quinta-feira, 11 de abril de 2019

Ética: Três Níveis


No estado da arte contemporâneo da Filosofia Moral ou Ética (enquanto campo de estudo filosófico), sobretudo na filosofia analítica, é comum de fazer uma distinção entre três níveis diferentes em que se pode discutir sobre a moralidade: metaética, ética normativa e ética prática.
METAÉTICA
Metaética é um termo que vem da justaposição das palavra “meta” e “ética”, ambas de origem grega. “Meta”, no grego, tem uma conotação que pode ser mais ou menos traduzida como “para além de”. Assim, o campo da metaética, como o próprio nome já tende a nos fazer entender, não é o campo da ética propriamente dita, isto é, as discussões metaéticas não são exatamente discussões sobre o que é certo e errado. São discussões epistemologicamente anteriores. Para ser mais claro, a metaética se preocupa com as condições de possibilidade da ética. Ou, dito de outra maneira, com as condições de possibilidade dos juízos morais.
Quando falamos de metaética, estamos preocupados com uma série de questões que funcionam como o pano de fundo para qualquer ética. Para citar alguns exemplos, estamos preocupados em saber se de fato podemos dizer se algo é certo ou errado, se existe algum método que possamos usar para descobrir isso (questão epistemológica). Estamos preocupados em saber se os valores morais têm o mesmo tipo de existência do que as coisas materiais ou não (questão metafísica). Ou mesmo, estamos preocupados em saber se juízos morais exprimem valores morais ou se na verdade eles são outra coisa completamente diferente (questão semântica).
Como se pode perceber, a metaética por si só é riquíssima em possibilidades de problematização. Possivelmente, a maior disputa travada nesse terreno talvez seja entre as correntes que poderíamos chamar de objetivistas, de um lado, e subjetivistas, do outro. De forma sintética, objetivista é todo aquele que acredita que existem valores morais independentes das nossas vontades individuais, ou seja, valores morais existem da mesma forma como existem pessoas, rios e mares. De tal forma que um juízo moral é verdadeiro quando estiver de acordo com esses valores, e falso quando for contrário a eles. A seu turno, o subjetivismo, aqui usado em sentido amplo, é como podemos denominar qualquer teoria que não acredite em valores morais objetivos, que acredite que todo juízo moral não é nem verdadeiro nem falso, mas sim é a mera expressão de um estado subjetivo (como um sentimento, uma emoção, etc.).
Teorias subjetivistas têm um histórico importante principalmente no contexto filosófico anglófono do século XX. Isso se deve, em grande parte, à influência do pensamento cientificista e por algumas teses que foram levantadas naquele mesmo período. Talvez a mais importante delas tenha sido o famoso argumento da questão aberta, formulado por G.E. Moore.
Moore, juntamente com Bertrand Russel, pertenceu a uma geração de filósofos que revolucionaram o pensamento britânico introduzindo uma série de abordagens de problemas filosóficos por meio da linguagem, lançando as bases para o que conhecemos hoje como filosofia analítica. De um modo geral, a filosofia acredita que questões filosóficas podem ser resolvidas se forem decompostas em problemas menores, identificando-se, por meio de uma análise da linguagem, quais conceitos e operadores estão envolvidos. No caso da vertente que nasce a partir de Moore e Russel, a chamada Escola de Cambridge, esse procedimento de desembaraço e esclarecimento da linguagem seria feito buscando-se trazer à tona a forma lógica das proposições.
O argumento de Moore pode ser resumido da seguinte forma: uma questão como “X é Y” é uma questão fechada se o próprio sentido ou significado de X já implica. Do contrário, é uma questão aberta. Assim, a questão “quadriláteros são polígonos de quatro lados?” é uma questão fechada, porque o próprio sentido do termo quadrilátero já implica que se trate de um polígono de quatro lados. Em outra palavras, é impossível pensarmos em algo que seja um quadrilátero e não seja um polígono de quatro lados. Não faria sentido perguntar, por exemplo, “isto é um polígono de quatro lados, mas é um quadrado?”
Moore pretendia usar essas ideias para provar que qualquer abordagem ética que identificasse o bom com alguma propriedade natural (material, não metafísica, não mundana) seria falha porque cairia em uma questão aberta. Para usar o exemplo clássico, suponhamos que nós acreditássemos que “o bom é prazer” (um exemplo um tanto próximo do utilitarismo, com algumas ressalvas). Em nossa doutrina ética, estamos afirmando que o bom se identifica com o prazer. Para usar os termos que empreguei há pouco, estamos afirmando que “o bom é prazer” se trata de uma questão fechada.
Ocorre que parece não haver absolutamente nenhum problema em fazer a pergunta “isto é prazeroso, mas é bom?”. Se essa questão é possível, significa que no fundo não existe a identidade entre uma coisa e outra. Quer dizer que é possível, ao menos conceitualmente, que nem sempre algo seja prazeroso e bom ao mesmo tempo. Portanto, a doutrina ética que iguala prazer e bom é contestável.
Moore acreditava que o mesmo aconteceria com qualquer tentativa de identificar o bom com alguma propriedade do mundo natural, qualquer propriedade fática. Independentemente de qual seja o conteúdo da teoria ética, ela padeceria desse problema se tivesse aquela característica. Como essa tese de Moore ainda está discutindo o conteúdo de uma doutrina específica ou os critérios que ela propõe, mas apenas a plausibilidade de éticas que façam aquele tipo de identificação, é uma tese de natureza metaética. Como sua proposta, Moore achava que não podemos deduzir um método preciso e exato o bastante que nos permitisse concluir com certeza quando alguma coisa é certa ou errada. Só o que temos nesse sentido são intuições. Intuições que não fornecem respostas definitivas. Daí porque a linha de pensamento de Moore é chamada normalmente de intuicionismo.
Uma das reações mais interessantes ao argumento de Moore foi a tentativa de alguns teóricos de atacar uma de suas premissas. O que esses teóricos tentaram propor foi que, ao contrário do que Moore pressupõe, alguém que defende uma doutrina como a do “bom é prazer” não está afirmando uma identidade entre bom e prazer. Essa pessoa não estaria tentando atribuir ao bom uma propriedade natural.
Na verdade, para esses teóricos, nenhuma juízo moral é uma tentativa de atribuição de propriedade alguma, nenhum juízo moral identifica uma coisa com outra. Juízos morais são, isso sim, enunciados que exprimem as preferências e as emoções de quem os está emitindo. Quando dizemos “tal coisa é boa”, estamos só querendo dizer “tal coisa me agrada”. E o único motivo pelo qual formulamos a frase na primeira forma em vez de na segunda é que assim ela parece menos pessoal e mais convincente do que se ela fosse dita em primeira pessoa.
Esses teóricos acreditavam, portanto, que, em se tratando de juízos morais, não se pode dizer que eles são verdadeiros nem falsos, porque eles são apenas afirmações de natureza pessoal e subjetiva. No campo da moralidade, não há conhecimento verdadeiro e certo, apenas pontos de vista que os sujeitos expressam pela linguagem moral. Como a forma tradicional de definir conhecimento consistem em dizer que ele é crença verdadeira e justificada, e para esses teóricos a moral nada tem de verdadeira, eles ficaram conhecidos como não-cognitivistas morais. Entre eles estão R.M. Hare, A. J. Ayer, C.L. Stevenson, e outros. Para manter a terminologia que usamos anteriormente, podemos dizer que os não-cognitivistas se encaixam dentro do grupo dos subjetivistas.
ÉTICA NORMATIVA
A ética normativa, por sua vez, é o campo que está mais próximo daquilo que entendemos por ética em nossas intuições cotidianas.  A ética normativa é aquela parte da filosofia moral preocupada em encontrar algum critério que nos permite diferenciar o certo e o errado, o bom e o ruim, o virtuoso do vicioso, o justo do injusto, etc., a depender da terminologia usada pela teoria ética de que estivermos falando. Nesse sentido, todas aquelas famosas doutrinas éticas que conhecemos -como a ética kantiana, o utilitarismo, a ética das virtudes, a ética da alteridade, dentre outras- são éticas normativas.
Cada uma delas, com seus pressupostos, origens históricas e métodos próprios, é uma tentativa de nos ensinar como devemos escolher nossas ações e tomar decisões moralmente relevantes. Toda ética normativa se caracteriza pela proposição de princípios gerais destinados a guiar o agir humano nas mais diversas situações da vida.
ÉTICA PRÁTICA
No entanto, existem algumas situações que envolvem problemas tão específicos e complexos que acabam adquirindo um status especial e se destacando das demais. Esse é o caso do aborto, da eutanásia, da clonagem, da manipulação genética em humanos, e vários outros. Por terem uma série de complicações que os tornam especiais, esses casos merecem um domínio próprio da ética, que é a chamada ética prática.
A ética prática advém da constatação de que questões como as citadas praticamente não podem ser resolvidas apenas com a aplicação de uma ética normativa previamente formulada, porque até mesmo os adeptos de uma mesma ética normativa poderia discordar fortemente de qual seria a coisa certa a fazer naquele contexto. Para dar apenas um exemplo, é perfeitamente possível que dois kantianos convictos tivessem posicionamentos opostos quanto à questão do suicídio assistido (pressupondo que a máxima da ação já esteja definida, tal como a ética kantiana exige). Um deles poderia se manter fiel àquilo que o próprio Kant colocou, e entender que o suicídio, ainda que assistido, implica utilizar a si mesmo como um meio para um fim, o que é inadmissível do ponto de vista kantiano. Já o outro poderia achar que esse raciocínio é problemático porque contém premissas de natureza questionáveis sobre para que servem as emoções humanas e como elas estão envolvidas no caso do caso do suicídio.
Assim, embora a ética prática não exclua completamente o uso de insights advindos de éticas normativas, ela considera que isso sempre será insuficiente para as questões morais especialmente controversas, de forma que, quando estivermos diante de alguma delas, precisamos sempre analisar também os fatos e as controvérsias particulares que ali se fazem presentes, como a incerteza sobre se o feto conta como humano no caso do aborto, a dúvida sobre a possibilidade de decidir sobre a vida e a morte de alguém em estado vegetativo no caso da eutanásia, o risco da eugenia no caso da manipulação genética, e assim por diante.

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