Psicanálise sempre foi uma das áreas de conhecimento que me despertaram interesse. Não importa qual seja a sua formação ou as suas afinidades ideológicas, muito dificilmente você jamais ouviu falar de Freud, de Lacan, do famigerado complexo de Édipo ou de conceitos psicanalíticos que adentraram o senso comum assumindo conotações geralmente muito diversas daquelas que possuíam em seu contexto original, como as noções de recalque, perversão e repressão. Sabemos, também, que justamente pelo caráter inovador e pelo potencial de abalar crenças sociais arraigadas que são próprios da psicanálise, ela também se apresenta como um campo aberto a uma série de mal-entendidos e críticas infundadas.
Para dar um exemplo, se as teorias psicanalíticas sobre a sexualidade são capazes de exercer um efeito perturbador até mesmo em que esteja disposto a compreendê-las bem, que dirá sobre os que não estão abertos a questionamentos quanto a suas visões de mundo mais consolidadas. Por isso, esta postagem é dedicada àqueles que, como eu próprio, não grandes conhecedores da área, mas antes estão em busca de entender como ela se construiu e quais contribuições deixou para o mundo atual. Sabe-se que uma das primeiras inovações propostas por Freud foram suas teorias a respeito do significado dos sonhos e como eles podem ser úteis no tratamento de transtornos mentais, teorias estas que podem ser encontradas em seus primeiro livro importante, A Interpretação dos Sonhos (1900). Há um outro texto menor, no entanto, em que funciona como espécie de resumo do livro. Trata-se de um ensaio que tem como título “Os Sonhos” (1911), no qual podemos encontrar as linhas mestras do trabalho que Freud desenvolveu sobre a atividade onírica humana. É com base neste texto que escrevo essa postagem.
Sigmund Freud (1856-1939) |
Como essa é a primeira postagem em que toco em psicanálise, parece interessante, antes de falar do objeto central, tecer alguns comentários de como os sonhos chegaram ao centro dos estudos de Freud. Sabemos que Freud, que praticava pesquisa médica no campo da neurologia, já no final do século XIX, interessou-se pelo estudo das neuroses. Mais especificamente a chamada histeria, um tipo de neurose que na época era conhecido por acometer sobretudo mulheres (a palavra histeria vem do termo grego para “útero”). Neurose é uma expressão não muito fácil de definir, que ganhou conotações diferentes em épocas diferentes, mas para os fins dessa exposição podemos dizer que neurose é todo distúrbio funcional sem causas somáticas/orgânicas identificáveis.
Trata-se de um fenômeno em que o paciente apresentava sintomas dos mais diversos, como perda de um dos sentidos, ou paralisia de algum membro, ou medos inexplicáveis, ou uma necessidade inevitável de realizar determinada tarefa, ou tremores súbitos, além de uma série de outros sintomas possíveis, até mesmo vários simultaneamente. Isso, porém, sem que se pudesse encontrar nenhuma explicação em seu organismo. Nenhuma alteração do funcionamento dos órgãos, nem sinais de infecção, nem nada que pudesse provocar a presença dos sintomas. Esses casos eram tão inexplicáveis para os médicos da época que muitos deles nem mesmo acreditavam que fosse uma patologia de verdade, e sim que era mero fingimento ou insanidade do paciente.
Convencido de que esse era um quadro clínico real e interessado em desvendar o que estava por trás, Freud partiu para a França para estudar com o médico francês Jean Martin Charcot, que recentemente havia ficado famoso por estudos sobre a histeria. Charcot havia observado que, colocando-os em estado de hipnose, conseguia não apenas fazer cessar os sintomas de pacientes neuróticos, da mesma forma como conseguia fazer com que pessoas sadias reproduzissem sintomas típicos de neuroses, enquanto estivessem hipnotizados. O insight fundamental que essa observação proporcionava era que, primeiro, a neurose é uma patologia de natureza psíquica e não corpórea. Segundo, e talvez mais importante, que deve haver um nível de atividade mental que está para além da consciência do paciente, de tal forma que a hipnose, afastando temporariamente a consciência do paciente, permitiria acessá-la.
Durante certo tempo, Freud estudou casos de pacientes acometidas por histeria, juntamente com o médico e amigo seu Josef Breuer, empregando o método da hipnose, e chegaram à conclusão de que de fato a sintomatologia tinha algo a ver com algum tipo de lembrança, evento ou emoção da paciente enterrada abaixo de sua consciência, que só podia ser acessada hipnotizando-a. Com o famoso caso de histeria da paciente que entrou para a história da psicanálise com o codinome de Anna O., Breuer se convenceu de que a cura para os sintomas histéricos seria possível se fosse capaz de fazer com que o paciente revivesse exatamente aquela lembrança traumática dentro do estado de hipnose. Segundo Breuer, a experiência de reviver hipnotizado a dinâmica emocional relacionada àquela lembrança teria o poder de liberar a energia psíquica patológica associada a ela, de forma que dali por diante o paciente ficaria livre dos sintomas.
Não muito tempo depois, entretanto, após a parceria entre os dois ter se rompido por motivos pessoais, Freud percebeu que a hipnose estava se mostrando ineficaz. Nem todas as pessoas podiam ser hipnotizadas, e nem todas as que podiam sê-lo alcançavam um grau de hipnose suficiente para proceder à investigação. Mais importante de tudo, Freud chegou à conclusão de que exatamente aqueles eventos da vida do paciente que estavam por trás dos sintomas lhe eram completamente inacessíveis à memória no estado de vigília. Isto é, a despeito do papel crucial que esses eventos tiveram para a gênese do quadro clinico, o paciente era completamente incapaz de se recordar de que eventos eram esses, quando e como ocorreram, não importando o quanto se esforçasse para lembrar.
Sendo os pacientes incapazes de trazer à tona aquelas lembranças no estado de vigília, mas ainda assim não tendo dúvida de que de alguma forma eram elas as responsáveis pela patologia, Freud foi levado a postular a existência de algum tipo de mecanismo ou estrutura que tivesse o condão de impedir que aquelas lembranças específicas, mais os desejos e emoções relacionados a elas, viessem ao nível da consciência. Uma parte da psique humana que opera e funciona sem que seja notada. Aquele conteúdo continuava lá, presente no psiquismo do paciente, porém de alguma forma e por algum motivo ocultado da consciência.
Freud estava convencido de que essa dimensão não consciente da psique humana era onde deveria residir a causa da histeria e das outras neuroses. De fato, pode-se dizer que a grande ruptura trazida pela psicanálise foi justamente a descoberta e a dedicação de estudar essa parte importantíssima, mas até então negligenciada, da vida mental humana, que ficou conhecida como inconsciente. De sorte que aos poucos Freud abandonou a hipnose como método, e buscou outros tipos de materiais e métodos pelos quais pudesse acessar níveis mais profundos dos pacientes.
O procedimento clínico mais famoso é a chamada livre associação, em que o analista convida o paciente a verbalizar o que lhe vêm espontaneamente à cabeça sem se preocupar com a eventual ilogicidade ou irracionalidade do que possa vir a dizer. Outra fonte de que se servia a psicanálise eram os eventos da psicopatologia da vida cotidiana, aqueles acontecimentos aparentemente insignificantes poderem sutilmente portadores de pistas a respeito da vida psíquica do paciente, dos quais os mais famosos talvez sejam o chiste o ato falho.
A terceira, porém não menos importante, fonte principal explorada pelo analista é justamente aquele fenômeno que já foi associado a presságios pela cultura popular, mistificado por religiões e reputado como sem sentido por gerações de cientistas: o sonho. Freud dedicou-se a construir um aparato conceitual capaz de fazer frente a essa posição cética até então esposada por determinados setores da neurologia e assim ser capaz de partir do conteúdo do sonho para chegar até dados relevantes sobre a situação clínica do paciente. E é disso que eu gostaria de falar um pouco a partir de agora.
Freud começa “Os Sonhos” ponderando como os sonhos outrora eram entendidos como manifestações do divino e do sobrenatural, mas ficaram sem uma explicação precisa após a modernização e o advento da ciência. Há basicamente três espécies de sonhos. Há aqueles que somos capazes facilmente de atribuir um sentido (como sonhar com receber um presente que se quer muito). Outros podemos até entender o que se passou, mas não entendemos qual a razão de termos sonhados com aquilo especificamente. Por último, há aqueles que nos parecem tão estranhos que não compreendemos nem mesmo que coisas eram aquelas que se apresentaram no sonho.
Assim, pode parecer que não há nenhum motivo convincente para aceitar que se deva estudar os sonhos, ou que algum conhecimento útil possa ser extraídos deles diretamente. Mas Freud faz uma observação que considera ser um ponto de partida a ser levado em consideração. É que os sonhos das crianças, ao contrário dos sonhos dos adultos, podem ser facilmente compreendidos como tendo algum significado. Quando uma criança relata o que sonhou, não apenas não é difícil entender o que ela experimentou durante o sonho, como também é possível relacioná-lo a certos fatos da realidade de tal forma que pareceria infundado dizer que é mera coincidência.
Os sonhos infantis, observa Freud, estão invariavelmente ligados a algum desejo que a criança tinha, mas não foi proibido ou ainda não teve a possibilidade de se realizar. Para usar nosso exemplo anterior, o fato de uma criança sonhar que estava recebendo o brinquedo que queria muito é facilmente interpretável como uma representação do desejo de recebê-lo na vida real. Para ser mais exato, o sonho funciona sempre como um meio de realização daquele desejo. Uma situação não real em que aquele desejo trazido da realidade está sendo realizado.
Freud quer sustentar a hipótese de que um processo análogo está por trás dos sonhos de adultos. Ou seja, os sonhos que os adultos têm também são realizações de desejos de quem está sonhando. A diferença é que nos adultos o desejo ou os desejos que deram origem ao sonho aparecem de forma oculta, disfarçada, por trás daquilo que o sonhador visualiza em enquanto dorme.
Freud chegou a essa conclusão após analisar diversos sonhos relatados por pacientes seus, empregando o método da chamada livre associação. De certa forma, é um método até simples. O analista pede que o paciente foque em um dos elementos do sonho, e então solicita que ele diga tudo aquilo que aquele elemento em particular lhe trouxer à mente, de modo que assim, pela reunião das associações feitas pelo paciente, o analista seja capaz de desvendar o que aquele elemento queria dizer. O resultado geral de repetidas experiência como essa foi o desenvolvimento da teoria freudiana dos sonhos, que tenta nos responder por que sonhamos, como os sonhos são formados e como podemos entendê-los.
A primeira distinção importante que Freud nos apresenta é entre o que ele chama de conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho. O conteúdo manifesto é aquilo que é vivenciado pelo paciente. São as coisas que o paciente viu, ouviu e sentiu no sonho. Em outras palavras, o conteúdo manifesto nada mais é do que o conjunto das representações que formam a descrição do sonho. O conteúdo latente, por sua vez, é exatamente aquilo que está por trás do conteúdo manifesto. É o sentido do conteúdo manifesto, aquilo que ele pretendia encobrir. Assim, para nos acostumarmos com esse vocabulário, a análise de um sonho consiste em partir de cada elemento do conteúdo manifesto para que assim se possa desvendar o conteúdo latente.
O processo pelo qual o conteúdo latente é convertido, mascarado e apresentado como conteúdo manifesto é chamado por Freud de elaboração onírica. O estudo da elaboração onírica compreende o estudo dos artifícios que a psique humana se utiliza para fazer com que o sonho tenha um certo sentido sem parecer que o tem. É preciso, portanto, entender como a elaboração onírica funciona para que possamos aprender a desfazê-la e entender a que exatamente o sonho se refere. De um modo geral, existem quatro mecanismos que podem ser encontrados na construção dos sonhos para identificar de que modo o teor oculto está colocado.
O primeiro deles é chamado de condensação. Trata-se de uma característica que os sonhos em geral tendem a apresentar. Condensação é o conceito que Freud usa para explicar o fato de que os elementos presentes no sonho normalmente consistem em uma mistura, uma mescla de vários elementos da vida do paciente. Podemos tomar como exemplo um sonho de uma mulher certa vez analisada por Freud, no qual ela recebia um chapéu preto. Após uma série de livre associações, Freud conseguiu entender o que aquilo significava. A moça era casada, mas confessadamente tinha interesses amorosos por outro homem que não o seu marido, que estava doente. E no anterior havia visitado com sua amiga uma loja de chapéus. Sucintamente, o sonho com o ganho do chapéu se revelou ser uma mistura entre (1) a lembrança da ida à loja de chapéus, (2) o desejo de que o marido estivesse morto, que explica a cor preta, (3) o desejo de estar livre do casamento, e (4) o desejo pelo outro homem. Como fica claro, assim, a condensação é a propriedade dos sonhos de serem o resultado da fusão de várias coisas aparentemente desconexas, como lembranças, desejos, eventos marcantes, etc. Todos eles aparecem como que misturados, condensados, no sonho, donde o nome.
O segundo é deslocamento, ao qual Freud atribui um papel de destaque. Com o deslocamento, a carga de energia psíquica que na realidade dirigimos a um certo objeto, no sonho aparece sendo dirigido a algo distinto, aparentemente sem qualquer relação com o objeto-alvo da realidade. Na prática, o que acontece é que um sentimento ou um desejo (normalmente inconsciente) que temos por alguma coisa no mundo real é reproduzido dentro do sonho, porém não em relação àquela coisa real, e sim em relação a alguma outra coisa. Poderia ser esse o caso, por exemplo, da pessoa que sonha em estar agredindo determinado animal, quando esse animal está no lugar de um rival seu da vida real. O mesmo sentimento de hostilidade que pessoa direciona ao rival está representado no sonho, mas sendo direcionado a um outro ente. O deslocamento é um dos mecanismos da elaboração onírica que mais dificultam a revelação do significado latente justamente porque ele desvencilha desejo de coisa desejada. É por causa dele que certos sonhos são capazes de nos provocar emoções intensas, ao mesmo tempo que nos questionamos “por que sonhei com isso?”
O terceiro é o simbolismo dos sonhos. Esta é uma propriedade da elaboração onírica onde mais podemos ver pontos de contato em relação à cultura e à sociedade em que o indivíduo se encontra. Pois se os sonhos são compostos por imagens que, quando têm o seu sentido decifrado, remetem a aspectos da vida real, amiúde as imagens de que os sonhos são feitos advém de determinados elementos da vida social do sonhador. O exemplo clássico disso é como objetos pontiagudos ou oblongos potencialmente são representantes fálicos, e sua presença dentro de um sonho historicamente tenha sido apontada pela psicanálise como um representante de atividade sexual. O mesmo ocorre com a presença da cor preta como referência à morte. Então, nem toda a composição do sonho se explica apenas pelas circunstâncias pessoais da vida do paciente, mas também pelos simbolismos que sua cultura plasma em seu psiquismo.
O quarto e último que gostaria de falar é a chamada elaboração secundária. Esta na verdade se encontra no limiar entre a atividade onírica propriamente dita e o estado de vigília. Pois, dito de uma maneira bastante direta, elaboração secundária é o nome que se dá à tentativa de fazer das diversas partes do sonho um todo coerente. Ela está presente toda vez que, ao acordarmos e pensarmos no que sonhamos, tentamos encaixar as coisas que conseguimos lembrar de modo que elas juntas tenham algum sentido. Elaboração secundária, então, é algo como procurar fazer do sonho uma narrativa: uma sequência cujas partes estão interligadas formando algo inteligível. De tal forma que o sonho parece se tornar mais compreensível do ponto de vista de quem sonhou. Mas isso não passa da produção de mais uma camada, por assim dizer de elaboração onírica, pois as partes constitutivas do sonho não são produzidas de forma totalmente coerente e interdependente entre si. Ao se tentar uni-las todas para extrair seu significado, o que se está fazendo é justamente o inverso: embaralhar mais ainda o real conteúdo latente que lhe subjaz.
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