segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Interpretativismo



Em “O Império do Direito”, Dworkin sustenta uma teoria do direito baseada na noção de interpretação como atividade criativa exercitada tanto pelo teórico, ao tentar explicar o que o direito é, quando pelo juiz, ao aplicar as normas a casos concretos. Meu objetivo nesta postagem não é tanto de entrar no mérito da interpretação para Dworkin efetivamente, mas sim explicar como ele traz a ideia de interpretação para o centro da teoria do direito e chega à conclusão de uma teoria boa e completa precisa ser uma teoria interpretativa.
A escalada do o argumento de Dworkin até chegar a esse ponto passa por uma demonstração de como as outras teorias do direito, com destaque para o positivismo, fracassam em explicar o fenômeno chamado de desacordos teóricos. Comecemos, então, abordando a maneira como Dworkin coloca a questão de como construir uma teoria do direito e como se configura a questão dos desacordos teóricos. Dworkin inicia o livro dizendo que existem três tipos de desacordos básicos que pode haver sobre o direito, ou seja, três formas diferentes pelas quais dois ou mais juristas podem discordar entre si quanto a uma questão jurídica.
Ronald Dworkin (1931-2013)

Primeiro, há os desacordos sobre fatos. Esses dizem respeito ao que aconteceu em um determinado caso, qual foi o momento do acontecimento, quem esteve presente, quem fez o que, quem deixou de fazer o que, etc. Em situações reais da prática jurídica, esse é o desacordo que ocorre, por exemplo, quando testemunhas apresentam relatos diferentes sobre os fatos, quando as partes alegam autorias diferentes para um mesmo fato, quando não se tem certeza sobre a data de determinado evento e assim por diante. Disso se segue que os desacordos sobre fatos são resolvidos com um exame da realidade e uma reconstrução do passado. Uma vez que se tenha averiguado qual foi o real desenrolar dos acontecimentos, o desacordo deixa de existir.
Segundo, há os desacordos de direito. Esses se subdividem em duas outras categorias. Há, de um lado, os desacordos empíricos. Apesar do que a nomenclatura pode sugerir, estes não dizem respeito ao que aconteceu no caso, mas sim sobre a aplicabilidade de uma norma ao caso. Percebemos a ocorrência desse desacordo quando não se tem certeza se a norma em questão permanece vigente, se há uma norma mais específica relacionada àquela situação ou se ela se aplica a fatos ocorridos em determinado momento. Desacordos empíricos têm sua solução dada examinando qual o estado atual do sistema jurídico, observando se as normas foram revogadas ou não foram, se possuem período de validade determinada, se seu período de vacatio legis já se esgotou, dentre outras questões. A nomenclatura descordo empírico se justifica porque a sua resolução é dada empiricamente.
O outro tipo de desacordo de direito é que Dworkin chamará de desacordos teóricos. Assim como os desacordos empíricos, os desacordos teóricos também dizem respeito à questão de qual é o direito aplicável a um caso. Porém, diferentemente do tipo anterior, o desacordo teórico não lida com o problema de uma norma estar valendo ou não. Esse lida, isso sim, com problema sobre o que aquela norma diz. O desacordo teórico acontece, portanto, não quando discordamos sobre o que aconteceu, nem sobre quais as normas vigentes, mas antes sobre o que a norma manda que façamos dentro daquela situação. Há descordo teórico entre dois juristas quando ambos se deparam com uma mesma norma, mas cada um acredita que ela está dizendo uma coisa diferente. Outra forma de dizer isso é dizer que o desacordo teórico é um desacordo de interpretação. Não se trata de discordar sobre se a norma existe, mas sim qual a maneira correta de entendê-la e de extrair o que ela tem a nos dizer sobre o caso que precisa ser julgado.
Como dissemos no começo, os desacordos teóricos são o tipo de desacordo realmente relevante para Dworkin. Mas o que há de tão interessantes a respeito deles? Primeiro, que os desacordos sobre fatos e os desacordos de direito de tipo empírico são normais dentro do cotidiano do mundo jurídico. São desacordos que ocorrem com frequência, mas que não costumam despertar preocupação porque toda vez que eles surgem já sabemos de que maneira poderão ser solucionados: analisando a realidade fática, seja sobre qual a verdadeira narrativa dos fatos do caso ou sobre a vigência de certa norma.
Segundo, e relacionado ao ponto anterior, é que o desacordo teórico não admite justamente o tipo de solução empírica que basta para os tipos anteriores. Quando diferentes juristas têm diferentes entendimentos sobre o que uma norma diz, o que decide qual entendimento é correto não é um exame de fatos, mas sim uma confrontação de argumentos.
Terceiro, as teorias do direito existentes até então não são capazes de explicar adequadamente no que consistem desacordos teóricos e como eles são possíveis dentro do Direito. Com efeito, segundo Dworkin, toda vez que uma das teorias do direito predominantes, notadamente o positivismo jurídico, se depara com uma situação de desacordo teórico, ela tende a não enxergá-lo enquanto tal e a desqualificá-lo para a terceira e última categoria de desacordos, que Dworkin chama de desacordos de moralidade e fidelidade. Temos um desacordo de moralidade e fidelidade quando sabemos efetivamente o que norma impõe que seja feito, mas um de nós considera que o que ela dispõe é injusto e outro considera que não, ou quando um de nós considera que devemos aplicá-la a despeito de sua injustiça e outro considera que a injustiça é um motivo para deixar a norma de lado e decidir sobre algum outro critério.
Nessa outra tipologia, então, o que está em questão não é exatamente qual o conteúdo da norma, mas sim a correção moral desse conteúdo e a obrigatoriedade de aplicá-lo ao caso. Sabemos o que norma estabelece, mas não concordamos se o que ela estabelece é bom ou desejável e, ainda, se o fato de ser bom ou desejável acena ou não para a possibilidade de afastar sua aplicação ao caso.
O que Dworkin quer nos mostrar é que teorias como o positivismo, jusnaturalismo e realismo jurídico, quando tratam de um desacordo teórico, falam sobre ele como se no fundo fosse apenas uma variante desse desacordo que acabamos de explicar. Ou seja, para essas teorias, da forma como Dworkin as lê, o que está acontecendo quando operadores do direito discordam sobre o que as normas dizem é que um deles acredita que o conteúdo das normas e positivo e outro acha que ele é negativo. É porque um dos lados compreendeu do que se trata a norma ao passo que o outro não entendeu. Ou mesmo é porque um deles está sendo sincero quanto ao seu entendimento ao passo que outro está se posicionando de má fé.
O que essas teorias estariam nos dizendo, segundo Dworkin, é que não há desacordos genuinamente teóricos. Isto é, não há desacordos genuinamente sobre o que direito exige para determinado caso, porque se analisarmos a fundo todo desacordo que se apresenta dessa forma é na verdade uma discussão que descamba para um domínio extrajurídico, envolvendo questões de moralidade e justiça. Questões estas que já extrapolam o campo do direito propriamente dito e cruzam a fronteira para controvérsias que não são realmente jurídicas, mas sim de alguma outra natureza.
O modo como Dworkin procura se evadir a esse reducionismo é argumentando que o desacordo teórico, que aparenta ser um desacordo sobre qual o teor de uma norma, é na verdade um desacordo de tipo mais fundamental. Com efeito, quando temos diante de nós uma mesma normas, mas cada um enxerga algo diferente sendo dito por ela, o ponto de discordância aqui não é meramente os significado das palavras que estão lá colocadas, e sim o que cada um de nós pensa que o direito é. Por exemplo, se um de nós pensa que a interpretação correta deve ser teleológica, mas o outro acha que ela deve ser relacionada ao seu contexto histórico, é porque um de nós acredita que o direito é uma instituição funciona pela realização das finalidades que escolhemos para as normas através de nossos representantes legítimos, e outro acredita que o direito é uma instituição essencialmente localizada no tempo e no espaço, devendo essa temporalidade ser respeitada quando um julgamento precisa ser feito em um momento histórico diferentes.
Para usar um exemplo menos abstrato, podemos tomar um caso concreto empregado pelo próprio Dworkin para ilustrar sua ideia, o famoso caso Riggs vs. Palmer. A história é conhecida de todos. No século XIX, Elmer Palmer tomou conhecimento de que constava como um dos herdeiros no testamento de seu avô. Ávido para possuir sua parte da herança, Elmer assassina seu avô a sangue frio. Quando a autoria do crime foi descoberta e o rapaz foi levado a julgamento, uma questão que suscitou ampla discussão dentre os juízes que compunham o tribunal dizia respeito se Elmer deveria ou não receber a herança, considerando o fato de que foi ele o responsável por ceifar a vida do seu ascendente e que as leis do estado em que o julgamento se deu nada diziam a respeito do recebimento da herança ser obstado pela prática de homicídio por parte do herdeiro.
De um lado, estavam aqueles juízes que acreditavam que, na falta de previsão legal específica sobre o assunto, Elmer deveria herdar normalmente, pois cabe ao tribunal se pautar nas normas que estão explicitamente colocadas. De outro lado, estavam os juízes que acreditavam que a perversidade do ato era inaceitável, e que seria absurdo um alto tribunal permitir que alguém de tamanha vileza moral saísse incólume no diz respeito a essa questão patrimonial. Para esse segundo grupo de juízes, cujo entendimento prevaleceu, está claro na tradição jurídica estadunidense que tal tipo de conduta é inadmissível e que não permitido a ninguém colher os frutos de sua própria torpeza.
Diante desse caso, diz Dworkin, aparentemente está claro que os juízes sabiam qual seria a resposta correta para o caso: Elmer deveria herdar. Seria apenas que alguns deles estavam relutantes em tomar essa decisão por considerarem-na moralmente injusta. No entanto, continua Dworkin, a questão é muito mais profunda que essa. O que estava acontecendo é que uns achavam que o direito se esgota nos textos legislados, e os outros achavam que inclui também valores morais. Uns achavam que o direito deve trabalhar para fins de previsibilidade, e os outros achavam que ele é instrumento para produzir justiça. Uns achavam que o ofício do juiz é subsunção simples da norma, e os outros achavam que ele inclui avaliação cuidadosa do mérito. Uns achavam que no direito existe dever estrito de fidelidade em relação ao texto legal, e outros achavam que há um compromisso maior de assegurar a correção moral da solução da lide. Em suma, uns achavam que o direito é uma coisa e serve a determinados propósitos, enquanto os outros achavam que o direito é outra coisa e serve a outros propósitos.
Nesse sentido, defende Dworkin, não se pode dizer que todos concordavam sobre o conteúdo do direito, mas apenas discordavam sobre a sua justeza. Pelo contrário, o ponto principal do desacordo era não apenas o que as normas dizem sobre esse caso em particular, mas sim o que o direito é como instituição e o que podemos esperar dele. É um desacordo sobre qual papel cabe ao direito desempenhar e a que servem as decisões judiciais. O que temos aqui não é uma querela sobre questões extrajurídicas que surge no meio de uma controvérsia jurídicas. É, antes de tudo, um desacordo genuinamente teórico sobre que tipo de coisa é o direito. Assim, no momento em que os juízes colocavam seus posicionamentos dissonantes, o que cada um deles estava expressando não era sua visão moral sobre a aplicação das normas, e sim a visão mais fundamental que cada um deles tinha sobre o que essas normas efetivamente são.
Dito isso, estamos agora em condições de compreender por que as outras teorias fracassavam em explicar os desacordos teóricos. A razão pela qual isso acontecia é que todas elas tinham um defeito em comum. Todas pressupunham que o direito é algo que pode ser entendido e descrito objetivamente. Para ser mais exato, todas elas acreditavam que o direito é um tipo de instituição tal que, se todos analisarmos de maneira cuidadosa, veremos todos uma mesma coisa com um mesmo modo de funcionamento.
Dworkin quer mostrar que a verdade está justamente no ponto de vista oposto a esse. Longe de vermos o direito de uma mesma forma, cada um de nós possui a respeito dele a sua própria visão. Ou, para usar a expressão de Dworkin, a sua própria concepção sobre o que o direito é. A concepção que possuímos é a resposta que cada um de nós dá para as perguntas “o que o direito é?”, “para que serve o direito?”, “qual papel ele cumpre ou deve cumprir na sociedade?”. A concepção de direito desempenha um papel fundamental porque é ela que orienta o modo como as decisões são tomadas, o modo como as normas são entendidas e o modo como controvérsias são solucionadas.
De todas essas explanações, podemos extrair duas conclusões básicas. Primeiro, que o direito se torna uma coisa diferente para cada forma diferente de entendê-lo que aplicamos a ele. Ele não é, portanto, um conceito empírico, que pode ser extraído da descrição do mundo, e sim é um conceito interpretativo, que depende diretamente do sentido e do propósito que seu intérprete lhe imputa. Compreende-se, pois, que descrever o direito significa sempre e inevitavelmente fazer uma interpretação sobre ele. Segundo, que a interpretação ou concepção que temos sobre o direito é sempre informada pelos valores morais e políticos do intérprete. Isto é, consiste em uma construção do intérprete, uma construção na qual ele desempenha um papel ativo e irredutível, e nunca meramente uma extração do sentido já presente em um texto.
Isso tem implicações drásticas sobre como uma teoria do direito deve ser. O empreendimento teórico deixa de ser a busca por uma descrição direito fiel às práticas sociais reais e passa a ser uma busca, dentre as várias concepções/ interpretações possíveis sobre o direito, a que mais se justifica moral e politicamente. A descrição será, nesse sentido, tanto mais verdadeira quanto mais normativamente correta. Precisaremos, a partir de agora, tentar entender o que está por trás do ato de interpretar e de que maneira podemos escolher entre diferentes concepções do direito, lembrando que essa tarefa precisará ser feita tendo sempre em vista as questões de moralidade política relevantes. Eis aqui como se constrói o edifício teórico do interpretativismo.
Espero ter sido suficientemente claro.

sábado, 24 de agosto de 2019

Frege sobre Sentido e Referência



Em seu artigo “Sobre o Sentido e a Referência” (1892), Gottlob Frege (1848- 1925) procurou dar uma solução para o que iremos chamar aqui de paradoxo das igualdades. A explicação que Frege dá a esse paradoxo passa pelo que foi um dos momentos fundantes da filosofia analítica, a saber, o estabelecimento da distinção entre sentido e referência. É verdade que essa distinção sofreu diversas críticas ao longo dos anos e parte significativa dos autores analíticas ou não a empregam mais ou a consideram superada. Como, no entanto, ela historicamente exerceu influência tanto sobre Russell quanto sobre (o primeiro) Wittgenstein, decidi hoje fazer uma postagem abordando as ideias gerais que ela apresenta. O texto original, além da tese central, analisa uma série de casos envolvendo sentenças de tipos diferentes, o que o torna a meu ver cansativo. Por isso, para essa postagem irei me limitar a falar sucintamente sobre a essência da proposta do artigo.
Acredito que seja importante começar com um rápido esclarecimento sobre quem era Frege dentro da filosofia e quais seus propósitos ao propor essa distinção. Frege, na história das ideias, foi um dos autores responsáveis pela chamada guinada linguística, uma mudança tanto das questões filosóficas principais quanto da maneira de se fazer filosofia, atraindo os holofotes para a linguagem. Frege, especificamente, estava comprometido com a defesa de uma certa forma de logicismo: a tese segundo a qual verdades matemáticas em última instância poderiam ser reduzidas a verdades da lógica.
Gottlob Frege (1848-1925)
Para isso, contudo, Frege estava ciente de que a lógica precisaria ir além da lógica aristotélica tradicional. Convencido de que o modo aristotélico de estudar sentenças com base nas noções de sujeito e predicado havia se tornado limitada demais, Frege propôs que o modo de fazer lógica passasse por uma mudança, introduzindo noções como as de função, argumento e conceito (que em Frege tem um sentido específico). O resultado é que a lógica como concebida por Frege, e de certa forma levada adiante por Russell era muito mais próxima da matemática, sobretudo na forma de redigir sentenças, empregando símbolos tipicamente matemáticos, etc.
Dito isso, passemos logo para o problema que Frege estava preocupado em resolver. De uma forma resumida, trata-se da seguinte questão: como é possível que uma identidade seja verdadeira e informativa ao mesmo tempo? Podemos entender isso mais facilmente se pensarmos em um exemplo. Suponhamos que “a=b” seja uma afirmação verdadeira. Nesse caso, estamos dizendo que “a” é idêntico a “b”. Ora, se os dois são iguais, isto é, se existe uma relação de identidade entre os dois, isso quer dizer que onde houver “a”, pode-se substituir por “b”, e vice versa. Se fizemos isso com a nossa afirmação anterior, trocando “b” por “a”, ficaremos com “a-=a”. Podemos dizer, então, que as duas afirmações (“a=b” e “a=a”) são equivalente. Mas é exatamente aqui que surge o problema. “a=b” é uma identidade informativa, ou seja, ela é capaz de transmitir uma informação nova, dizer uma coisa que antes poderíamos não saber. Por sua vez, “a=a” não é uma identidade informativa, é completamente trivial e óbvia. Não diz nada que já não soubéssemos antes. Como é possível os enunciados serem logicamente equivalentes, mas um deles informar algo e o outro não?
Acho que podemos deixar o problema mais claro se usarmos um exemplo concreto da época de Frete. Logo nas primeiras horas do dia, era possível observar um astro no céu. Nas últimas horas da tarde, também se via outro astro, que eram conhecidos respectivamente como a estrela da manhã e a estrela da tarde. Descobriu-se contudo, que se tratava do mesmo astro e era o planeta Vênus. Então, podemos dizer "a estrela da manhã é a estrela da tarde", sendo essa uma frase que nos transmite uma informação não óbvia. Mas, da mesma forma como fizemos antes, se usarmos essa identidade para dizer que "a estrela da manhã é a estrela da manhã", estaremos criando um enunciado equivalente, mas totalmente óbvio e que não diz nada de novo .Como é possível que duas identidades sejam equivalentes, sendo uma delas informativa e a outra não? Dito de outra forma: como é possível estabelecer uma identidade entre duas coisas e ao mesmo tempo estar dizendo algo que já não se soubesse antes? Entre as duas deve existir alguma diferença que faz de uma informativa e da outra trivial. Mas o que é?
Frege considera e descarta duas possibilidades de resposta. A primeira consistiria em dizer que a identidade acima seria uma identidade entre objetos, enquanto que a segunda consistira em dizer que ela seria uma identidade entre expressões linguísticas. Vejamos rapidamente cada uma.
Dizer que a identidade “a=b” é uma identidade entre objetos significa que seu conteúdo deve ser entendido como “o objeto a é idêntico ao objeto b”. Em outras palavras, a identidade fala de objetos, de uma relação entre esses objetos. No entanto, isso não parece convincente. Pois, ao dizer que os objetos são idênticos, isto é, que a e b são o mesmo objeto, estaríamos falando da relação de uma coisa com ela mesma, o que careceria de sentido. Falar de uma coisa em relação a si mesma por si só já parece estranho, mais ainda dizer que essa é uma identidade que nos acrescenta uma informação.
A segunda possibilidade, de que a identidade seria uma relação entre expressões linguísticas, também é rejeitada por Frege como insuficiente. Segundo essa perspectiva, “a=b” significaria “a expressão ‘a’ diz respeito ao mesmo objeto do mundo que a expressão ‘b’”. Em outras palavras aquela identidade seria apenas um esclarecimento sobre a linguagem nos dizendo simplesmente que, na língua que estamos empregando, os termos “a” e “b” servem para falar de uma mesma coisa. A insuficiência dessa explicação ficará clara com um exemplo que tirarei de um dos meus heróis favoritos: o Batman. Os cidadão de Gotham City certamente sabem que indivíduo é designado pelo termo “Bruce Wayne” e também sabem que indivíduo é designado pelo termo “Batman”. Mas se dissermos a um desses cidadãos que “Bruce Wayne= Batman”, com certeza estaremos dizendo algo que vai muito além da mera informação de que os dois termos falam da mesma pessoa. Estaremos dizendo algo que muito provavelmente causaria espanto e sobressalto, para além de uma simples informação linguística.
Afastadas essas duas possibilidades preliminares, Frege propõe a solução em que acredita. É nesse momento em que introduz seus conceitos de sentido e de referência, acreditando que a diferença entre eles possa esclarecer e resolver o problema que tinha sido colocado. Sentido e referência são conceitos que podem ser usados para falar tanto de nomes quanto de sentenças completas. Vejamos agora o conteúdo de cada um.
A referência de um nome, como define Frege, é aquele objeto no mundo ao qual ele se refere. Dito de outro modo, a referência é aquela coisa da realidade que o nome nomeia. O sentido, por sua vez, não possui um definição formal. No entanto, a maneira como Frege fala sobre o sentido nos leva a entender que sentido tem a ver como modo de se referir à coisas, com os aspectos que são enfatizados ao nos referirmos à coisa. Podemos pegar duas expressões como “o discípulo de Sócrates” e “o mestre de Aristóteles”. As duas dizem respeito a um mesmo objeto, que nesse caso é uma pessoa, Platão. Platão, portanto, é a sua referência. Só que as duas expressões, mesmo se referindo ao mesmo objeto, falam de maneiras diferentes. Cada uma privilegia uma certa forma de apresenta-lo e de expô-lo em uma frase. Uma aborda sua ascendência intelectual, ao passo que a outra enfatiza sua descendência intelectual. Dizemos então, que as duas expressões possuem sentidos diferentes. Um termo pode ter sentido sem ter referência, como “o maior número de todos”, quando não existe um objeto a que se refira.
Assim, duas expressões podem falar sobre uma mesma coisa (ter a mesma diferença) mas referir-se a ela de maneiras diferentes (ter sentidos diferentes). Frege acredita que o sentido de um nome tem relação com sua carga cognitiva, quer dizer, com aquilo que o nome nos informa e nos diz sobre o objeto. Com isso, resolve-se o paradoxo. Quando dizemos, “a=b”, ‘a’ e ‘b’ possuem, de fato, a mesma referência, porque dizem respeito ao mesmo objeto. Mas, por outro lado, possuem sentidos diferentes, isto é, possuem maneiras diferentes de se referirem a ele. Quando dizemos “a=b”, portanto, estamos dizendo que há duas formas diferentes de se referir à mesma coisa. É essa a informação que está presente em “a=b”, mas está ausente em “a=a”, já que nesse caso ambos os a’s possuem mesma referência e mesmo sentido.
Sentido e referência podem ser usados para falar não só de termos quando estão isolados, mas também quando se agrupam formando frases completas. Frege acredita que o sentido e a referência de uma sentença sejam, respectivamente, dados pela composição e pela soma dos sentidos e das referências de cada um dos termos que a compõe.
Uma sentença completa descreve as circunstâncias nas quais ela é verdadeira. Quando digo “o gato sentou no prato”, estou dizendo qual situação deve estar no mundo para que o enunciado seja verdadeiro. Disso Frege conclui que a referência de uma sentença completa é o seu valor de verdade. O valor de verdade tem a ver com a verdade ou falsidade de uma sentença. Ele pode ser de dois tipos: verdadeiro ou falso. Se de fato o gato sentou no prato, então dizemos que a sentença “o gato sentou no prato refere o verdadeiro”. Do contrário, dizemos que ele refere o falso. Se um dos termos de uma sentença não tiver referência, então a sentença como um todo carecerá de valor de verdade, isto é, não será nem verdadeira nem falsa.
Já o sentido de uma sentença completa, para Frege, tem muito mais a ver com a informação que ela quer veicular. Tomemos como exemplo a sentença “Machado de Assis é o autor de Brás Cubas”. Vejamos o que acontece quando trocamos “Machado de Assis” por “O Bruxo do Cosme Velho”. São dois termos que possuem a mesma referência, de modo que trocá-los deve manter intacta a referência de sentença toda, e portanto conserva o seu valor de verdade. No entanto, “O Bruxo do Cosme Velho é o autor de Brás Cubas” tem um sentido diferente do da sentença anterior. Isso é fácil de explicar, já que trocamos uma expressão por outra com um sentido diferente, fazendo com que o sentido da frase completa mudasse. Mas a ideia contida na frase parece ter mudado também. Alguém poderia muito bem acreditar na primeira versão da frase mas não na segunda, se não soubesse que Machado é o Bruxo do Cosme Velho. Essa informação veiculada pela sentença, que corresponde ao seu sentido, é o que Frege chama de pensamento.
E aqui chegamos até o ponto culminante. Frege dirá que o pensamento é algo diferente da representação. Representação de uma coisa é imagem que fazemos dela dentro de nossa consciência. Minha representação de “o gato arranhou o sofá” tem a ver com aquilo que me vem à mente quando ouço essa sentença. Em última instância, as minhas representações estão relacionadas diretamente com as lembranças e memórias que fui sedimento a respeito das coisas e que são invocadas quando elas me vêm à cabeça. De modo que a representação possui caráter subjetivo. O pensamento de “o gato arranhou o sofá”, por outro lado, é um dado objetivo. Ele é aquilo responsável por fazer com que aquela representação seja invocada. Duas pessoas podem ouvir a mesma sentença e ter representações diferentes. Uma pode imaginar que o sofá está apenas levemente danificado, e a outra imaginar que o estofamento foi totalmente comprometido. Mas existe um mínimo comum a essas duas representações que também foi o que fez com que elas surgissem. Esse mínimo comum objetivo é o pensamento.
O ponto, para Frege, é aquilo que realmente importa não é a representação, e sim o pensamento. O que importa não é a maneira particular e pessoal como cada um figura algo em sua própria mente, mas sim a parte substancial daquilo que está sendo figurado. São os pensamentos, e não as representações, que podem ser verdadeiros ou falsos. Vimos, contudo, que é pela linguagem que os pensamentos são expressos e veiculados. Assim, se quisermos nos inteirar a respeito de pensamentos, precisamos antes de tudo nos inteirar sobre como funciona a linguagem, desfazer confusões e tornar explícitos os sentidos. Está aberto o caminho para a filosofia analítica.

sábado, 29 de junho de 2019

Fundamentação à Metafísica dos Costumes (Breve Resumo)


Essa postagem será uma versão resumida em que pretendo reproduzir pelo menos os argumentos principais de Kant em favor de sua filosofia moral. Futuramente, pretendo escrever um novo texto em que possa ilustrar os pontos de contato e de atrito entre o que Kant estava dizendo e outras propostas éticas contemporâneas. Por enquanto, irei me limitar a uma abordagem mais direta sem grandes comentários. O texto abaixo se centra em pontos que podem ser encontrados na primeira e na segunda seção do texto de Kant, visto que a terceira já serve muito mais como uma ponte entre a Fundamentação à Metafísica dos Costumes e o projeto kantiano posterior.



A única coisa boa por si mesma é a boa vontade. Os talentos do espírito, que incluem astúcia, perspicácia, persistência, não podem ser bons por si, porque nas mãos de alguém mal intencionado eles potencializam a perversidade dos atos, em vez de torná-los melhores. Também os dons da fortuna, como dinheiro, saúde e força, de forma alguma são bons em si mesmos, porque sua bondade de depende de que a vontade por trás de seu uso seja ela mesma boa. E, ao contrário do que possa parecer, como a felicidade enquanto objetivo pode levar a atos descontrolados ou excessos por parte dos indivíduos, tampouco ela é algo bom em si.
A ideia de boa vontade se conecta diretamente com a ideia de dever. Com efeito, agir movido por boa vontade significa agir por dever, agir pelo desejo de fazer aquilo que é certo. O fato de uma vontade ser boa depende não dos resultados que ela provoca ou do seu sucesso em realizar o que pretende, mas sim no querer mesmo, na intenção por trás da pessoa que estava agindo. Disso segue que o valor moral de uma ação por dever não se mede por aquilo que ela de fato com segue realizar, pelas alterações que ela provoca no mundo ou por suas consequências serem desejáveis. Antes, o valor de uma ação por dever precisa ser buscado na sua máxima. A máxima é uma espécie de princípio que pode ser abstraído de uma ação qualquer na forma de um enunciado, uma frase que explicita a intenção por trás daquela ação. Por exemplo, quando roubo algo de outrem, minha máxima pode ser “toma para ti aquilo que desejares”. Quando agrido alguém por ter feito algo que me incomodou, minha máxima pode ser “desconta no outro a raiva que ele te causa”, etc.
Então, para julgar uma ação como boa ou ruim, precisamos fazer isso com base não na ação em si, não na conduta externa do agente, mas sim na máxima que ele tinha no momento de agir. Se, como dissemos antes, a ação boa é movida por boa vontade e se boa vontade é agir por dever, então aquelas ações que não forem por dever já restam como ações sem valor moral. Dentre essas temos as ações contra o dever, quando o agente faz o oposto daquilo que deveria. E as ações conforme o dever, quando o agente adota uma conduta correspondente ao que deveria fazer, mas sem que a máxima que motivou sua ação tenha sido uma máxima moralmente boa (como o caso de uma pessoa que ajuda outra a fim de obter benefícios posteriormente).
Já sabemos, então, que agir de forma moralmente correta é agir por dever. Mas como podemos determinar quais deveres temos e quando devemos agir desta ou daquela forma? Um ponto importante aqui para responder a essa pergunta é observar que a ideia de uma ação por dever por si só exclui que essa ação seja motivada por inclinações. Inclinações é um termo que podemos usar para nos referirmos a todo e qualquer tipo de desejo, aspiração, interesse, atração, emoção, etc. Se eu ajo porque quero determinado bem, ou porque sinto determinada emoção, ou porque almejo determinado interesse, aquilo que está me fazendo agir, no fundo, são exatamente esse bem, essa emoção e esse interesse, e não o meu dever.
Consequentemente, para dizer que uma ação é por dever significa dizer que aquilo que a inspira não é nenhuma dessas formas. Ela não pode ser motivada por qualquer dessas coisas, porque do contrário ela já não seria mais ação por dever, e sim ação por inclinação. Em outras palavras, a máxima vinculada a uma ação genuinamente por dever não pode estar subordinada a uma inclinação. Mas o que motiva o agir por dever não são as inclinações, então o que é? Na maioria de nossas ações, fazemos o que fazemos porque queremos atingir certo objetivo, ou porque nos sentimos inclinados a fazer aquilo, ou porque achamos que fazer aquilo nos trará algum benefício. Se o que dissemos até for verdade, nem uma ação pautada assim teria valor moral.
Ora, se, como acabamos de explicar, uma ação por dever não é motivada por inclinações, a única que coisa que pode motivá-la é a vontade de querer fazer a coisa a certa, isto é, o puro sentimento de respeito à lei da qual esse dever deriva. Mas que lei seria essa? Continuando o raciocínio, essa lei, como vimos, não pode apresentar sequer um resquício de inclinação. Já que toda inclinação tem sempre um caráter contingente, ou seja, às vezes se faz presente e às vezes não, uma lei totalmente despida de inclinações só pode ter um caráter universal. Dito de outro modo, ela tem de ser não uma lei que me manda fazer isto ou aquilo dependendo da situação, mas sim uma lei que me manda agir sempre da mesma forma em todas as situações, não importando as circunstâncias. Para ser mais exato, uma vez que o valor moral está na máxima da ação, essa lei moral ordena que eu escolha a minha máxima sempre como se ela fosse uma lei, obrigatória e válida para todos os casos. A lei exige, portanto, que eu aja de maneira tal que eu possa querer que a máxima da minha ação se torne uma lei universal.
Com isso, já sabemos que todo juízo moral verdadeiro advém sempre da razão pura prática, nunca de uma observação a respeito de um fato do mundo. Se imaginássemos um ser dotado unicamente de razão, os juízos morais para ele não seriam nada além disso: juízos morais. As máximas dotadas de valor moral não passariam de simples máximas. Isso porque, possuindo apenas razão, ele não teria outra possibilidade a não ser fazer o que é certo, agir segundo a lei moral lhe ordena.
No caso do ser humano, a situação é diferente. Justamente porque no humano a razão está constantemente competindo com outras forças para determinar como vamos agir. Essas forças são justamente nossas emoções, paixões, desejos, apetites, as inclinações de que estávamos falando. Com efeito, não são raras as vezes em que nosso senso de moralidade nos indica fazer uma coisa, quando nosso desejo é de fazer outra. Assim, no humano, a razão não simplesmente estabelece quais máximas têm valor moral, mas também exige que optemos por seguir a ela (razão) em detrimento dos outros fatores que pesam sobre nossa vontade. Em nós, portanto, os juízos morais que advêm da razão assumem sempre a forma de comandos, de imperativos.
Um imperativo pode ser de dois tipos: um imperativo hipotético ou um imperativo categórico. Imperativo hipotético é aquele que informa qual meio se deve utilizar para atingir determinado fim. Exemplos de imperativos hipotéticos são: “se queres passar, estuda”, “se queres ser respeitado, respeita os outros”, “se queres ter dinheiro, trabalha”, etc. São hipotéticos na medida em que prescrevem um meio na hipótese de se querer um fim específico. Imperativo categórico, por outro lado, é aquele que simplesmente manda fazer algo, sem vinculação com qualquer tipo de fim ou resultado. Por exemplo, “dize a verdade”, “respeita o próximo”, “ajuda o outro”. É chamado de categórico porque não apresenta nenhuma forma de circunstância ou condição.
Como a lei moral jamais pode estar ligada a nenhuma contingência, ela toma a forma sempre de um imperativo categórico e nunca de um imperativo hipotético. Mas como são possíveis esses imperativos? Vejamos. O imperativo hipotético é possível na medida em que eu deseje os fins aos quais ele está vinculado. Se eu quero um certo fim e sei que esse fim só se alcança por certo meio, então eu também quero esse meio. No nosso exemplo, se eu quero passar e sei que só posso passar se estudar, segue-se que eu também quero estudar. No caso do imperativo categórico, no entanto, não pode valer a mesma explicação, exatamente porque nele não existe nenhum fim que se possa querer ou não. Ele apenas está me dizendo que eu preciso fazer alguma coisa (como no exemplo, respeitar o próximo) não importa quais as circunstâncias. Então, no imperativo categórico, não é preciso que eu queira isto ou aquilo. Ao contrário, para que ele seja possível, é preciso simplesmente que eu possa querer a máxima da minha ação em qualquer situação, como se ela fosse uma lei. Donde se extrai uma nova demonstração do que dissemos há pouco: age de maneira tal que possas querer que a máxima da tua ação se torne lei universal.
Mas esta não é a única maneira de exprimir a lei moral. Há certos fatos evidentes à razão que podem nos levar a outras. Com efeito, existem entes no mundo que se encontram à nossa disposição. São coisas que não possuem nenhum tipo de valor ou finalidade/utilidade por si, somente o valor ou a finalidade que nós, enquanto seres racionais, atribuímos a elas. É o caso dos objetos inanimados, dos vegetais e dos animais não racionais. Os seres racionais, contudo, são um caso à parte. Justamente porque possuem razão, eles não estão submetidos às relações de causa e efeito como as outras coisas do mundo. A racionalidade lhes confere a possibilidade controlar suas próprias ações, o que por sua vez lhes permite escolher como querem agir e quais propósitos querem perseguir. Ao contrário do que acontece com os outros seres, não são agentes externos que determinam os fins dos seres racionais, mas sim são eles próprios que dão a si mesmos os seus fins. Tratar um ser racional como se irracional fosse- ou seja, tratar um ser racional como mero meio- significa ignorar sua natureza racional e passar por cima de sua autodeterminação. Significa, em outros termos, rebaixá-lo à categoria de um ser qualquer, quando na verdade ele tem um valor que nenhum outro tem. A única possibilidade realmente racional de tratar um ser como esse, é trata-lo como um fim em si mesmo. Dito isso, o imperativo categórico também se exprime assim: age de maneira tal que trates a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na pessoa de outro, sempre também como um fim em si mesmo, e nunca como um mero meio.
Vemos, então, que a lei moral nunca está pautada em qualquer finalidade externa ao agente, mas sim invariavelmente naquelas finalidades que ele escolhe para si. Se ajo de certa forma porque alguém me disse ou comandou, fica evidente que estou me guiando por uma parâmetro externo à minha vontade. Mesmo quando me deixo levar por um sentimento ou um desejo, aparentemente estou agindo por mim mesmo, porém na verdade estou apenas me subordinando a emoções e desejos que eu mesmo não escolhi ter. A ação com valor moral genuíno só pode surgir quando renuncio a todos os fatores que não sejam a minha própria vontade. A lei moral só é realmente lei moral na medida em que ela não é uma lei que outro me fornece, mas antes uma lei que eu dei a mim mesmo. Por isso, toda vez que eu ajo moralmente, devo ser sempre capaz de me enxergar como autor da lei que me guiou. Donde o imperativo categórico ganha uma terceira formulação: age de maneira tal que a vontade na sua máxima possa ao mesmo tempo considerar a si mesma como legisladora universal. À condição de quem age movido por algo externo à sua própria vontade, damos o nome de heteronomia. Quando alguém neutraliza a influência de todos os móveis externo, e permite que sua vontade por si só determine o seu agir, nesse caso dizemos que existe autonomia. Toda ação heterônoma é necessariamente imoral, e toda ação autônoma sempre terá valor moral.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Modernidade e Reconhecimento segundo Charles Taylor


Hoje falaremos um pouco sobre as ideias desenvolvidas pelo pensador canadense Charles Taylor. Seu nome é conhecido sobretudo no campo das teorias da justiça, em que Taylor, ao lado de autores como Michael Walzer, Michael Sandel e Alasdair MacIntyre, é enquadrado dentro do grupo de críticos ao liberalismo igualitário de John Rawls chamado comunitarismo. As principais contribuições de Taylor são no campo da ética e da filosofia política. Embora seja verdade que sua principal obra é “As Fontes do Self”, ela não será abordada aqui pois ainda não tive a oportunidade de lê-la. Em vez disso, irei me basear em dois de seus livros que já li- “Hegel e a Sociedade Moderna” e “A Ética da Autenticidade”- para que possamos discutir, primeiro, um pouco sobre como esse filósofo encara o mundo moderno e, em seguida, qual o papel que ele atribui ao reconhecimento.
Charles Taylor (1931-)

Assim, partindo daquilo que está dito em “A Ética da Autenticidade”, Taylor identifica três aspectos da sociedade moderna considerados problemático. São três aspectos que, em relação ao mundo antigo e ao mundo medieval, são novidades, mas que ao mesmo tempo contam com enaltecedores, de um lado, e críticos ferrenhos, do outro. Posto que Taylor enfatiza o primeiro e o considera que os outros dois em última análise derivam dele, também irei enfocar sobre o primeiro aspecto, para que depois possamos passar à questão do reconhecimento.
O primeiro aspecto é o chamado individualismo. Por individualismo Taylor pretende expressar o traço marcante das sociedades modernas que consiste na afirmação e na primazia da vida individual. Como sabemos, no medievo, o estilo de vida e as funções desempenhadas pelas pessoas era definido quase que completamente pelo grupo em que ela havia nascido. Quem havia nascido servo estava quase que definitivamente condenado a viver como servo até a morte, assim como os descendentes dos senhores feudais e monarcas praticamente não tinham escolha a não ser levarem uma vida de nobreza e um dia ocuparem os postos deixados por seus ascendentes. Aquilo que podíamos ser ou fazer não era o resultado de uma escolha pessoal, mas sim basicamente um determinação advinda da tradição e da comunidade.
No mundo moderno, contudo, o que existe é quase que o perfeito oposto disso. Em nossas intuições cotidianas, parece não apenas estranho, como até mesmo condenável, que uma pessoa tenha sua vida toda traçada ou a permita ser traçada por algo ou alguém que não ela própria. Com efeito, só quem está autorizado a dizer o que é bom para mim sou eu próprio. Cada qual escolhe como pretende viver e escolhe por si quais objetivos deseja perseguir e quais coisas quer valorizar, quais crenças pretende seguir e qual identidade quer adotar. Em vez de ser uma sociedade em que o indivíduos se guiam por uma suposta ordem natural que lhes impões papéis e deveres pelos quais ninguém optou, a sociedade moderna é aquela em que cada um está em busca dos propósitos que escolheu para si.
O segundo aspecto é a razão instrumental. Uma vez que não acreditamos mais, como disse, em uma ordem natural ou leis naturais que determinam o quem devemos ser o que devemos fazer, as coisas do mundo também perdem qualquer propósito intrínseco. Os animais, a flora, os recursos naturais e outros elementos do mundo externos ao ser humano, na visão moderna, já não possuem nenhuma finalidade, a não ser aquela que nós próprios dermos a eles. Dizer que as coisas não servem a um fim natural/ intrínseco, nesse sentido, significa dizer que podemos usá-las da forma como bem entendermos. Significa dizer que elas são utensílios à disposição da humanidade para fazer com elas o que se achar mais adequado.
O que Taylor chama de razão instrumental, aqui, é o novo tipo de racionalidade que surge uma vez que se passou por esse processo de desencantamento do mundo. Se as coisas estão ao dispor da vontade humana, tudo pode ser reorganizado utilizado de modo a produzir os resultados que queremos. Afastada a ideia cristã de que a usura é pecaminosa, por exemplo, o mercado financeiro pôde se expandir até se tornar o grande sistema de trocas e vendas, lucros e negociações que é hoje. As coisas já não são mais usadas de modo a cumprir aquilo que as leis divinas ou as regras da tradição estabelecem, mas sim de uma forma que elas possam gerar o máximo de benefícios com o mínimo de custos, por isso o nome razão instrumental.
O problema é que a busca cega pela produtividade e pela eficiência acaba por negligenciar questões que de outra forma consideraríamos como importantes, como por exemplo meio-ambiente e a desigualdade social. Na modernidade, aquilo que não está de acordo com a lógica dos lucros e do custo benefício ou é deixado de lado ou é sacrificado em nome do crescimento econômico. A razão instrumental engole todos os outros valores que não sejam aqueles que ela própria endossa.
O terceiro aspecto é a perda da liberdade. Em um mundo em que os indivíduos possuem forte tendência a serem autocentrados e em que o funcionamento das instituições é governado pela razão instrumental, há pelo menos duas maneiras como nós todos temos nossas liberdades diminuídas. A primeira é que as circunstâncias ao nosso redor não raramente nos obrigam a tomar escolhas que de outra forma não tomaríamos. Para usar um exemplo do próprio Taylor, o fato de viver em uma sociedade urbanizada e super complexa faz com que eu não tenha outra escolha senão adquirir um automóvel próprio para atender a meus compromissos, ainda que esse não fosse meu desejo.
Mas existe ainda uma outra maneira, muito mais sutil e por isso mais perigoso, de como nossas liberdades no contexto moderno são cerceadas. O que acontece é o seguinte: por estar imerso uma cultura autointeressada, o indivíduo se preocupa cada vez mais com aquilo que diz respeito à sua vida privada, e cada vez menos com aquilo que não diz respeito a ela. Da forma como ele vê as coisas, aqueles assuntos que não afetam o seu plano de vida, ou pelo menos que não o afetam de modo direto e evidente, são menos importantes e menos dignos de atenção. Dentre esses assuntos está a política, ou seja, o processo de decisões que determina o rumo que a sociedade deve tomar.
Uma vez que a política nos parece mais e mais irrelevante, mais e mais longe daquilo que realmente nos interessa (nossa concepção de bem), maior é a facilidade com que nós entregamos o poder político na mão de pessoas designadas para essa função. Nos regimes democráticos contemporâneos, essas pessoas são os representantes eleitos. O que se observa na prática, segundo Taylor, é que os cidadãos se desconectam da esfera pública para se concentrar em seus projetos pessoais de tal forma que quem de fato tem nas mãos o poder de decidir não são eles, e assim aqueles que foram escolhidos para os cargos. Trata-se de uma situação, em que o único momento de verdadeira influência do povo sobre a esfera pública são nas eleições. E de resto ela fica praticamente entregue àqueles agentes políticos e aos burocratas. No entanto, como a esfera pública impacta diretamente sobre a vida privada, ao perdermos o controle sobre ela, perdemos junto nossa capacidade de decidir em que tipo de sociedade queremos viver. Em outras palavras, perdemos, também, parte de nossa liberdade.
Nesse ponto, é preciso tomar cuidado para evitar maus entendidos. Taylor insiste bastante que não devemos toma-los por um mero detrator da modernidade ou alguém que enxerga nela nada mais do que problemas e decadência. Ao contrário, o objetivo do seu projeto teórico é justamente trazer à luz o que está por trás de cada um desses fenômenos, quais são os ideias que os movimentam e como podemos realiza-los adequadamente sem gerar aquelas condições nefastas que acabamos de descrever.
Assim, no que se refere ao individualismo moderno, Taylor dirá que ele não pode ser reduzido, como pensam muitos anti-modernos, a um mero hedonismo, egoísmo ou busca cega pelos desejos. Muito mais profundo que isso, diz Taylor, no cerne do individualismo está um ideal de autenticidade. A ideia fundamental de que “você deve ser você mesmo”. O motivo pelo qual cada um formula seu plano de vida não é simplesmente que cada um anseia por prazer e satisfação, mas sim porque no fundo e nossa consciência se encontra a ideia de que precisamos ser fiéis a nós mesmos. Em nossa forma moderna de pensar, a vida que tem valor é a vida autêntica, a vida pautada na autorrealização. Com efeito, da forma como vemos o mundo, parece estranho ou até mesmo errado que alguém viva sua vida segundo o que o outro lhe diz, ou segundo o que uma autoridade lhe comanda.
Segundo Taylor, o ideal de autenticidade não surgiu repentinamente no imaginário moderno. Na verdade, ele é o resultado de um longo processo de sedimentação de ideias que vem desde a Antiguidade Tardia, contando com pensadores do mais alto calibre. Agostinho, e a ideia de que o encontro com nossa interioridade é o caminho para a Verdade. Rousseau, e a ideia de que uma vida sob as próprias escolhas é a única vida digna do ser humano. Kant, e a ideia de que só somos livres quando damos a nós próprios a lei que iremos seguir. Herder, e a ideia de que cada ser humano, assim como cada grupo, é uma entidade única e irrepetível cuja identidade se expressa no mundo exterior.
E a questão do reconhecimento, onde se encaixa? O ponto alto da argumentação de Taylor, a meu ver, é mostrar que a realização do ideal de autenticidade não é algo que dependa unicamente do indivíduo, mas principalmente do reconhecimento que ele recebe dos outros. Para ser mais exato, Taylor pretende nos convencer de que a nossa própria identidade é construída e consolidada devido a relação de reconhecimento intersubjetivo. Eu não sou quem sou apenas porque escolho ser assim, mas também porque os outros me reconhecem assim. É dos laços da comunidade que advém a identidade, e não o contrário.
Para sair dos termos abstratos, tomemos um exemplo concreto. Imaginemos um certo homem que seja dito como um bom professor universitário. Vejamos. A partir do nosso conhecimento cotidiano, dizer que ele é um bom professor geralmente implica que os discentes tecem comentários positivos a respeito de suas aulas. Também significa dizer que a instituição à qual ele está vinculada reconhece o seu trabalho e considera que ele cumpre os padrões exigidos. Quer dizer, além disso, que ele foi considerado apto ao ofício pelo estágio probatório. Significa, ainda, que a comunidade científica vê valor na sua produção.
Como podemos ver, o fato de ser um professor é algo que depende, sim, do que ele faz e de como age, mas depende primordialmente, do modo como ele é visto e considerado pelos outros. São as atitudes dos outros, ao elogiá-lo, comentar seu trabalho, aprovar sua produção, etc, que o constituem enquanto um professor que podemos chamar de bom. O que Taylor quer mostrar é que com todos os aspectos de nossa identidade acontece a mesma coisa. Ser pai, amigo, irmão, empregado, presidente, par romântico, rival, inimigo, e tudo o mais que nos define está invariavelmente ligado ao reconhecimento que os outros nos dão. Se o indivíduo autêntico é aquele caracterizado por ser livre, independente, dono de si e bem sucedido, ele só pode ser tudo isso porque os outros assim o reconhecem. Eu só sou livre e autônomo porque vivo e fui criado em um ambiente que faz com que eu veja a mim mesmo assim
É isso que Taylor quer dizer quando diz a identidade humana tem um caráter dialógico. Dialógico aqui quer dizer que cada elemento que compõe essa identidade sempre diz respeito a algo da comunidade a que esse indivíduo pertence. Para exemplificar, na Idade Média, saber quem uma pessoa era implicava saber qual sua família de origem, qual a profissão de seus pais e onde ela havia nascido. No contexto moderno, diferentemente, saber quem uma pessoa é envolve saber qual seu plano de vida pessoal, quais suas preferências, qual sua ocupação e a qual classe ela pertence. As escolhas feitas por alguém podem, é verdade, influenciar fortemente no quanto de recursos esse alguém terá, mas jamais poderá influenciar o fato de que a posse ou ausência desses recursos seja um fator definidor da posição social.
Por isso que na modernidade, o reconhecimento, como nunca antes na história, passa a ser um problema, isto é, como uma questão a ser pensada. Se o reconhecimento já não é mais conferido a partir de um critério fixo (o estamento de origem), ele agora precisa ser conquistado. Contudo, se, como vimos, o reconhecimento depende invariavelmente dos outros, o indivíduo ou o grupo, isoladamente, não é capaz de determinar seu sucesso ou fracasso ou obtê-lo.
A consequência direta disso é que toda negação de reconhecimento é sempre também uma negação da identidade. Toda vez que humilhamos, constrangemos ou impedimos alguém de manifestar seu jeito de ser, estamos negando a ela sua própria identidade. Se o reconhecimento é o que constrói a identidade, é a falta dele o que a torna vulnerável. Assim, incutir em outrem uma imagem depreciada ou negativa de si, como alguém de menor valor e menos capaz é talvez a forma mais eficaz de manter uma pessoa sob opressão.
A mesma lógica vale para grupos. Todos aqueles grupos cujas práticas e formas de vida são sistematicamente proibidas, malvistas, proscritas e desconsideradas, ou até mesmo perseguidas e caçadas, sofre um constante atentado contra sua própria identidade. Isso possui uma consequência importantíssima para o campo da política. A saber, sempre que a instituições combatem ou reprimem uma determinada prática coletiva, elas estão negando reconhecimento ao grupo de origem daquela prática, o que significa, como vimos, vulnerar a sua identidade. É o que acontece, por exemplo, quando uma sociedade obriga indígenas a trocarem suas vestimentas tradicionais pelas roupas ocidentais. Ou quando obriga uma comunidade religiosa a abandonar seus ritos que envolvem sacrifício de animais. Toda vez que algo assim ocorre, para Taylor, o que está acontecendo é uma tentativa de imposição de um modo de vida sobre outro, de uma forma de existir e ver o mundo sobre outra, ainda que para nós possa parecer como sendo apenas a coisa mais certa e racional a fazer.
Politicamente falando, essa questão do reconhecimento, em Taylor, representa uma lição que precisa ser absorvida pelo liberalismo. Se uma sociedade liberal pretende ser aquela em que pode haver pluralidade, isso imediatamente exclui qualquer forma de domesticação ou adaptação forçada de grupos não liberais que existam dentro dela. A bem da verdade, o liberalismo, em suas raízes, é ele próprio uma cultura, uma forma de decidir quais coisas possuem valor e qual a vida boa a ser vivida.
É uma concepção dotada de seus méritos, como admite o próprio Taylor, mas que precisa estar atenta para seus próprios limites. No momento em que sejam implementadas práticas como aquelas que citamos, ou outras à maneira da colonização, o que se tem é exatamente o tipo de dominação e imposição que o próprio liberalismo havia se proposto a combater. Só que uma versão etnocêntrica e, do ponto de vista de quem está acostumado a sociedades liberais, travestida de legitimidade.
A melhor saída seria, então adotar uma política que permita dentro do Estado formas de vida que não liberais, em vez de uma política de uniformização da população interna segundo os mesmos parâmetros. Ou, para usar os termos de Taylor, uma política do reconhecimento no lugar de uma política da igualdade. Dado o que se disse sobre o reconhecimento, a opção política moralmente mais responsável de governar seria entender que, dentro do mesmo território, há uma pluralidade de culturas que demandam respeito. Em outras palavras, seria uma sociedade multicultural.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

H.L.A. Hart: Uma Introdução



 A postagem de hoje é dedicada a um dos autores que mais gostei de estudar em teoria do Direito e que até hoje me parece ser o que apresenta os argumentos mais perspicazes com o maior grau de simplicidade: Herbert L. A. Hart (1907-1992). A obra mais importante de Hart para a teoria do Direito foi “O Conceito de Direito”, publicado em 1961, e com insights absolutamente relevantes ainda para os dias atuais. Pretendo fazer, no que se segue, uma exposição geral do projeto de Hart. Mais especificamente, tentarei lançar um pouco de luz sobre o modo como Hart pretende fazer suas análises e a tradição anterior à qual ele está se contrapondo. Em muitos pontos serei breve e não apresentarei a riqueza de detalhes necessária, mas espero que isto possa servir ao menos como uma orientação para quem esteja estudando o assunto pela primeira vez.
No curto prefácio que a obra tem, Hart apresenta sua proposta como uma investigação que possui ao mesmo tempo duas facetas: é uma jurisprudência analítica e uma sociologia descritiva. Vamos começar falando sobre o que podemos entender sobre essas duas coisas.
Herbert Hart (1907-1992)
Jurisprudência aqui consta como tradução de jurisprudence, o nome que se dá à Teoria do Direito em inglês. No sentido em que Hart nos apresenta, jurisprudência analítica é uma abordagem que consiste em identificar e esclarecer os principais conceitos envolvidos no Direito. Conceitos como os de coerção e regra, por exemplo. Esta metodologia não é exatamente uma invenção de Hart, porque já existia em teóricos anglo-saxões anteriores a ele. A preocupação original da jurisprudência analítica é trazer clareza e certeza sobre o que se está dizendo e como devemos compreender os aportes conceituais que o Direito envolve. Sociologia descritiva, por sua vez, não quer dizer aqui que Hart irá se filiar a um método sociológico qualquer. O sentido dessa expressão é mais simples: quer dizer que a análise de Hart pretende também nos proporcionar informações a respeito das práticas sociais que constituem o Direito, os tipos de comportamento e as atitudes envolvidas nos fenômenos jurídicos.
Agora, vejamos como as duas coisas se relacionam.
Na época em que escreveu o livro, Hart estava fortemente influenciado por uma nova forma de fazer filosofia analítica que havia se desenvolvido em Oxford, onde dava aulas, por pensadores que inclusive faziam parte de seus círculos de amizade. Era a chamada filosofia da linguagem comum, ou simplesmente Escola de Oxford. Entre seus principais nomes, podemos encontrar J.L. Austin e Gilbert Ryle. Tal como outras vertentes da filosofia analítica, a filosofia da linguagem comum acreditava que problemas filosóficos poderiam ser melhor e maia apropriadamente solucionados pelo uso de esclarecimentos linguístico-conceituais. Assim, dada uma questão filosófica qualquer, a forma padrão de proceder seria separar cada um dos conceitos importantes que estão envolvido, depois ir delimitando o sentido de cada um deles. Como, para a filosofia analítica em geral, conceitos são primordialmente entidades linguísticas, o sentido do conceito seria dado pela análise da linguagem, até que a problemática fosse solucionada.
No entanto, a Escola de Oxford, sobretudo na figura de J.L. Austin, possuía um grande diferencial, que era a forma como ela enxergava uma relação entre o âmbito linguístico e o âmbito prático. Inspirado fortemente no segundo Wittgenstein (da obra Investigações Filosóficas), Austin vem a romper com o modo tradicional como pensamos a linguagem e a ação. Segundo o que nossas intuições cotidianas tenderiam a nos dizer, ação tem a ver com aquilo que nós fazemos que efetivamente provoca algum tipo de transformação ou mudança real no mundo, que altera o estado de coisas ao nosso redor, como arrumar um cômodo da casa, quebrar um ovo ou participar de um protesto. Já a linguagem seria algo mais relacionado à fala e à escrita, à transmissão de informações e o estabelecimento de comunicações, mas não algo que altere a realidade presente.
J.L. Austin (1911-1960)
Pois bem, aquilo que Austin, bebendo em Wittgenstein, irá propor é exatamente que entre a linguagem e as ações existe uma conexão fundamental. Mais especificamente, a ideia fundamental de Austin que fornece combustível para o pensamento de Hart, é que toda linguagem está sempre conectada com uma prática social. O significado de uma expressão linguística só pode ser extraído a partir da maneira como ela é usada por nós dentro de situações reais. Quando esclarecemos o que determinada palavra significa, não estamos apenas produzindo uma definição tal qual um verbete de um dicionário. Toda explicação a respeito da linguagem invariavelmente nos remete ao tipo de prática com a qual aquela linguagem está associada.
Vamos ver um exemplo para que isso fique mais claro. No falar comum da língua portuguesa, as expressões “rosto” e “cara” indicam uma mesma coisa, normalmente, ou seja, podemos dizer que elas têm uma mesma referência: a face. No entanto, ninguém pode negar que uma coisa é quando se diz “vou dar um beijo no seu rosto” e outra totalmente diferente quando se diz “vou dar soco na sua cara”. Tanto é verdade que, se trocássemos uma palavra pela outra nas duas situações, certamente nos soaria estranho.
A diferença, que nesse caso está seguramente no nível do sentido, diria Austin, só pode ser encontrada na maneira como as duas expressões são efetivamente usadas. “Vou dar um beijo do seu rosto” é um enunciado utilizado em situações que envolvem relações de afeto e carinho, ao passo que “vou dar um soco na sua cara” implica violência e agressão. A primeira serve para nos dirigirmos, normalmente, a pessoas que nos são queridas; a segunda, a pessoas que por alguma razão nos provocam maus sentimentos ou repúdio. Assim, ao explicarmos o que cada uma das duas significa, trazemos à tona as práticas de como e quando as usamos. Da mesma maneira, o motivo pelo qual dizemos que esta ou aquela expressão é racista (como “preto safado”), misógina (como “vadia”) ou preconceituosa, é porque o tipo de práticas e situações em que elas são empregas são situações que colocam determinados indivíduos em posição de inferioridade. São expressões usadas sempre para tratar determinadas pessoas de uma determinada maneira, a saber, colocando-as em posição de inferioridade.
Nesse sentido, conforme Wittgenstein, a linguagem não é apenas uma etiquetagem ou uma forma de representar as coisas do mundo. Ela é, antes de tudo, uma forma de se comportar e reagir perante situações. Disso, Hart tirará a ideia de que, se queremos compreender como o Direito funciona o que são os conceitos que ele emprega, precisamos olhar para as condições e para a maneira como eles são usados na prática. Se queremos saber o que é coerção, devemos nos perguntar “em que situação se diz que alguém foi coagido?”. Se queremos saber o que é uma regra, devemos nos perguntar “em que situação se diz que há uma regra?”. Ou para usar um par de conceitos famosamente analisados por Hart, se queremos saber qual a diferença entre dizer que alguém “foi obrigado” a fazer tal coisa e dizer que alguém “tinha a obrigação” de fazer tal coisa, precisamos nos questionar em que condições dizemos “foi obrigado a” e em que condições dizemos “teve a obrigação de”.
Portanto, a conexão entre a jurisprudência analítica e a sociologia descritiva se dá na medida em que a análise de conceitos nos revela sobre as práticas sociais. A metodologia de Hart é sociológica, vale repetir, não porque ela faça uso da Sociologia enquanto ciência, mas sim porque ela pretende nos explicar de que forma as noções que estão na base do Direito vividas e utilizadas na realidade. O estudo dos conceitos é importante porque é a partir dele que extrairemos informações sobre as práticas. O estudo das práticas é importante porque é isso que faz com que a teoria do Direito se adeque a nossas intuições e não seja excessivamente abstrata.
Dito isso, podemos falar agora sobre a teoria de Hart em contraste com as anteriores adversárias. No primeiro capítulo do livro, Hart diz que prefere deixar de lado a pergunta direta "o que é o direito", e que em vez disso prefere lidar com três outras perguntas que considera os motivos pelos quais temos dificuldade em dizer de forma definitiva o que o direito é. São elas: (1) como a obrigação jurídica se relaciona com e difere da coerção? (2) como a obrigação jurídica se relaciona com e difere da obrigação moral? (3) o que são regras? O que significa dizer que regras existem? Farei agora um comentário que passa pela resposta que dart irá dar para a primeira pergunta e abre caminho para sua resposta à terceira, de modo que a segunda irei comentar em outro momento de forma mais particularizada.
À época em que O Conceito de Direito foi escrito, o pensamento jurídico de matriz anglo-saxã era dominado por uma vertente de positivismo jurídico que podemos chamar aqui de imperativismo. Essa teoria tem suas raízes na tradição utilitarista desenvolvida no século XVIII por Jeremy Bentham e ganhou seus contornos mais definitivos em John Austin (1790-1859). Não confundir este com J.L. Austin, de quem falamos há pouco.
John Austin (1790- 1869)
No contexto em que escreveu sua obra mais importante, The Province of Jurisprudence Determined, Austin estava fortemente influenciado pelos ideias de cientificismo e a crença da razão como fonte última do conhecimento confiável. Era um momento histórico em que as ciências humanas e sociais estavam ainda dando seus primeiros passos, vivendo sempre à sombra do paradigma investigativo das ciências naturais. Acreditava-se que, para que fosse possível de se estudar a história, a cultura, o Direito e a sociedade em geral, seria preciso que os métodos utilizados incorporassem aspectos dos métodos utilizados no estudo dos fenômenos naturais. Dentre outras coisas, isso implicava o afastamento (ou pelo menos a tentativa de afastamento) de todo e qualquer juízo de valor, a elevação da objetividade a norma fundamental, o gosto pela linguagem clara e com significados precisos, etc.
Essa explicação inicial é importante porque, sem ela, não seremos capazes de entender porque Austin deu à sua teoria do Direito às feições que deu. Ao longo de sua formulação, Austin estava preocupado não somente em fornecer uma descrição do Direito axiologicamente neutras, mas também em extirpar toda e qualquer noção metafísica, toda e qualquer ideia abstrata. Tudo com a intenção de evitar que a cientificidade da abordagem ficasse comprometida, ou que ela acabasse por se perder em divagações sem sentido, em busca de respostas a perguntas que jamais poderiam ser respondidas pela própria falta de substancialidade.
Assim, a teoria de Austin possui um apelo de utilizar, sempre e na maior medida possível, apenas elementos fáticos, dos quais podemos ter certeza por serem verificáveis na realidade. Podemos apresentar seu imperativismo sustentado por dois eixos principais. Em primeiro lugar, que o Direito nada mais é do que um conjunto de ordens baseadas em ameaça. Em segundo lugar, que essas ordens são sempre direcionadas por um soberano a um súdito, sendo que entre este e aquele existe um hábito de obediência.
As normas que compõem o Direito nada mais são do que ordens, comandos, enunciados imperativos. Elas sempre nos mandam fazer ou não fazer alguma coisa, como pagar impostos, não matar, alistar-se nas forças armadas, etc. Aquilo que nos faz cumprir essas ordens, mesmo que não queiramos, são ameaças de consequências que podem resultar do descumprimento. No caso de pagar impostos, a ameaça é a execução de bens. No caso de não matar, a ameaça é o encarceramento. No caso de alistar-se nas forçar armadas, a ameaça é a multa e a privação de documentos essenciais. Para cada ordem que o Direito nos apresenta, há sempre uma ou mais ameaças que nos são apresentadas. Essas ameaças têm como efeito nos fazer obedecer ao que foi comandado, por medo da dor e dos prejuízos que pode advir do contrário. O Direito é, portanto, essencialmente fundamentado na coação.
Mas essas ordens baseadas em ameaça não são dispersas. Tampouco surgem do nada. Na verdade, todas elas têm uma origem comum. Elas emanam sempre de um soberano, quer diretamente de suas ordens, quer das ações de alguém a quem ele tenha concedido o poder de agir em seu nome. Identificamos o soberano, como aquele que é habitualmente obedecido, mas que não obedece a ninguém. Segundo essa definição, o soberano nem sempre será uma pessoa especificamente. Nada impede que ele seja um grupo de pessoas, um parlamento ou um órgão que detém o poder. Em um sistema jurídico, a contraparte do soberanos são os seus súditos. De forma como dissemos sobre o soberano, o súdito é aquele que habitualmente obedece àquilo que lhe é ordenado, mas habitualmente não está em posição de comandar ninguém. O sentido de habitualmente aqui é que as coisas normalmente acontecem assim. Ou seja, ao longo do tempo, o fato de se obedecer ao soberano e o fato de ele próprio não obedecer a ninguém é uma constante.
Vemos, portanto, que a teoria de Austin confere um papel preponderante à coerção. O Direito é um conjunto de ordens baseadas em ameaça, emitidas pelo soberano aos súditos. Os súditos estão sempre à mercê do soberano. Nos capítulo III e IV de O Conceito de Direito, Hart irá explorar as fragilidades dessa teoria, atacando, respectivamente, as ideias de ordem baseada em ameaça e de hábito de obediência. Finalizarei fazendo um esboço do que Hart diz a respeito desses dois pontos. Para cada um, são apresentados três argumentos. Tentaria elenca-los de forma sucinta, mas preservando seu conteúdo.
Sobre ordens baseadas em ameaça.
Primeiro, Hart aponta que essa noção talvez até se aplique bem às normas de natureza penal, mas tem muita dificuldade em explicar aquelas normas que criam permissões e autorizações. Regras como as de formação de contratos, testamentos e casamentos, por exemplo, são regras que não nos proíbem nem nos obrigam a fazer algo, mas antes nos dão a possibilidade de fazê-lo e as instruções de como proceder. Daí porque dificilmente podemos dizer que são normas baseadas em ameaça.
Segundo, nas atuais formas de produção do Direito, as normas produzidas se aplicam inclusive a quem as criou. Quando os congressistas aprovam uma lei que cria um novo crime, por exemplo, eles próprios são passíveis de serem investigados e julgados com base nele. Se tentássemos ver nisso uma ordem baseada em ameaça, chegaríamos à conclusão de que aquele que criou a lei (o congressista) estaria criando uma ordem com base em ameaça (de não cometer o crime) para ele mesmo. Ora, não faz sentido algum uma pessoa ameaçar a si própria.
Terceiro, para que entendamos certo enunciado como uma ordem, precisamos quem o está emitindo e se essa pessoa é dotada de autoridade para isso. Vemos isso claramente no dia a dia, quando uma criança se recusa a fazer o que lhe manda seu irmão mais velho dizendo “você não manda em mim!”. Ocorre que há normas no Direito que são derivadas de costume. Ora, pela sua própria natureza, é impossível determinarmos quem foi a pessoa que criou um costume, motivo pelo qual ele jamais poderia ser remetido ao soberano, e portanto jamais poderia ser considerado uma ordem baseada em ameaça.
Finalmente, sobre a ideia de hábito de obediência.
Imaginemos, diz Hart, um soberano chamado Rex I e seu filho, Rex II. Suponhamos que Rex I falece e é substituído por Rex II. Uma teoria baseada em hábito de obediência teria dificuldades em explicar alguns importantes a esse respeito. Primeiramente, sobre a continuidade das leis. Em situações normais, as leis que foram criadas por Rex I permaneceriam valendo mesmo depois de sua morte, a não ser que Rex II decidisse por revoga-las após tomar posse como soberano. No entanto, se a validade das leis é pautada em hábito de obediência, elas deveriam ter deixado de valer no momento em que Rex I morreu, já que o hábito de obediência que existia para com ele também deixou de existir. Não se explica, portanto, como leis podem valer ainda depois da mudança de soberano. A explicação, segundo Hart, só poderia ser dada pela existência de uma regra de validade.
Em segundo lugar, um hábito de obediência não explica como um soberano pode tomar o lugar de outro. Até a morte de Rex I, Rex II ainda não havia tido oportunidade de governar, do que se conclui que em relação a ele ainda não havia nenhum hábito de obediência. Se é assim, porque aqueles que obedeciam a Rex I deveriam agora obedecer a Rex II. Em seu primeiro dia de reinado, ele ainda não seria habitualmente obedecido por ninguém. Nesse sentido, não haveria nada que explicasse a suposto obrigação em passar em obedecer a ele a partir desse momento. A explicação, diz novamente Hart, só poderia ser dada através de uma regra de sucessão.
Terceiro e último, não podemos encontrar, nos sistemas democrático contemporâneos, nada que nos pareça razoável de descrever como um sistema em que existe hábito de obediência em relação ao soberano. Mesmo aqueles que detém grandes poderes, como presidentes, cortes supremas, ministros de estado e líderes de parlamento, todos eles respondem a alguém pelos seus atos e infrações cometidas. Não há um posto que esteja isento de qualquer responsabilidade e cujo ocupante esteja livre para mandar e desmandar o que quiser, quando quiser. Significa dizer que, nesses sistemas, que são preponderantes e significativos atualmente, não existe algo comparável a um soberano habitualmente obedecido, tal como Austin parece descrever.
Algumas palavra à guisa de conclusão. Depois de tudo isso, Hart nos deixou claro que não é possível elaborar uma teoria do Direito que seja puramente factual. Toda explicação baseada apenas na coerção e nas relações de poder empiricamente verificáveis padeceria de insuficiência e/ou incoerência. Contra Austin, portanto, uma teoria do Direito plausível não pode se sustentar a menos que lance mão de conceitos normativos. No caso de Hart, essa transição se dá pela despedida do conceito de ordem e imperativo para o conceito de regra. O que são regras para Hart e como elas nos ajudam a entender o Direito será objeto de uma outra postagem. Nesta, por enquanto, espero ter sido claro.