Essa postagem será uma versão resumida
em que pretendo reproduzir pelo menos os argumentos principais de Kant em favor
de sua filosofia moral. Futuramente, pretendo escrever um novo texto em que
possa ilustrar os pontos de contato e de atrito entre o que Kant estava dizendo
e outras propostas éticas contemporâneas. Por enquanto, irei me limitar a uma
abordagem mais direta sem grandes comentários. O texto abaixo se centra em
pontos que podem ser encontrados na primeira e na segunda seção do texto de
Kant, visto que a terceira já serve muito mais como uma ponte entre a
Fundamentação à Metafísica dos Costumes e o projeto kantiano posterior.
A única coisa boa por si mesma é a boa vontade. Os talentos do espírito, que incluem astúcia, perspicácia, persistência, não podem ser bons por si, porque nas mãos de alguém mal intencionado eles potencializam a perversidade dos atos, em vez de torná-los melhores. Também os dons da fortuna, como dinheiro, saúde e força, de forma alguma são bons em si mesmos, porque sua bondade de depende de que a vontade por trás de seu uso seja ela mesma boa. E, ao contrário do que possa parecer, como a felicidade enquanto objetivo pode levar a atos descontrolados ou excessos por parte dos indivíduos, tampouco ela é algo bom em si.
A
ideia de boa vontade se conecta diretamente com a ideia de dever. Com efeito,
agir movido por boa vontade significa agir por dever, agir pelo desejo de fazer
aquilo que é certo. O fato de uma vontade ser boa depende não dos resultados
que ela provoca ou do seu sucesso em realizar o que pretende, mas sim no querer
mesmo, na intenção por trás da pessoa que estava agindo. Disso segue que o
valor moral de uma ação por dever não se mede por aquilo que ela de fato com
segue realizar, pelas alterações que ela provoca no mundo ou por suas
consequências serem desejáveis. Antes, o valor de uma ação por dever precisa
ser buscado na sua máxima. A máxima é
uma espécie de princípio que pode ser abstraído de uma ação qualquer na forma
de um enunciado, uma frase que explicita a intenção por trás daquela ação. Por
exemplo, quando roubo algo de outrem, minha máxima pode ser “toma para ti
aquilo que desejares”. Quando agrido alguém por ter feito algo que me
incomodou, minha máxima pode ser “desconta no outro a raiva que ele te causa”,
etc.
Então,
para julgar uma ação como boa ou ruim, precisamos fazer isso com base não na
ação em si, não na conduta externa do agente, mas sim na máxima que ele tinha
no momento de agir. Se, como dissemos antes, a ação boa é movida por boa
vontade e se boa vontade é agir por dever, então aquelas ações que não forem por dever já restam como ações sem valor
moral. Dentre essas temos as ações contra o dever, quando o agente faz o oposto
daquilo que deveria. E as ações conforme o dever, quando o agente adota uma
conduta correspondente ao que deveria fazer, mas sem que a máxima que motivou
sua ação tenha sido uma máxima moralmente boa (como o caso de uma pessoa que
ajuda outra a fim de obter benefícios posteriormente).
Já
sabemos, então, que agir de forma moralmente correta é agir por dever. Mas como
podemos determinar quais deveres temos e quando devemos agir desta ou daquela
forma? Um ponto importante aqui para responder a essa pergunta é observar que a
ideia de uma ação por dever por si só exclui que essa ação seja motivada por
inclinações. Inclinações é um termo que podemos usar para nos referirmos a todo
e qualquer tipo de desejo, aspiração, interesse, atração, emoção, etc. Se eu
ajo porque quero determinado bem, ou porque sinto determinada emoção, ou porque
almejo determinado interesse, aquilo que está me fazendo agir, no fundo, são
exatamente esse bem, essa emoção e esse interesse, e não o meu dever.
Consequentemente,
para dizer que uma ação é por dever significa dizer que aquilo que a inspira
não é nenhuma dessas formas. Ela não pode ser motivada por qualquer dessas
coisas, porque do contrário ela já não seria mais ação por dever, e sim ação
por inclinação. Em outras palavras, a máxima vinculada a uma ação genuinamente
por dever não pode estar subordinada a uma inclinação. Mas o que motiva o agir
por dever não são as inclinações, então o que é? Na maioria de nossas ações,
fazemos o que fazemos porque queremos atingir certo objetivo, ou porque nos
sentimos inclinados a fazer aquilo, ou porque achamos que fazer aquilo nos
trará algum benefício. Se o que dissemos até for verdade, nem uma ação pautada
assim teria valor moral.
Ora,
se, como acabamos de explicar, uma ação por dever não é motivada por inclinações,
a única que coisa que pode motivá-la é a vontade de querer fazer a coisa a
certa, isto é, o puro sentimento de respeito à lei da qual esse dever deriva.
Mas que lei seria essa? Continuando o raciocínio, essa lei, como vimos, não
pode apresentar sequer um resquício de inclinação. Já que toda inclinação tem
sempre um caráter contingente, ou seja, às vezes se faz presente e às vezes
não, uma lei totalmente despida de inclinações só pode ter um caráter
universal. Dito de outro modo, ela tem de ser não uma lei que me manda fazer
isto ou aquilo dependendo da situação, mas sim uma lei que me manda agir sempre
da mesma forma em todas as situações, não importando as circunstâncias. Para
ser mais exato, uma vez que o valor moral está na máxima da ação, essa lei
moral ordena que eu escolha a minha máxima sempre como se ela fosse uma lei,
obrigatória e válida para todos os casos. A lei exige, portanto, que eu aja de maneira tal que eu possa querer que a
máxima da minha ação se torne uma lei universal.
Com
isso, já sabemos que todo juízo moral verdadeiro advém sempre da razão pura
prática, nunca de uma observação a respeito de um fato do mundo. Se
imaginássemos um ser dotado unicamente de razão, os juízos morais para ele não
seriam nada além disso: juízos morais. As máximas dotadas de valor moral não
passariam de simples máximas. Isso porque, possuindo apenas razão, ele não
teria outra possibilidade a não ser fazer o que é certo, agir segundo a lei
moral lhe ordena.
No
caso do ser humano, a situação é diferente. Justamente porque no humano a razão
está constantemente competindo com outras forças para determinar como vamos
agir. Essas forças são justamente nossas emoções, paixões, desejos, apetites,
as inclinações de que estávamos falando. Com efeito, não são raras as vezes em
que nosso senso de moralidade nos indica fazer uma coisa, quando nosso desejo é
de fazer outra. Assim, no humano, a razão não simplesmente estabelece quais
máximas têm valor moral, mas também exige que optemos por seguir a ela (razão)
em detrimento dos outros fatores que pesam sobre nossa vontade. Em nós,
portanto, os juízos morais que advêm da razão assumem sempre a forma de
comandos, de imperativos.
Um
imperativo pode ser de dois tipos: um imperativo hipotético ou um imperativo
categórico. Imperativo hipotético é aquele que informa qual meio se deve
utilizar para atingir determinado fim. Exemplos de imperativos hipotéticos são:
“se queres passar, estuda”, “se queres ser respeitado, respeita os outros”, “se
queres ter dinheiro, trabalha”, etc. São hipotéticos na medida em que
prescrevem um meio na hipótese de se querer um fim específico. Imperativo
categórico, por outro lado, é aquele que simplesmente manda fazer algo, sem
vinculação com qualquer tipo de fim ou resultado. Por exemplo, “dize a verdade”,
“respeita o próximo”, “ajuda o outro”. É chamado de categórico porque não
apresenta nenhuma forma de circunstância ou condição.
Como
a lei moral jamais pode estar ligada a nenhuma contingência, ela toma a forma
sempre de um imperativo categórico e nunca de um imperativo hipotético. Mas
como são possíveis esses imperativos? Vejamos. O imperativo hipotético é
possível na medida em que eu deseje os fins aos quais ele está vinculado. Se eu
quero um certo fim e sei que esse fim só se alcança por certo meio, então eu
também quero esse meio. No nosso exemplo, se eu quero passar e sei que só posso
passar se estudar, segue-se que eu também quero estudar. No caso do imperativo
categórico, no entanto, não pode valer a mesma explicação, exatamente porque
nele não existe nenhum fim que se possa querer ou não. Ele apenas está me
dizendo que eu preciso fazer alguma coisa (como no exemplo, respeitar o
próximo) não importa quais as circunstâncias. Então, no imperativo categórico,
não é preciso que eu queira isto ou aquilo. Ao contrário, para que ele seja
possível, é preciso simplesmente que eu possa querer a máxima da minha ação em
qualquer situação, como se ela fosse uma lei. Donde se extrai uma nova
demonstração do que dissemos há pouco: age de maneira tal que possas querer que
a máxima da tua ação se torne lei universal.
Mas
esta não é a única maneira de exprimir a lei moral. Há certos fatos evidentes à
razão que podem nos levar a outras. Com efeito, existem entes no mundo que se
encontram à nossa disposição. São coisas que não possuem nenhum tipo de valor
ou finalidade/utilidade por si, somente o valor ou a finalidade que nós,
enquanto seres racionais, atribuímos a elas. É o caso dos objetos inanimados,
dos vegetais e dos animais não racionais. Os seres racionais, contudo, são um
caso à parte. Justamente porque possuem razão, eles não estão submetidos às
relações de causa e efeito como as outras coisas do mundo. A racionalidade lhes
confere a possibilidade controlar suas próprias ações, o que por sua vez lhes
permite escolher como querem agir e quais propósitos querem perseguir. Ao
contrário do que acontece com os outros seres, não são agentes externos que
determinam os fins dos seres racionais, mas sim são eles próprios que dão a si mesmos os seus fins. Tratar um
ser racional como se irracional fosse- ou seja, tratar um ser racional como mero meio- significa ignorar sua
natureza racional e passar por cima de sua autodeterminação. Significa, em
outros termos, rebaixá-lo à categoria de um ser qualquer, quando na verdade ele
tem um valor que nenhum outro tem. A única possibilidade realmente racional de
tratar um ser como esse, é trata-lo como um fim
em si mesmo. Dito isso, o imperativo categórico também se exprime assim: age de maneira tal que trates a humanidade,
tanto na tua pessoa quanto na pessoa de outro, sempre também como um fim em si
mesmo, e nunca como um mero meio.
Vemos,
então, que a lei moral nunca está pautada em qualquer finalidade externa ao
agente, mas sim invariavelmente naquelas finalidades que ele escolhe para si. Se
ajo de certa forma porque alguém me disse ou comandou, fica evidente que estou
me guiando por uma parâmetro externo à minha vontade. Mesmo quando me deixo
levar por um sentimento ou um desejo, aparentemente estou agindo por mim mesmo,
porém na verdade estou apenas me subordinando a emoções e desejos que eu mesmo
não escolhi ter. A ação com valor moral genuíno só pode surgir quando renuncio
a todos os fatores que não sejam a minha própria vontade. A lei moral só é
realmente lei moral na medida em que ela não é uma lei que outro me fornece,
mas antes uma lei que eu dei a mim mesmo.
Por isso, toda vez que eu ajo moralmente, devo ser sempre capaz de me enxergar
como autor da lei que me guiou. Donde o imperativo categórico ganha uma
terceira formulação: age de maneira tal
que a vontade na sua máxima possa ao mesmo tempo considerar a si mesma como
legisladora universal. À condição de quem age movido por algo externo à sua
própria vontade, damos o nome de heteronomia.
Quando alguém neutraliza a influência de todos os móveis externo, e permite que
sua vontade por si só determine o seu agir, nesse caso dizemos que existe autonomia. Toda ação heterônoma é necessariamente
imoral, e toda ação autônoma sempre terá valor moral.
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