segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

Interpretativismo



Em “O Império do Direito”, Dworkin sustenta uma teoria do direito baseada na noção de interpretação como atividade criativa exercitada tanto pelo teórico, ao tentar explicar o que o direito é, quando pelo juiz, ao aplicar as normas a casos concretos. Meu objetivo nesta postagem não é tanto de entrar no mérito da interpretação para Dworkin efetivamente, mas sim explicar como ele traz a ideia de interpretação para o centro da teoria do direito e chega à conclusão de uma teoria boa e completa precisa ser uma teoria interpretativa.
A escalada do o argumento de Dworkin até chegar a esse ponto passa por uma demonstração de como as outras teorias do direito, com destaque para o positivismo, fracassam em explicar o fenômeno chamado de desacordos teóricos. Comecemos, então, abordando a maneira como Dworkin coloca a questão de como construir uma teoria do direito e como se configura a questão dos desacordos teóricos. Dworkin inicia o livro dizendo que existem três tipos de desacordos básicos que pode haver sobre o direito, ou seja, três formas diferentes pelas quais dois ou mais juristas podem discordar entre si quanto a uma questão jurídica.
Ronald Dworkin (1931-2013)

Primeiro, há os desacordos sobre fatos. Esses dizem respeito ao que aconteceu em um determinado caso, qual foi o momento do acontecimento, quem esteve presente, quem fez o que, quem deixou de fazer o que, etc. Em situações reais da prática jurídica, esse é o desacordo que ocorre, por exemplo, quando testemunhas apresentam relatos diferentes sobre os fatos, quando as partes alegam autorias diferentes para um mesmo fato, quando não se tem certeza sobre a data de determinado evento e assim por diante. Disso se segue que os desacordos sobre fatos são resolvidos com um exame da realidade e uma reconstrução do passado. Uma vez que se tenha averiguado qual foi o real desenrolar dos acontecimentos, o desacordo deixa de existir.
Segundo, há os desacordos de direito. Esses se subdividem em duas outras categorias. Há, de um lado, os desacordos empíricos. Apesar do que a nomenclatura pode sugerir, estes não dizem respeito ao que aconteceu no caso, mas sim sobre a aplicabilidade de uma norma ao caso. Percebemos a ocorrência desse desacordo quando não se tem certeza se a norma em questão permanece vigente, se há uma norma mais específica relacionada àquela situação ou se ela se aplica a fatos ocorridos em determinado momento. Desacordos empíricos têm sua solução dada examinando qual o estado atual do sistema jurídico, observando se as normas foram revogadas ou não foram, se possuem período de validade determinada, se seu período de vacatio legis já se esgotou, dentre outras questões. A nomenclatura descordo empírico se justifica porque a sua resolução é dada empiricamente.
O outro tipo de desacordo de direito é que Dworkin chamará de desacordos teóricos. Assim como os desacordos empíricos, os desacordos teóricos também dizem respeito à questão de qual é o direito aplicável a um caso. Porém, diferentemente do tipo anterior, o desacordo teórico não lida com o problema de uma norma estar valendo ou não. Esse lida, isso sim, com problema sobre o que aquela norma diz. O desacordo teórico acontece, portanto, não quando discordamos sobre o que aconteceu, nem sobre quais as normas vigentes, mas antes sobre o que a norma manda que façamos dentro daquela situação. Há descordo teórico entre dois juristas quando ambos se deparam com uma mesma norma, mas cada um acredita que ela está dizendo uma coisa diferente. Outra forma de dizer isso é dizer que o desacordo teórico é um desacordo de interpretação. Não se trata de discordar sobre se a norma existe, mas sim qual a maneira correta de entendê-la e de extrair o que ela tem a nos dizer sobre o caso que precisa ser julgado.
Como dissemos no começo, os desacordos teóricos são o tipo de desacordo realmente relevante para Dworkin. Mas o que há de tão interessantes a respeito deles? Primeiro, que os desacordos sobre fatos e os desacordos de direito de tipo empírico são normais dentro do cotidiano do mundo jurídico. São desacordos que ocorrem com frequência, mas que não costumam despertar preocupação porque toda vez que eles surgem já sabemos de que maneira poderão ser solucionados: analisando a realidade fática, seja sobre qual a verdadeira narrativa dos fatos do caso ou sobre a vigência de certa norma.
Segundo, e relacionado ao ponto anterior, é que o desacordo teórico não admite justamente o tipo de solução empírica que basta para os tipos anteriores. Quando diferentes juristas têm diferentes entendimentos sobre o que uma norma diz, o que decide qual entendimento é correto não é um exame de fatos, mas sim uma confrontação de argumentos.
Terceiro, as teorias do direito existentes até então não são capazes de explicar adequadamente no que consistem desacordos teóricos e como eles são possíveis dentro do Direito. Com efeito, segundo Dworkin, toda vez que uma das teorias do direito predominantes, notadamente o positivismo jurídico, se depara com uma situação de desacordo teórico, ela tende a não enxergá-lo enquanto tal e a desqualificá-lo para a terceira e última categoria de desacordos, que Dworkin chama de desacordos de moralidade e fidelidade. Temos um desacordo de moralidade e fidelidade quando sabemos efetivamente o que norma impõe que seja feito, mas um de nós considera que o que ela dispõe é injusto e outro considera que não, ou quando um de nós considera que devemos aplicá-la a despeito de sua injustiça e outro considera que a injustiça é um motivo para deixar a norma de lado e decidir sobre algum outro critério.
Nessa outra tipologia, então, o que está em questão não é exatamente qual o conteúdo da norma, mas sim a correção moral desse conteúdo e a obrigatoriedade de aplicá-lo ao caso. Sabemos o que norma estabelece, mas não concordamos se o que ela estabelece é bom ou desejável e, ainda, se o fato de ser bom ou desejável acena ou não para a possibilidade de afastar sua aplicação ao caso.
O que Dworkin quer nos mostrar é que teorias como o positivismo, jusnaturalismo e realismo jurídico, quando tratam de um desacordo teórico, falam sobre ele como se no fundo fosse apenas uma variante desse desacordo que acabamos de explicar. Ou seja, para essas teorias, da forma como Dworkin as lê, o que está acontecendo quando operadores do direito discordam sobre o que as normas dizem é que um deles acredita que o conteúdo das normas e positivo e outro acha que ele é negativo. É porque um dos lados compreendeu do que se trata a norma ao passo que o outro não entendeu. Ou mesmo é porque um deles está sendo sincero quanto ao seu entendimento ao passo que outro está se posicionando de má fé.
O que essas teorias estariam nos dizendo, segundo Dworkin, é que não há desacordos genuinamente teóricos. Isto é, não há desacordos genuinamente sobre o que direito exige para determinado caso, porque se analisarmos a fundo todo desacordo que se apresenta dessa forma é na verdade uma discussão que descamba para um domínio extrajurídico, envolvendo questões de moralidade e justiça. Questões estas que já extrapolam o campo do direito propriamente dito e cruzam a fronteira para controvérsias que não são realmente jurídicas, mas sim de alguma outra natureza.
O modo como Dworkin procura se evadir a esse reducionismo é argumentando que o desacordo teórico, que aparenta ser um desacordo sobre qual o teor de uma norma, é na verdade um desacordo de tipo mais fundamental. Com efeito, quando temos diante de nós uma mesma normas, mas cada um enxerga algo diferente sendo dito por ela, o ponto de discordância aqui não é meramente os significado das palavras que estão lá colocadas, e sim o que cada um de nós pensa que o direito é. Por exemplo, se um de nós pensa que a interpretação correta deve ser teleológica, mas o outro acha que ela deve ser relacionada ao seu contexto histórico, é porque um de nós acredita que o direito é uma instituição funciona pela realização das finalidades que escolhemos para as normas através de nossos representantes legítimos, e outro acredita que o direito é uma instituição essencialmente localizada no tempo e no espaço, devendo essa temporalidade ser respeitada quando um julgamento precisa ser feito em um momento histórico diferentes.
Para usar um exemplo menos abstrato, podemos tomar um caso concreto empregado pelo próprio Dworkin para ilustrar sua ideia, o famoso caso Riggs vs. Palmer. A história é conhecida de todos. No século XIX, Elmer Palmer tomou conhecimento de que constava como um dos herdeiros no testamento de seu avô. Ávido para possuir sua parte da herança, Elmer assassina seu avô a sangue frio. Quando a autoria do crime foi descoberta e o rapaz foi levado a julgamento, uma questão que suscitou ampla discussão dentre os juízes que compunham o tribunal dizia respeito se Elmer deveria ou não receber a herança, considerando o fato de que foi ele o responsável por ceifar a vida do seu ascendente e que as leis do estado em que o julgamento se deu nada diziam a respeito do recebimento da herança ser obstado pela prática de homicídio por parte do herdeiro.
De um lado, estavam aqueles juízes que acreditavam que, na falta de previsão legal específica sobre o assunto, Elmer deveria herdar normalmente, pois cabe ao tribunal se pautar nas normas que estão explicitamente colocadas. De outro lado, estavam os juízes que acreditavam que a perversidade do ato era inaceitável, e que seria absurdo um alto tribunal permitir que alguém de tamanha vileza moral saísse incólume no diz respeito a essa questão patrimonial. Para esse segundo grupo de juízes, cujo entendimento prevaleceu, está claro na tradição jurídica estadunidense que tal tipo de conduta é inadmissível e que não permitido a ninguém colher os frutos de sua própria torpeza.
Diante desse caso, diz Dworkin, aparentemente está claro que os juízes sabiam qual seria a resposta correta para o caso: Elmer deveria herdar. Seria apenas que alguns deles estavam relutantes em tomar essa decisão por considerarem-na moralmente injusta. No entanto, continua Dworkin, a questão é muito mais profunda que essa. O que estava acontecendo é que uns achavam que o direito se esgota nos textos legislados, e os outros achavam que inclui também valores morais. Uns achavam que o direito deve trabalhar para fins de previsibilidade, e os outros achavam que ele é instrumento para produzir justiça. Uns achavam que o ofício do juiz é subsunção simples da norma, e os outros achavam que ele inclui avaliação cuidadosa do mérito. Uns achavam que no direito existe dever estrito de fidelidade em relação ao texto legal, e outros achavam que há um compromisso maior de assegurar a correção moral da solução da lide. Em suma, uns achavam que o direito é uma coisa e serve a determinados propósitos, enquanto os outros achavam que o direito é outra coisa e serve a outros propósitos.
Nesse sentido, defende Dworkin, não se pode dizer que todos concordavam sobre o conteúdo do direito, mas apenas discordavam sobre a sua justeza. Pelo contrário, o ponto principal do desacordo era não apenas o que as normas dizem sobre esse caso em particular, mas sim o que o direito é como instituição e o que podemos esperar dele. É um desacordo sobre qual papel cabe ao direito desempenhar e a que servem as decisões judiciais. O que temos aqui não é uma querela sobre questões extrajurídicas que surge no meio de uma controvérsia jurídicas. É, antes de tudo, um desacordo genuinamente teórico sobre que tipo de coisa é o direito. Assim, no momento em que os juízes colocavam seus posicionamentos dissonantes, o que cada um deles estava expressando não era sua visão moral sobre a aplicação das normas, e sim a visão mais fundamental que cada um deles tinha sobre o que essas normas efetivamente são.
Dito isso, estamos agora em condições de compreender por que as outras teorias fracassavam em explicar os desacordos teóricos. A razão pela qual isso acontecia é que todas elas tinham um defeito em comum. Todas pressupunham que o direito é algo que pode ser entendido e descrito objetivamente. Para ser mais exato, todas elas acreditavam que o direito é um tipo de instituição tal que, se todos analisarmos de maneira cuidadosa, veremos todos uma mesma coisa com um mesmo modo de funcionamento.
Dworkin quer mostrar que a verdade está justamente no ponto de vista oposto a esse. Longe de vermos o direito de uma mesma forma, cada um de nós possui a respeito dele a sua própria visão. Ou, para usar a expressão de Dworkin, a sua própria concepção sobre o que o direito é. A concepção que possuímos é a resposta que cada um de nós dá para as perguntas “o que o direito é?”, “para que serve o direito?”, “qual papel ele cumpre ou deve cumprir na sociedade?”. A concepção de direito desempenha um papel fundamental porque é ela que orienta o modo como as decisões são tomadas, o modo como as normas são entendidas e o modo como controvérsias são solucionadas.
De todas essas explanações, podemos extrair duas conclusões básicas. Primeiro, que o direito se torna uma coisa diferente para cada forma diferente de entendê-lo que aplicamos a ele. Ele não é, portanto, um conceito empírico, que pode ser extraído da descrição do mundo, e sim é um conceito interpretativo, que depende diretamente do sentido e do propósito que seu intérprete lhe imputa. Compreende-se, pois, que descrever o direito significa sempre e inevitavelmente fazer uma interpretação sobre ele. Segundo, que a interpretação ou concepção que temos sobre o direito é sempre informada pelos valores morais e políticos do intérprete. Isto é, consiste em uma construção do intérprete, uma construção na qual ele desempenha um papel ativo e irredutível, e nunca meramente uma extração do sentido já presente em um texto.
Isso tem implicações drásticas sobre como uma teoria do direito deve ser. O empreendimento teórico deixa de ser a busca por uma descrição direito fiel às práticas sociais reais e passa a ser uma busca, dentre as várias concepções/ interpretações possíveis sobre o direito, a que mais se justifica moral e politicamente. A descrição será, nesse sentido, tanto mais verdadeira quanto mais normativamente correta. Precisaremos, a partir de agora, tentar entender o que está por trás do ato de interpretar e de que maneira podemos escolher entre diferentes concepções do direito, lembrando que essa tarefa precisará ser feita tendo sempre em vista as questões de moralidade política relevantes. Eis aqui como se constrói o edifício teórico do interpretativismo.
Espero ter sido suficientemente claro.

2 comentários:

  1. Foi bem claro. Eu sugiro complementar o que ele diz no Cap. 1 de O Império do Direito com o que ele diz no Cap. 9, na parte final, acerca dos casos difíceis. Lá ele diz que o que torna um caso difícil não é a indeterminação da linguagem nem o desacordo metainterpretativo, e sim termos uma objeção a como o caso seria decidido usando somente as regras positivadas disponíveis. Isso torna a distinção entre desacordos teóricos e desacordos sobre moralidade e fidelidade muito mais difícil de ser feita e levanta a questão sobre se os desacordos teóricos não são uma estratégia retórica de como formular este último tipo de desacordo. Abraço.

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    1. Muito obrigado, professor. Seus comentários são sempre bem-vindos. Seguirei suas indicações

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