sábado, 4 de janeiro de 2020

O que é Governamentalidade? Introdução


De toda a rica obra que Foucault nos legou, o conceito de governamentalidade certamente está entre os mais importantes. Isso por vários motivos. Talvez o principal deles seja a sua conexão direta com o diagnóstico foucaultiano do neoliberalismo, que por sua vez é uma das principais fontes de onde bebem os estudos recentes, e a cada dia mais relevantes diante do cenário nacional e mundial atuais, de Wendy Brown, assim como de Dardot & Laval.
É claro que numa postagem como esta seria impossível tratar da governamentalidade de maneira completa, ainda mais devido à versatilidade que esse conceito possui. Tanto é verdade que mais recentemente ele tem sido empregado para estudos de feições muito diferentes dos objetos de análise originais de Foucault, como teoria das organizações, algoritmos, dentre outros. Meu propósito será muito mais modesto e introdutório. Tentarei, primeiro, explicar como a governamentalidade está inserida dentro da biografia intelectual do Foucault. Em uma outra postagem, procurarei reconstruir aqui o levantamento histórico que é feito pelo autor em “Segurança, Território, População” (1978), que foi o curso no Collège de France em que Foucault primeiro cunhou a expressão. Por fim, irei fazer breve menção sobre como o tema da governamentalidade acena para o desenvolvimento do pensamento foucaultiano tardio, vindo a se concentrar na questão ética e das técnicas de si.
Vamos começar. Falemos um pouco sobre poder em Foucault em geral e sobre como a governamentalidade vai surgindo em seus trabalhos.

As análises sobre a governamentalidade são, de certa forma, a culminância daquilo que veio a ser conhecido como a fase genealógica do pensamento de Foucault. Convencido de que os discursos e as noções sobre o que é verdadeiro e o que é falso numa dada época são regidos por práticas não discursivas atravessadas por relações de poder, Foucault havia se dedicado a entender que formatos o poder havia assumido no mundo moderno desde que se tornara docente no Collège de France, no começo da década de 1970. A bem da verdade, no senso comum intelectual, poder é geralmente o primeiro termo que vem à cabeça quando se fala no nome de Foucault. Vamos ver um exemplo.
 Em Vigiar e Punir, de 1975, Foucault havia se dedicado a mostrar que o nascimento da prisão moderna como a conhecemos não foi, como queria o discurso oficial, a substituição de uma prática punitiva brutal (suplício) por uma outra prática mais humana e racional (cárcere). O que houve após o desaparecimento do espetáculo punitivo foi, na verdade, o surgimento de uma nova estrutura social em que a riqueza era baseada não mais na terra e sim na troca de mercadorias, e com ela uma nova forma de poder muito mais sutil e difícil de perceber.
Trata-se de uma forma de poder que coloca o corpo como uma unidade capaz de desempenhos e atividades, e que pretende controlar o modo como o corpo aplica suas energias e seus esforços através de um controle minucioso de seus movimentos. Se antes o condenado era levado à praça pública onde todos podiam vê-lo sendo torturado e esquartejado, agora ele é mantido numa instituição onde não vê a luz do dia, em que é submetido a uma série de tarefas que se repetem diariamente e em que se espera dele que após tempo suficiente isso seja capaz de mudar seus hábitos, suas preferências, seus gostos e seus comportamentos cotidianos, tudo isso sob a vigilância infalível de alguma autoridade.
É esse mesmo sistema que está na base da estrutura da escola, do hospital, do quartel, da fábrica e do escritório. Vigilância constante, e correção perpétua, em que o corpo é constantemente domesticado para assumir a postura correta, fazer os gestos corretos, posicionar-se corretamente, interagir corretamente com os outros corpos, realizar tarefas no tempo estipulado e cumprir as metas estabelecidas para cada indivíduo. Até que o indivíduo se torna o seu próprio vigilante passa a controlar a si mesmo da forma como é esperada dele. Essa modalidade de poder, que tem como propósito produzir sujeitos obedientes que não violem os padrões estabelecidos, é o que Foucault chama de poder disciplinar, cuja genealogia Foucault dedicou seus cursos no período de 1973-1975.
E o que há de tão interessante na descoberta dessa nova forma de poder? Muitas coisas. Destacarei somente dois pontos que importam para o que vou explicar a seguir. Primeiro, que pensar o poder disciplinar é um convite a revisitar o modo como o poder em geral tem sido concebido na tradição de pensamento ocidental. Onde quer que ele exista, estamos acostumados à ideia de que o poder é algo que bloqueia, limita, restringe, destrói oprime, nos impede de fazer coisas, enfim, algo negativo, associado à coerção. O que estamos vendo agora é algo que sem dúvida envolve poder, mas em que, dessa vez, o poder formata, modela, constrói, ajusta, corrige e enquadra, e que apenas muito raramente faz uso direto da força (exatamente o motivo pelo qual é mais difícil de perceber). O poder, diz Foucault, possui também uma atuação positiva (não no sentido de boa, mas sim no sentido de produzir em vez de apenas destruir). Em verdade, as relações de poder são reconfiguradas na modernidade de uma maneira que as suas manifestações de tipo negativas se tornam cada vez mais minoritárias em comparação com as positivas.
Segundo, e como consequência, é que o modo como estudamos o funcionamento do poder precisa mudar também. Em vez de fazermos, como é mais comum, uma análise que vai dos escalões mais altos da sociedade e investiga como eles encurralam e suprimem os escalões mais baixos -que Foucault chama de análise descendente- precisamos fazer o contrário, e procurar saber quais são os pequenos mecanismos que atuam sobre cada indivíduo-elo dessas relações transformando-o em um sujeito submisso e obediente que torna a existência e a continuidade daquela relação possíveis, o que Foucault chamou de uma análise ascendente. Temos que estudar o poder de baixo para cima, portanto, e não de cima para baixo. Se a nossa sociedade é repleta de desigualdade e opressão, as formas mais explícitas de poder, como o Estado, são a culminância e o efeito, e não a causa e a origem disso.
Esses dois pontos juntos renderam a Foucault algumas críticas que o conceito de governamentalidade veio a resolver. De fato, sobretudo do marxismo se insurgiram ao diagnóstico e à metodologia proposta por Foucault alegando que eles pulverizam o poder de uma forma prejudicial. Dizer que são as formas micro de poder que constituem as macro não explica como essas formas micro – a princípio tão diferentes e heterogêneas entre si como a relação professor-aluno, médico-paciente, condenado-carcereiro- podem juntas convergir para estabilizar uma mesma configuração social. Partir das estratégias locais de poder, diziam os críticos, torna difícil entrever como estas se conectam para formar uma estratégia global.
De certa forma, Foucault já havia começado a se debruçar sobre essa questão da relação entre o micro e o macro. Em seu curso de 1976, chamado “Em defesa da sociedade”, ele havia se debruçado a hipótese de o poder ser entendido como guerra entre grupos diferentes dentro da sociedade. Se um dia o exercício de contar a história de uma sociedade fora uma prática pelo qual a cultura e os feitos de um povo eram exaltados, houve mudanças que lhe conferiram uma nova função. Nas mãos de grupos politicamente sem controle sobre o aparato governamental, contar a história se transformou num exercício de narrar os abusos de alguma entidade ou grupo hegemônico sobre este que fala, como foi o caso das historiografias produzidas pelos parlamentes ingleses de ascendência saxã contra a monarquia de ascendência normanda, assim como as historiografias feitas pela aristocracia francesa em face dos monarcas absolutos.
 Ocorre que, com surgimento do discurso cientificista no século XIX introduziu um elemento biologizante a esse modelo de narrativa agonística. De modo que agora era possível dizer que a sociedade é composta de indivíduos não apenas cultural e histórica, mas também morfológica e anatomicamente diferentes, isto é, de raças. Essa forma de saber, derivada das ciências biológicas modernas, quando se somou ao juízo de valor, também validado por essas mesmas ciências, de há raças superiores e outras degeneradas, permitiu que o Estado protagonizasse uma forma de poder em que ele se ocupa de governar a dinâmica das populações de cada uma dessas raças, estimulando a natalidade numa e liberando a mortalidade sobre outra, expulsando umas para a periferia insalubre e mantendo outra em condições de saúde no centro, etc. O mesmo saber que esteve por trás dos desdobramentos modernos da medicina e das novas formas de catalogar as doenças. Uma nova forma de saber que dá origem a uma nova forma de poder, em que o Estado se torna gestor da vida e da morte dos indivíduos, proporcionando que uns sobrevivam mais e outros pereçam. Entre o racismo e a estatística, uma estreita conexão. Governo das raças. Governo da vida e da morte.
Também em História da Sexualidade 1, publicado no mesmo ano, Foucault mostrara, indo na contramão do que dissera a psicanálise (sobretudo Wilhelm Reich), que o que a modernidade trouxe em termos de sexualidade não foi uma política de repressão, impedindo os indivíduos de darem vazão a seus impulsos. Antes, foi uma proliferação dos discursos que incitam os indivíduos a falarem de seus desejos mais recônditos e das minúcias de sua atividade libidinal cotidiana. Primeiro, ao se confessar para o padre, numa prática inaugurada pela nova pastoral cristã criada pela Contrarreforma, uma tentativa desesperada da Igreja de manter um controle minucioso sobre a vida de cada um dos fiéis até em suas dimensões mais íntimas. A partir do século XIX, essa prática de modelo confessional e de falar do interior de si passa existir também com o psicólogo, com o psiquiatra, com o pedagogo no caso das crianças e- quero colocar em destaque- com o responsável pelo recenseamento, que periodicamente batia de casa em casa inquirindo quantos filhos havia em cada casa, de quais sexos, quantas mulheres férteis, qual o ritmo de procriação, etc.
No nível individual, a emergência dessas novas práticas discursivas em que o indivíduo é levado a falar cada vez mais sobre suas profundezas servem para que o profissional em questão seja capaz de modelar como irá se dar a relação do indivíduo com seus desejos. Dizer a ele o que, dentro do relato que ele faz, há de patológico e anormal, a quais desejos deverá dar vazão, como e quando; quais, em vez disso, precisarão ser domados. Trata-se de construir no indivíduo uma postura face a seus desejos em que ele aprenda que eles podem ser realizados de algumas formas sim e outras formas não. Que alguns deles é preciso trabalhar para silenciar e que certas condutas são degenerescências. Governo dos desejos. Governos das intenções. Governo dos prazeres.
No nível da coletividade, essas mesmas informações colhidas através do dispositivo confissão (agora atuante em práticas seculares, e não mais em religiosas) servirão para o que o Estado tenha um cômputo geral de quantos indivíduos apresentam qual tipo de conduta sexual, em que região eles estão localizados, qual o nível de patologias que existe na população como um todo, qual o ritmo de crescimento da população a partir da atividade sexual contabilizada, etc. Essas informações formam a base a partir da qual o Estado articula suas políticas de controle da população. Atividades pelas quais ele produz incentivos ou desincentivos para que a população cresça de maneira adequada a suprir as necessidades por mão de obra, mercados de consumo. Também é nesse nível macro que o Estado controla quais são e como se espalham as doenças, definindo o nível normal de mortes, ou seja, quantos se deve deixar morrer, e intervindo quando esse número se torna prejudicial para o Estado. Permitir que doenças e mortes ocorram, mas mantendo-as dentro de padrões definidos como normais. Define, ainda, quais segmentos da população devem prosperar, e quais se pode abandonar à própria sorte. Governo das populações. Governo dos nascimentos e falecimentos. Governo da saúde e da doença.
O conceito de governamentalidade, então, surge para explicar justamente como essa noção de governo veio a prevalecer no Ocidente. Essa prática em que o Estado analisa um estado de coisas, define um certo quantitativo ou distribuição estatística como ótima ou aceitável, e então passa a manipular esses estados de coisas para que ele corresponda a e se mantenha dentro desse padrão de aceitabilidade. Governamentalidade, então, será o conjunto de técnicas, mecanismos, regulações, dispositivos e práticas pelos quais se mantém um controle minucioso sobre um certo estado de coisas, guiando-o para que corresponda a um padrão de normalidade. Estudar a governamentalidade é a investigação de como foi possível que essa arte de governar, de conduzir as coisas dessa forma, pôde surgir e se tornar o paradigma político do Ocidente. É sobre isso que vamos tratar na próxima postagem.

4 comentários:

  1. Então, nesse diapasão, a 'governamentalidade' é um dispositivo de poder, de gerência e autogerência sócio-política, pulverizada em todo o corpo social.

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  2. Parabéns pelo texto e pela excepcional fundamentação teórica.

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