assim, é uma necessidade natural de certas regras, que coincidem com regras morais, para que o Direito seja sustentável, mas não uma relação conceitual entre direito e moral. Se um dia a humanidade evoluir a tal ponto que mude completamente sua estrutura física e sua constituição alimentar, essa necessidade natural deixaria de existir imediatamente, e o Direito continuaria sendo Direito.
Já sobre o tema da justiça, Hart admite que, se o Direito consiste em um sistema geral de regras, essas regras precisam obedecer a um princípio mínimo de justiça: tratar casos semelhantes de forma semelhante (e o critério para se determinar quando há e quando não há semelhança é o que varia). Isso porque, se o Direito se apartasse desse princípio, isto é, se aplicasse as regras de forma irregular e aleatória, já não poderia mais ser chamado de Direito. No entanto, este é um princípio de justiça que diz respeito à aplicação do Direito, e não ao Direito em si. Assim, tampouco aqui há uma conexão necessária entre Direito e moral.

domingo, 6 de janeiro de 2019

INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DO DIREITO EM HANS KELSEN


A famosa moldura de sentidos é um conceito que aparece na teoria de Kelsen no último capítulo da “Teoria Pura do Direito”, que versa sobre o tema de interpretação. Após ter discutido no restante da obra assuntos como a natureza e a estrutura das normas, o caráter neutro da Ciência do Direito e a norma fundamental, Kelsen pretende esboçar uma abordagem teórica não sobre como a interpretação deveria ser feita (o que ocorre na maioria das vezes em que se trata do assunto), mas sim sobre como ela é na prática. Por isso, é importante dizer que a formulação de Kelsen é descritiva, em vez de normativa.
Kelsen começa pela constatação de que interpretar é um ato que sempre acompanha a aplicação do Direito: toda norma, quando aplicada ao caso concreto, precisa antes ter seu conteúdo determinado, isto é, precisa ser interpretada. Essa interpretação pode ser feita em dois tipos de situação. Uma é quando quem interpreta é autoridade competente para aplicar a norma. Outra é quando alguma outra pessoa, não dotada de autoridade, faz a sua interpretação a respeito da mesma norma. No primeiro caso, a interpretação da norma não ocorre isolada, mas sim é seguida da produção de uma nova norma específica e particular para o caso em questão. É o que acontece, por exemplo, quando um juiz interpreta certo dispositivo do Código Penal para proferir sentença condenatória, e assim ordena que o réu seja preso (produção de norma individual). O outro caso é quando a interpretação é apenas interpretação, ou seja, quando não há, por parte de quem interpreta, a produção de outra norma a ser cumprida. Seria a situação, por exemplo, da interpretação de um dispositivo feita em um livro de doutrina, ou quando é feita por uma pessoa leiga, mas, principalmente, quando é feita pelo cientista do Direito.
Ao primeiro tipo de interpretação, na qual o intérprete é dotado de autoridade e tem competência para aplicar a norma, Kelsen dá o nome de interpretação autêntica. Ao outro caso, em que a interpretação não produz consequências jurídicas, o autor chama de interpretação inautêntica. Qualquer que seja o caso, no entanto, Kelsen observa que sempre a norma a ser interpretada apresenta um certo grau de indeterminação linguística. Disso se segue que, para cada norma, não há apenas um, mas um conjunto de sentidos possíveis. Ocorre que, de todos esses sentidos, o Direito em si não torna nenhum obrigatório ou preferível aos outros, ou pelo menos assim pensava Kelsen. A consequência última disso é que, no momento da interpretação, o aplicador da norma encontra-se juridicamente autorizado a escolher qual dos sentidos pretende aplicar. Essa propriedade das normas de apresentarem múltiplos sentidos à disposição, que para Kelsen não poderia ser extinta a despeito de qualquer tentativa de tornar o texto normativo mais preciso, é o que Kelsen chama de moldura de sentidosA metáfora de uma moldura se justifica por esta conter um espaço vazio (porém limitado em sua extensão) que pode ser preenchido, assim como a norma deixa uma certa indeterminação semântica a ser definida pelo juiz. Essa é a concepção kelseniana sobre a discricionariedade judicial. Discricionariedade judicial é a expressão que em filosofia do direito é usada para descrever aquelas situações em que o juiz tem diante de si um certo número finito de decisões que pode tomar em um certo caso, decisões essas que são igualmente justificáveis e fundamentáveis à luz do direito. Mas isso sem que ao mesmo tempo ele possa dar ao caso a resposta que bem entender, e é nisso que a discricionariedade se distingue do mero arbítrio. Ao fixar sua tese da moldura de sentidos, Kelsen não apenas rejeita o positivismo exegético, para o qual sempre é possível determinar um e apenas um sentido para cada norma, como também demonstra que há, nos casos da interpretação autêntica, a produção de Direito novo por parte do aplicador da norma. Com efeito, na Teoria Pura do Direito, a aplicação normativa não é mera subsunção, mas sim a produção de uma nova proposição de dever ser (uma nova norma, individual) a partir de uma norma anterior e geral. Desse modo, toda vez que um juiz decide um caso, ele está, ainda que inconscientemente, gerando também novas normas a partir daquelas em que se baseia, de sorte que o exercício da jurisdição também é uma fonte do Direito, sobretudo em sistemas nos quais as decisões de certos tribunais tornam-se obrigatórias para outros ramos do Judiciário, como é o caso das súmulas vinculantes no Brasil. Aplicar o Direito jamais é simplesmente trazer para a situação concreta aquilo que já está contido em uma norma preexistente. O ato de aplicação envolve sempre (1) uma escolha relativamente livre entre um conjunto finito de sentidos possíveis e (2) a produção de uma nova norma, ainda que aplicável somente àquele caso que está sendo decidido.
Em última instância, a teoria da interpretação produzida por Kelsen reforça e confirma os argumentos por ele propostos em favor de uma separação entre Direito e moral. É verdade que muitas vezes a interpretação feita por um aplicador do Direito se baseia em critérios morais para a escolha do sentido da norma. Mas o fato de isso ocorrer apenas de forma contingente, e não de forma necessária, apenas comprova que Direito e moral não estão vinculados. A única coincidência entre as duas coisas é o fato de estarem no plano do dever ser. Não fosse assim, seria impossível que a descrição do processo interpretativo pudesse ser feita de maneira axiologicamente neutra por parte do cientista do Direito, como propõe Kelsen.
Pela perspectiva oferecida pelo autor, não há razão para crer que o uso de critérios morais levaria a alguma certeza na aplicação das normas, mesmo porque esses critérios seriam apenas alguns dentre vários outros, todos eles juridicamente passíveis de serem utilizados pelo aplicador no caso concreto. Do outro lado, a crença na conexão entre Direito e moral, esta sim, levaria a uma má compreensão e uma má descrição do funcionamento do Direito, dado que apenas critérios morais seriam levados em consideração.
Nesse sentido, do ponto de vista do cientista do Direito, preocupado em descrever os fenômenos jurídicos, não há fator jurídico que torne necessária ou devida a presença de elementos morais no Direito. Isso porque, nos dizeres do próprio Kelsen, a definição de qual sentido será dado à norma não é um ato de conhecimento, mas um ato de vontade.