Em
seu artigo “Sobre o Sentido e a Referência” (1892), Gottlob Frege (1848- 1925)
procurou dar uma solução para o que iremos chamar aqui de paradoxo das igualdades.
A explicação que Frege dá a esse paradoxo passa pelo que foi um dos momentos
fundantes da filosofia analítica, a saber, o estabelecimento da distinção entre
sentido e referência. É verdade que essa distinção sofreu diversas críticas ao
longo dos anos e parte significativa dos autores analíticas ou não a empregam
mais ou a consideram superada. Como, no entanto, ela historicamente exerceu
influência tanto sobre Russell quanto sobre (o primeiro) Wittgenstein, decidi
hoje fazer uma postagem abordando as ideias gerais que ela apresenta. O texto
original, além da tese central, analisa uma série de casos envolvendo sentenças
de tipos diferentes, o que o torna a meu ver cansativo. Por isso, para essa
postagem irei me limitar a falar sucintamente sobre a essência da proposta do
artigo.
Acredito
que seja importante começar com um rápido esclarecimento sobre quem era Frege
dentro da filosofia e quais seus propósitos ao propor essa distinção. Frege, na
história das ideias, foi um dos autores responsáveis pela chamada guinada
linguística, uma mudança tanto das questões filosóficas principais quanto da
maneira de se fazer filosofia, atraindo os holofotes para a linguagem. Frege,
especificamente, estava comprometido com a defesa de uma certa forma de
logicismo: a tese segundo a qual verdades matemáticas em última instância
poderiam ser reduzidas a verdades da lógica.
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Gottlob Frege (1848-1925) |
Para
isso, contudo, Frege estava ciente de que a lógica precisaria ir além da lógica
aristotélica tradicional. Convencido de que o modo aristotélico de estudar
sentenças com base nas noções de sujeito e predicado havia se tornado limitada
demais, Frege propôs que o modo de fazer lógica passasse por uma mudança,
introduzindo noções como as de função, argumento e conceito (que em Frege tem
um sentido específico). O resultado é que a lógica como concebida por Frege, e
de certa forma levada adiante por Russell era muito mais próxima da matemática,
sobretudo na forma de redigir sentenças, empregando símbolos tipicamente
matemáticos, etc.
Dito
isso, passemos logo para o problema que Frege estava preocupado em resolver. De
uma forma resumida, trata-se da seguinte questão: como é possível que uma identidade
seja verdadeira e informativa ao mesmo tempo? Podemos entender isso mais
facilmente se pensarmos em um exemplo. Suponhamos que “a=b” seja uma afirmação
verdadeira. Nesse caso, estamos dizendo que “a” é idêntico a “b”. Ora, se os
dois são iguais, isto é, se existe uma relação de identidade entre os dois,
isso quer dizer que onde houver “a”, pode-se substituir por “b”, e vice versa. Se
fizemos isso com a nossa afirmação anterior, trocando “b” por “a”, ficaremos
com “a-=a”. Podemos dizer, então, que as duas afirmações (“a=b” e “a=a”) são
equivalente. Mas é exatamente aqui que surge o problema. “a=b” é uma identidade
informativa, ou seja, ela é capaz de transmitir uma informação nova, dizer uma
coisa que antes poderíamos não saber. Por sua vez, “a=a” não é uma identidade
informativa, é completamente trivial e óbvia. Não diz nada que já não
soubéssemos antes. Como é possível os enunciados serem logicamente equivalentes, mas um deles informar algo e o outro não?
Acho que podemos deixar o problema mais claro se usarmos um exemplo concreto da época de Frete. Logo nas primeiras horas do dia, era possível observar um astro no céu. Nas últimas horas da tarde, também se via outro astro, que eram conhecidos respectivamente como a estrela da manhã e a estrela da tarde. Descobriu-se contudo, que se tratava do mesmo astro e era o planeta Vênus. Então, podemos dizer "a estrela da manhã é a estrela da tarde", sendo essa uma frase que nos transmite uma informação não óbvia. Mas, da mesma forma como fizemos antes, se usarmos essa identidade para dizer que "a estrela da manhã é a estrela da manhã", estaremos criando um enunciado equivalente, mas totalmente óbvio e que não diz nada de novo .Como é possível que duas identidades sejam equivalentes, sendo uma delas informativa e a outra não? Dito de outra forma: como é possível estabelecer uma identidade entre duas coisas e ao mesmo tempo estar dizendo algo que já não se soubesse antes? Entre as duas deve existir alguma diferença que faz de uma informativa e da outra trivial. Mas o que é?
Acho que podemos deixar o problema mais claro se usarmos um exemplo concreto da época de Frete. Logo nas primeiras horas do dia, era possível observar um astro no céu. Nas últimas horas da tarde, também se via outro astro, que eram conhecidos respectivamente como a estrela da manhã e a estrela da tarde. Descobriu-se contudo, que se tratava do mesmo astro e era o planeta Vênus. Então, podemos dizer "a estrela da manhã é a estrela da tarde", sendo essa uma frase que nos transmite uma informação não óbvia. Mas, da mesma forma como fizemos antes, se usarmos essa identidade para dizer que "a estrela da manhã é a estrela da manhã", estaremos criando um enunciado equivalente, mas totalmente óbvio e que não diz nada de novo .Como é possível que duas identidades sejam equivalentes, sendo uma delas informativa e a outra não? Dito de outra forma: como é possível estabelecer uma identidade entre duas coisas e ao mesmo tempo estar dizendo algo que já não se soubesse antes? Entre as duas deve existir alguma diferença que faz de uma informativa e da outra trivial. Mas o que é?
Frege
considera e descarta duas possibilidades de resposta. A primeira consistiria em
dizer que a identidade acima seria uma identidade entre objetos, enquanto que a
segunda consistira em dizer que ela seria uma identidade entre expressões
linguísticas. Vejamos rapidamente cada uma.
Dizer
que a identidade “a=b” é uma identidade entre objetos significa que seu
conteúdo deve ser entendido como “o objeto a é idêntico ao objeto b”. Em outras
palavras, a identidade fala de objetos, de uma relação entre esses objetos. No
entanto, isso não parece convincente. Pois, ao dizer que os objetos são
idênticos, isto é, que a e b são o mesmo objeto, estaríamos falando da relação
de uma coisa com ela mesma, o que careceria de sentido. Falar de uma coisa em
relação a si mesma por si só já parece estranho, mais ainda dizer que essa é
uma identidade que nos acrescenta uma informação.
A
segunda possibilidade, de que a identidade seria uma relação entre expressões linguísticas,
também é rejeitada por Frege como insuficiente. Segundo essa perspectiva, “a=b”
significaria “a expressão ‘a’ diz respeito ao mesmo objeto do mundo que a
expressão ‘b’”. Em outras palavras aquela identidade seria apenas um esclarecimento
sobre a linguagem nos dizendo simplesmente que, na língua que estamos
empregando, os termos “a” e “b” servem para falar de uma mesma coisa. A insuficiência
dessa explicação ficará clara com um exemplo que tirarei de um dos meus heróis
favoritos: o Batman. Os cidadão de Gotham City certamente sabem que indivíduo é
designado pelo termo “Bruce Wayne” e também sabem que indivíduo é designado
pelo termo “Batman”. Mas se dissermos a um desses cidadãos que “Bruce Wayne=
Batman”, com certeza estaremos dizendo algo que vai muito além da mera
informação de que os dois termos falam da mesma pessoa. Estaremos dizendo algo
que muito provavelmente causaria espanto e sobressalto, para além de uma
simples informação linguística.
Afastadas
essas duas possibilidades preliminares, Frege propõe a solução em que acredita.
É nesse momento em que introduz seus conceitos de sentido e de referência,
acreditando que a diferença entre eles possa esclarecer e resolver o problema
que tinha sido colocado. Sentido e referência são conceitos que podem ser
usados para falar tanto de nomes quanto de sentenças completas. Vejamos agora o
conteúdo de cada um.
A
referência de um nome, como define Frege, é aquele objeto no mundo ao qual ele
se refere. Dito de outro modo, a referência é aquela coisa da realidade que o
nome nomeia. O sentido, por sua vez, não possui um definição formal. No
entanto, a maneira como Frege fala sobre o sentido nos leva a entender que
sentido tem a ver como modo de se referir à coisas, com os aspectos que são
enfatizados ao nos referirmos à coisa. Podemos pegar duas expressões como “o
discípulo de Sócrates” e “o mestre de Aristóteles”. As duas dizem respeito a um
mesmo objeto, que nesse caso é uma pessoa, Platão. Platão, portanto, é a sua
referência. Só que as duas expressões, mesmo se referindo ao mesmo objeto,
falam de maneiras diferentes. Cada uma privilegia uma certa forma de apresenta-lo
e de expô-lo em uma frase. Uma aborda sua ascendência intelectual, ao passo que
a outra enfatiza sua descendência intelectual. Dizemos então, que as duas
expressões possuem sentidos diferentes. Um termo pode ter sentido sem ter
referência, como “o maior número de todos”, quando não existe um objeto a que
se refira.
Assim,
duas expressões podem falar sobre uma mesma coisa (ter a mesma diferença) mas
referir-se a ela de maneiras diferentes (ter sentidos diferentes). Frege
acredita que o sentido de um nome tem relação com sua carga cognitiva, quer
dizer, com aquilo que o nome nos informa e nos diz sobre o objeto. Com isso,
resolve-se o paradoxo. Quando dizemos, “a=b”, ‘a’ e ‘b’ possuem, de fato, a
mesma referência, porque dizem respeito ao mesmo objeto. Mas, por outro lado,
possuem sentidos diferentes, isto é, possuem maneiras diferentes de se referirem
a ele. Quando dizemos “a=b”, portanto, estamos dizendo que há duas formas diferentes de se referir à mesma coisa. É essa a informação
que está presente em “a=b”, mas está ausente em “a=a”, já que nesse caso ambos
os a’s possuem mesma referência e mesmo sentido.
Sentido
e referência podem ser usados para falar não só de termos quando estão isolados,
mas também quando se agrupam formando frases completas. Frege acredita que o
sentido e a referência de uma sentença sejam, respectivamente, dados pela
composição e pela soma dos sentidos e das referências de cada um dos termos que
a compõe.
Uma
sentença completa descreve as circunstâncias nas quais ela é verdadeira. Quando
digo “o gato sentou no prato”, estou dizendo qual situação deve estar no mundo
para que o enunciado seja verdadeiro. Disso Frege conclui que a referência de
uma sentença completa é o seu valor de verdade. O valor de verdade tem a ver
com a verdade ou falsidade de uma sentença. Ele pode ser de dois tipos:
verdadeiro ou falso. Se de fato o gato sentou no prato, então dizemos que a
sentença “o gato sentou no prato refere o verdadeiro”. Do contrário, dizemos
que ele refere o falso. Se um dos termos de uma sentença não tiver referência,
então a sentença como um todo carecerá de valor de verdade, isto é, não será
nem verdadeira nem falsa.
Já
o sentido de uma sentença completa, para Frege, tem muito mais a ver com a
informação que ela quer veicular. Tomemos como exemplo a sentença “Machado de
Assis é o autor de Brás Cubas”. Vejamos o que acontece quando trocamos “Machado
de Assis” por “O Bruxo do Cosme Velho”. São dois termos que possuem a mesma
referência, de modo que trocá-los deve manter intacta a referência de sentença
toda, e portanto conserva o seu valor de verdade. No entanto, “O Bruxo do Cosme
Velho é o autor de Brás Cubas” tem um sentido diferente do da sentença
anterior. Isso é fácil de explicar, já que trocamos uma expressão por outra com
um sentido diferente, fazendo com que o sentido da frase completa mudasse. Mas
a ideia contida na frase parece ter mudado também. Alguém poderia muito bem
acreditar na primeira versão da frase mas não na segunda, se não soubesse que
Machado é o Bruxo do Cosme Velho. Essa informação veiculada pela sentença, que
corresponde ao seu sentido, é o que Frege chama de pensamento.
E
aqui chegamos até o ponto culminante. Frege dirá que o pensamento é algo
diferente da representação. Representação de uma coisa é imagem que fazemos
dela dentro de nossa consciência. Minha representação de “o gato arranhou o
sofá” tem a ver com aquilo que me vem à mente quando ouço essa sentença. Em
última instância, as minhas representações estão relacionadas diretamente com
as lembranças e memórias que fui sedimento a respeito das coisas e que são
invocadas quando elas me vêm à cabeça. De modo que a representação possui
caráter subjetivo. O pensamento de “o gato arranhou o sofá”, por outro lado, é
um dado objetivo. Ele é aquilo responsável por fazer com que aquela
representação seja invocada. Duas pessoas podem ouvir a mesma sentença e ter
representações diferentes. Uma pode imaginar que o sofá está apenas levemente
danificado, e a outra imaginar que o estofamento foi totalmente comprometido.
Mas existe um mínimo comum a essas duas representações que também foi o que fez
com que elas surgissem. Esse mínimo comum objetivo é o pensamento.
O
ponto, para Frege, é aquilo que realmente importa não é a representação, e sim
o pensamento. O que importa não é a maneira particular e pessoal como cada um
figura algo em sua própria mente, mas sim a parte substancial daquilo que está
sendo figurado. São os pensamentos, e não as representações, que podem ser
verdadeiros ou falsos. Vimos, contudo, que é pela linguagem que os pensamentos
são expressos e veiculados. Assim, se quisermos nos inteirar a respeito de
pensamentos, precisamos antes de tudo nos inteirar sobre como funciona a
linguagem, desfazer confusões e tornar explícitos os sentidos. Está aberto o
caminho para a filosofia analítica.
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