domingo, 5 de janeiro de 2020

O que é Governamentalidade? História da Arte de Governar


Na postagem anterior, falamos bastante sobre governo. Expliquei como o conceito de governamentalidade é um conceito que surge na obra de Foucault na segunda metade da década de 1970. Agora, dando continuidade, irei falar mais detidamente de como foi traçada a genealogia dessa arte de governar moderna, qual sua origem e quais fases foram atravessadas para que pudéssemos chegar aonde chegamos hoje. Para isso, partirei do curso que Foucault ministrou em 1978 no Collège de France que já mencionei antes, “segurança, território, população”.
Poder Pastoral
Sabemos já que governamentalidade tem a ver com um certo tipo de governo. Foucault observa que a particularidade dessa noção de governa é que ela se trata, antes de tudo, de um governo dos homens. O que se governa não somente coisas, mas principalmente pessoas. Trata-se de dirigir a maneira como eles se comportam, como vivem, que práticas adotam e que valores cultivam. Essa arte de governas pessoas, esse governo enquanto governo de homens antes de ser um governo de coisas, dirá Foucault, é uma prática sem precedentes na antiguidade clássica ocidental. Nos gregos, é verdade, podíamos encontrar a metáfora de que o governante atua sobre a pólis como um capitão sobre um navio. Mas mesmo aqui não há comparação suficiente, pois se o capitão governa algo, é o navio como um todo, e só tem ingerência sobre o que fazem os membros da tripulação na medida em que estes interferem no curso do navio. O governante da pólis está interessado no futuro da pólis como um todo, e não em manter em controlar e orientar a vida de cada um dos cidadãos até nas minúcias de sua casa, o que para o pensamento político grego antigo seria um contrassenso. De fato, a ideia de que o governante atua como que um pastor dos homens, guiando-os e dirigindo-os em todos os âmbitos de sua vida, teve suas raízes na tradição hebraica, mas só foi adquirir maturidade nas comunidades cristãs, e que depois foi transportada para o modus operandi da Igreja enquanto instituição. É esta prática, de caráter pastoral, que está nas raízes do que veio a ser a governamentalidade.
Michel Foucault (1926-1984)

E como se define este poder pastoral? Vejamos algumas de suas características. Primeiro, ele se vincula a um grupo, e não a um território. Um indivíduo está submetido ao pastorado não porque se encontra dentro de uma porção territorial demarcada geograficamente, mas sim porque está inserido numa coletividade que por sua vez é dirigida por um pastor. O pastorado se exerce sobre o grupo, esteja este onde estiver, e acompanha o grupo quando se desloca. Segundo, ele é orientado para a salvação. O poder do pastor sobre as ovelhas não se apresenta como o poder de subjugar os adversários ou de esmagar os inimigos, mas sim como o poder de mostrar o caminho correto que leva à salvação, de dirigir e guiar no sentido daquilo que é bom e correto. Poder benfazejo, portanto. Terceiro, embora tenha abrangência coletiva, tem aplicação individualizada. Quer dizer, o poder pastoral envolve o controle de um grupo, sim, mas esse controle é exercido sobre cada um dos integrantes individualmente. É uma fiscalização em que cada um precisa de tempos em tempos se submeter a práticas que procuram examinar como ele tem se conduzido até ali, se tem agido, enfim, se cada um está trilhando o caminho corretamente. Observa o que cada um tem feito, quais desvios cada um tem cometido; orienta e corrige cada um com atenção individualizada.
O que é interessante a respeito do vínculo estabelecido pelo poder pastoral é que ele não é feito para terminar. E isso o distingue de qualquer outra modalidade de relação social que se viu na Antiguidade ocidental. O vínculo entre o sofista e seu aprendiz no mundo grego, por exemplo, é feito para durar só o tempo necessário até o aprendiz adquirir o expediente retórico que pretende. Assim como o vínculo entre o estratego e a assembleia dos cidadãos se mantém apenas na medida em que este serve aos propósitos do bem da pólis com legitimidade. A ovelha, por outro lado, nunca atinge um estágio em que possa prescindir do pastor, justamente porque o fim do pastorado é a salvação. E a salvação não se alcança sem um guia ao qual se mantenha fiel por toda a vida
Razão de Estado
Muito bem. E como foi possível que esse governo pastoral, que até então parece tão teológico, pôde ser transposto para a política estatal? São vários fatores que Foucault aponta. Vamos tratar só de dois. Um tem a ver com a derrocada de uma visão teleológica de mundo. Com o surgimento das ciência, a ideia de que as coisas do mundo se movimentam para um propósito último vai sendo substituído pela ideia de que as coisas obedecem a leis mecânicas que nos permitem prever e controlar acontecimentos. Como consequência, já não faz mais sentido a concepção política medieval, segundo a qual o problema da política faz parte de uma narrativa cosmo-teleológica em que o governante dirige os homens sob sua jurisdição como Deus dirige o cosmos. Agora, as qualidade que precisa ter o bom governante não são mais as mesmas virtudes que precisa ter uma figura comum. A política deixa de ser pensada como atividade regida pela mesma ordem natural que rege todas as coisas, e passa a ser pensada como uma atividade distinta, que enfrenta problemas que lhe são exclusivos, e por isso necessita de um tipo de racionalidade próprio, uma forma própria de lidar com esses problemas. Descontinuidade entre política e teologia, portanto.
O outro fator representa uma dupla ruptura com duas ideias do imaginário político ocidental. De um lado, o fim da aspiração política de unificação de todos os territórios para reconstituir novamente Roma. De outro, o fim da aspiração religiosa da Igreja de unificação de todos os povos sob a fé católica. Essas duas ideias, que haviam sobrevivido como esperanças tanto nos sonhos de todo reino que ufanava de ter raízes romanas, quanto em cada pontificado da Alta Idade Média, encontraram seu fim definitivo respectivamente na organização que sucedeu ao Tratado de Vestefália e na Reforma Protestante. Com efeito, o final da Guerra dos Trinta Anos foi decisivo para afirmação de uma nova ordem política protagonizada pelo Estado moderno. Cada Estado sendo uma unidade independente dos demais, que possui sua estrutura interna própria, sua própria história e o controle sobre determinado pedaço de território e interesses específicos. A partir desse momento, só o que pode haver é uma convivência entre Estados, mas já não há qualquer condição para pensar que eles pudessem resolver suas diferenças e se fundir todo sob um mesmo regime como havia sido Roma. Da mesma forma, a Reforma, que trouxe uma efervescência de novos credos, tornou para sempre inalcançável o universalismo católico de transformar o mundo todo em fiéis. Emergência da unidade Estado e pluralismo irredutível de crenças.
Assim, diz Foucault, a relação entre um Estado e outro não é simplesmente uma rivalidade entre dinastias que alimentavam rixas históricas entre si como fora no medievo, mas sim uma relação de competitividade e concorrência. Na corrida por mercados consumidores, riquezas e territórios, o que todos os Estados querem é superar uns aos outros, despontar na frente dos outros com prosperidade e brio. Só que essa disputa entre Estados, que não teve precedentes nos reinos da Idade Média, só pode se dar se cada um dos Estados se organizar internamente para tal. Se ele for capaz de lançar mão do que tem a sua disposição para se impulsionar e se sobressair sobre os demais. Essa nova organização interna do Estado para concorrer não será mais pautada numa ordem cósmica universal, como vimos, mas sim na política definida como atividade que tem regras próprias e meios próprios.
Para gerar para si a força necessária, vai ser preciso que o Estado centralize as decisões políticas, o poder definir o proibido e o permitido. Porém, mais do que tudo, vai ser preciso que ele instale um controle cuidadoso sobre todas as coisas. Precisará vigiar o fluxo de moedas, para manter a balança comercial dentro do esperado. Precisará definir quanto de mercadorias deve ser vendida, a qual preço, onde e por quem. Precisará controlar a mão de obra disponível, e para isso precisa, de um lado, fazer com que as pessoas tenham filhos e, de outro, colocar um freio sobre as doenças. Precisará fazer manutenção das vias públicas para que pessoas e mercadorias cheguem ao lugar certo na hora certa sem prejuízo. Precisará inflamar nas pessoas o hábito do trabalho, para que produzam o quanto devem no tempo certo e no ritmo certo. Precisará, enfim, manter um olho incansável sobre os preguiçosos, ociosos, loucos e vadios, para impedir que eles infestem as ruas. Isso irá envolver uma inspeção sobre a vida privada de todo mundo. Para saber como vivem, qual religião professa e como ocupam o seu tempo.
Assim, explica Foucault, assistimos ao nascimento de um “Estado de polícia”. Um Estado que se coloca na tarefa de governar de uma maneira totalizante. Faz com que cada coisa seja colocada onde deve estar para o sucesso da nação. Na marcha da competição internacional, a arte de governar não se orienta mais pela finalidade transcendente da salvação, mas pela finalidade imanente da prosperidade. E lançará mão de todos os meios necessários para que as coisas se mantenham segundo as regulamentações estabelecidas e o conjunto das metas fixadas.
Isso explicaria, continua Foucault, por que boa parte da literatura política desta época, sec. XVI- XVII, é contra Maquiavel. Maquiavel havia concebido o príncipe como um ente externo ao seu principado. O príncipe adquire o principado pela herança ou pela conquista, mas ele não é um dos que fazem parta da vida do principado. Em Maquiavel, também, atividade realizada pelo príncipe é a arte de sua automanutenção no poder. O bom príncipe é aquele que tem a astúcia de lidar com a situação qualquer que ela seja de modo que não seja derrubado de sua posição quer pelas circunstâncias quer pelos seus adversários. Contrariamente a isso, boa parte dos autores de teoria política que Foucault enumeram acredita que a tarefa de governar um povo é semelhante a governar uma casa. Assim como o homem governa sua esposa, seus filhos, seus criados, dirigindo a conduta de cada um para que o lar seja próspero, o governante faz da cidade a sua casa, em que precisa governar as mercadorias, os comerciantes, as condutas dos súditos e os delinquentes. Isso explica inclusive por que a economia, que hoje tem uma conotação de ordem pública, em sua origem significa governo da casa.
Governamentalidade Moderna
Chegamos ao terceiro e último momento da nossa história da governamentalidade. Se houve uma ruptura com o medievo que permitiu o surgimento do Estado de polícia que vimos, o período do final do sec. XVIII até o XIX apresenta uma outra ruptura, a partir da qual outra governamentalidade, essa sim basilar para o momento atual, irá nascer. Essa mudança tem a ver com o salto do crescimento populacional que aconteceu nesse mesmo período, devido ao começo das atividades industriais e do início da produção em fábrica. Essa governamentalidade moderna se define sobretudo por ter tecidos críticas às formas de governar anteriores. Patente nas novas doutrinas dos fisiocratas, a nova arte de governar acusará o modelo do Estado de polícia de ser excessivamente invasivo, de tentar regulamentar o que não deve ser regulamentado e de impor padrões sobre aquilo que já funciona de forma natural. Vamos ver um exemplo.
Na França do século XVII, que é um bom exemplar do Estado de polícia, a preocupação com a escassez dos cereais era uma questão de primeira ordem. Afinal, sendo uma fonte de alimentos principal, quando faltam cerais há fomes coletivas, e quando há um decréscimo de mão de obra, afetando a produtividade, assim como insurgências populares e toda uma cadeia de eventos indesejados. Qual era, então, a atitude do Estado francês? Uma série de providências para fazer com que não se produzisse a escassez: proibição de estocagem de grãos e limitação das importações. Estabelecimento de um preço que impedisse lucros muito altos e deixasse baixo o custo do grão, para ser atingido pelos pobres. Isso de modo a garantir de continue havendo um contingente populacional vivo e fisicamente forte o bastante para trabalhar durante o tempo necessário para o sucesso econômico do Estado.
Pois bem. Sobre este caso específico, o que nova doutrina econômica e governamental dirá é que essa forma de governar é totalmente problemática. Ela pressupõe que seja possível manter um controle sobre os preços e distribuição de grão segundo padrões dados de cima para baixo pelo Estado, e que seja possível gerir os lucros auferidos assim segundo metas dadas pelo governo. No lugar disso, irá propor que entendamos que escassez de grãos é um fenômeno natural. Ele ocorre quer se queira, quer não.
Isso porque as relações sociais de que a escassez deriva, que são de compra e venda, de produção e de distribuição, já possuem uma forma natural. Elas acontecem sempre segundo os mesmos padrões, e dentro delas os indivíduos sempre respondem a determinados estímulos. Não há, pois, como impedir a escassez, como queria o Estado de polícia. O que se pode fazer, diz a governamentalidade moderna, é determinar qual o nível não prejudicial de escassez e assim arranjar as coisas para que esse nível não seja ultrapassado. Não se trata, por outros termos, de gerar a fartura para evitar a fome. Fome sempre haverá numa ou noutra medida. O que deve ser evitado é que a fome atinja proporções anormais. Não se trata de eliminar a fome, mas sim de conduzir a fome que já existe. Um certo quantitativo de pessoas que morrem de fome é normal, deve-se deixar que isso ocorre, mas não mais do que esse nível normal.
O conhecimento de quais são as distribuições estatísticas normais e aceitáveis depende, contudo, de que entendamos qual o funcionamento das relações sociais de que elas derivam. O que a governamentalidade moderna propõe, nesse sentido, é que a arte de governar não é arte de impor padrões segundo os desígnios do Estado, mas sim entender que o conjunto formado pelos indivíduos já possui uma dinâmica natural, a qual é preciso preservar em vez de modificar.
É nesse momento da história que, segundo Foucault, vemos pela primeira vez a ideia de uma sociedade civil. Claro que muitos antes já haviam dito que os humanos formam grupos naturalmente e que faz parte da natureza humana a geração de coletividades. Mas ninguém antes dissera que as própria trocas, a oferta de produtos, a disponibilidade de recursos, tudo isso também obedece a padrões naturais que podem ser estudados e catalogados. Que existem reações espontâneas que qualquer coletividade humana apresenta face à escassez ou abundância. O conjunto dos indivíduos forma, portanto, um todo que apresenta uma série de processos naturais (no sentido de que existem espontaneamente sem a intervenção de ninguém), como mortalidade, natalidade, consumo, poupança. O Estado, então, é um terceiro para quem esses processos naturais já se apresentam como um dado, como algo que é fato. Qualquer tentativa de impor ordem sobre essa ordem que já há não pode resultar em outra coisa que não calamidade e anarquia.
Deve-se então, deixar acontecer. Laissez-faire, laissez-passer. O modo como Estado irá governar não será mais o de regrar e regulamentar. Será o de criar condições e remover empecilhos. Vigiar os status quo para que nenhum fator de fora da dinâmica natural venha a interferir. Isso não quer dizer ausência de intervenção, mas reformulação da forma intervir. Governar não é mais regulamentar. Governar é gerir. Em vez de definir preços, evitar que eles sejam controlados por outra coisa que não a concorrência. Em vez de regrar o comércio, limpar o caminho para a competição. Em vez de controlar o número de nascimentos, proporcionar que eles cresçam de forma segura. Incentivar o aumento da produção ali e incentivar a redução ali.
Assim, podemos ver as feições mais evidentes da governamentalidade moderna. Ela encara o coletivo não mais como um conjunto de súditos que devem obedecer, mas sim como uma população, como conjunto de processos naturais que é preciso conduzir e fazer manter dentro de um nível considerado normal.
Não se trata mais de tentar impor ao mercado, à família, à doença, às migrações leis que elas deveram seguir segundo aquilo que o Estado entenda que é melhor. As leis que regem cada uma dessas coisas, diz o novo pensar governamental, já vêm prontas. São parte da própria natureza de cada um desses âmbitos. Saberemos quais são essas leis através da disciplina científica que é própria a cada um. Uma arte de governar os processos das trocas, que se tornou a economia. Uma arte de governar a dinâmica de população, que se tornou a demografia. Uma de governar os processos da infância, que se tornou a pedagogia. Uma arte de governar os processos naturais do corpo, que se tornou a medicina. Uma arte de governar as mentes e a sanidade que se tornou a psiquiatria.
Governar bem é entender que cada um desses componentes da vida social possui uma lógica específica, e precisa ter um espaço de liberdade e não interferência preservado para se desenvolver adequadamente. A tarefa de bem conduzir a saúde, o mercado, a loucura, a fome, a miséria, enfim, a população, é saber como e de que maneira cada um desses pode ser estrategicamente manipulado para que se obtenha os conformes esperados. É um cálculo que vai dos meios e recursos disponíveis aos resultados prováveis, na intenção de assim produzir os fins desejados. O conjunto das técnicas de governa toma para si a tarefa de manter tudo em ordem, de manter os níveis e as distribuições uniformes, e para isso se vale do saber técnico que empresta das ciências modernas já constituídas e independentes.
Eis aqui a diferença entre a normalização das disciplinas e a dos dispositivos de segurança. Enquanto as disciplinas pretendem regular todos os aspectos de seu objeto, definindo como normais os que conseguem ser modelados segundo se espera e como anormais os que não conseguem, o dispositivo de segurança já parte de uma definição do que será o normal (número de nascimentos, de mortes, de mercadorias importadas, pessoas migrando, etc.) e então seleciona quais aspectos de cada desses processos irá manipular e reger, e quais outros deixará que se desdobrem por si mesmos.
Com o tempo contudo, Foucault percebeu que cada uma das práticas envolvidas na governamentalidade só é capaz de funcionar na medida em que ela consiga engajar cada um dos indivíduos. Isto é, instalar-se como dentro deles e fazer com que eles controlem a si mesmos de uma forma condizente com a estratégia global. Quer se trate de disciplina, quer se trate de biopoder, todo dispositivo só se torna operante na medida em que faz cada sujeito enxergar em si elementos que precisam ser controlados, corrigidos, normalizados. Seus desejos, seus rendimentos, seus desempenhos, suas condutas, suas aspirações etc. Em outras palavras, um governo sobre todos só funciona na medida em que ele seja capaz de induzir em cada indivíduo um “governo de si”. Isso envolve fazer com que o sujeito passe a adotar uma série de práticas em que o sujeito aprende a prestar atenção em si, a se monitorar e autorregular de uma forma particular, que é ao mesmo tempo efeito e condição de possibilidade das estratégias globais de poder. O conjunto das maneiras pelas quais o sujeito toma a si mesmo como seu objeto de governo foi o tema da terceira e última fase do pensamento de Foucault, que ocupou os volumes subsequentes de História da Sexualidade. Mas isso já é assunto para outra postagem.

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