Recapitulemos
brevemente o que Rawls havia dito no texto de 1958. Ali ele havia lançado a
público sua tentativa de formular uma nova concepção de justiça com um pano de
fundo contratualista. Já aparecia um esboço do que viriam a se tornar os dois
princípios de justiça, um prenúncio do construtivismo kantiano que viria a ser
utilizado como metodologia futuramente, além de uma argumentação sobre o porquê
de essa concepção de justiça ser preferível ao utilitarismo. A ideia central
era mostrar como o conceito de justiça está centrado na noção de equidade.
No
texto que é objeto desta postagem, Rawls pretende tratar mais detidamente dos
dois princípios que havia formulado. Em 1958, eles haviam sido colocados da
seguinte maneira: (1) toda pessoa tem igual direito à mais ampla liberdade que
seja compatível com uma liberdade semelhante para todos; e (2) desigualdades
são arbitrárias a menos que seja razoável esperar que elas funcionem para o
proveito de todos e que estejam ligadas a cargos e posições igualmente abertos
a todos.
Desta
vez, Rawls os apresenta de uma forma ligeiramente modificada, mas já contendo
novidades relevantes. Eis como eles aparecem: (1) toda pessoa tem igual direito
à mais ampla liberdade básica que seja compatível com um liberdade semelhante
para os outros; e (2) desigualdades socioeconômicas devem ser dispostas de
forma que tanto (a) possa-se esperar razoavelmente que elas sejam para o
proveito de todos e (b) que elas advenham de cargos e posições igualmente abertos
a todos.
Vê-se,
pois, que já se fazem presentes a ideia de liberdade básica, bem como a
necessidade de uma distinção dentro do segundo princípio. O conceito de
liberdade básica, como um tipo de liberdade que não se confunde com outras
liberdades quaisquer, ganha maior importância quando considerarmos o modo como
se chega a ele através da posição original, o que ainda não é exatamente o foco
de Rawls. A divisão dentro do segundo princípio já é um prenúncio daquilo que
viria a acontecer em Uma Teoria da Justiça, quando Rawls introduzirá a questão
da prioridade lexical entre os princípios, fazendo com que sua teoria se torne
superior às concorrentes intuicionistas.
Mas
aquilo que Rawls realmente tem em mente com esse texto é discutir uma certa
questão em torno do segundo princípio. Após terem sido levadas a público,
algumas expressões que aparecem nesse princípio foram consideradas como
ambíguas de uma forma muito problemática. São as expressões “para o proveito de
todos” e “igualmente abertos a todos”. Cada uma das duas, segundo os críticos
de Rawls, pode ser lida de duas maneiras significativamente diferentes. De tal
modo que, a depender de qual interpretação escolhemos para elas, há quatro
possibilidades distintas de se entender o segundo princípio. Significa dizer
que a proposta de Rawls, assim como está colocada, pode significar até quatro
concepções diferentes de justiça,
O
que Rawls pretende fazer, portanto, é examinar cada uma das quatro
possibilidades para concluir que apenas uma delas seria aceitável como critério
de justiça distributiva, a partir do recurso da posição original, que agora já
começa a se parecer com aquele que nos é familiar. Os princípios de justiça
serão aqueles que os indivíduos escolheram a partir de uma condição em que
desconhecem sua própria identidade e sua posição na sociedade (véu de
ignorância). Dessa forma, afasta-se a influência que nossas condições atuais
poderiam ter na escolha que faríamos. A ideia é que, nesta condição, os
princípios a ser escolhidos por todos seriam os dois apresentados por Rawls e
citados anteriormente, e não o princípio de utilidade (utilitarismo). Será esta
mesma posição original que irá nos dizer qual a forma adequada de se atribuir
sentido às duas partes do segundo princípio.
Para
determinar qual a forma adequada de se fazer justiça distributiva, precisamos
antes saber o que será distribuído. Precisamos saber o que as pessoas desejam obter,
quais suas preferências e quais suas expectativas em relação a um sistema de
distribuição. Sem isso, não seríamos capazes de discernir quando um indivíduo
está em uma posição mais ou menos proveitosa. Neste ponto, Rawls introduz o
conceito de bens primários. Como é
impossível (até por causa do modo como é formulada a posição original) saber o
que especificamente cada pessoa deseja, é mais apropriado que a distribuição
seja pensada em termos daquilo que todo e qualquer indivíduo desejaria. Isso
são os bens primários: aqueles que bens que todo indivíduo egoísta racional
quereria para si, porque eles são necessários para a realização do seu projeto
de vida pessoal, qualquer que ele seja. Dentre os bens primários estão renda,
riqueza, liberdade, oportunidades, saúdes, autorrespeito, dentre outros. Por
uma questão de simplicidade, Rawls propõe que argumentação que ele irá
desenvolver em seguida seja pensada só em termos de renda e riqueza, já
que a distribuição desses bens é um
pouco mais fácil e intuitiva de se imaginar.
O
chamado ótimo (ou otimalidade) de Pareto é um conceito desenvolvido pelo
economista italiano Vilfredo Pareto, para descrever situações de eficiência em
termos econômicos. Em uma situação prática, estamos diante do ótimo de Pareto
toda vez que não for possível melhorar a situação de alguém, sem que para isso
se prejudique a situação de outra pessoa. Em se tratando de distribuição de
bens e riqueza, o ótimo de Pareto pode ser compreendido da seguinte forma: é
toda aquela situação em que a distribuição é feita de tal maneira que é
impossível aumentar os bens e a riqueza de alguém sem diminuir os bens e a
riqueza de outrem. É, portanto, uma situação limite em termos de distribuição,
no sentido de que tentar ir além dela seria privar alguém de alguma parte do
que já tem.
Importante
dizer que o ótimo de Pareto não é necessariamente a situação em que todos têm o
mesmo nível de bens e riqueza. Ao contrário, pode-se fazer uma distribuição que
atende ao critério de maximização definido e absolutamente desigual. Suponhamos
um total de R$ que precisam ser distribuídos entre duas pessoas. Se dermos R$
30,00 a uma e R$ 40,00 a outra, ainda não chegamos ao ponto ótimo, porque ainda
é possível aumentar a parte de ambos. Se ficassem com R$ 40,00 e R$ 60,00,
dessa vez sim estaríamos diante de um ótimo de Pareto, já que seria impossível
que um tivesse sua quantia aumentada sem que a do outro fosse diminuída. Vê-se,
assim, que uma situação de igualdade para os dois R$ 50,00 seria um ótimo de
Pareto assim como uma situação de máxima diferença como R$ 1,00 para um e R$
99,00 para o outro, e todas as outras possibilidades de se fazer essa
distribuição.
Vejamos
então as concepções da tabela. A primeira é a liberdade natural. Nessa concepção, como fica claro, uma
distribuição é justa quando ela se dá produzindo um estado de coisas que seja
um ótimo de Pareto, definido nos termos que expliquei acima. Este é o modo como
o sistema de liberdade natural entende a primeira parte do primeiro princípio
(“proveito de todos”). No entanto, como já foi dito, não há apenas uma
distribuição que configura o ótimo de Pareto. Pelo contrário, há uma infinidade
de formas de distribuir bens e riquezas de modo que não se possa dar mais a um
sem tirar do outro. Dentre essas possibilidades, há inclusive aquelas em que um
indivíduo fique com tudo e os outros sem nada. Como então dizer qual dessas
possibilidades é a distribuição justa?
Aqui
entra a interpretação para a segunda parte do segundo princípio. A distribuição
de bens e riquezas, além de ter de ser um ótimo de Pareto, precisa também ser o
resultado de carreiras as quais os indivíduos acessam em função dos seus
talentos pessoais. Ser “aberto a todos”, nesse caso significa que ninguém é
proibido ou impedido de concorrer. Isto é, as desigualdades que existem são o
resultado das renumerações de diferentes cargos que existem na sociedade, e
estes cargos são ocupados pelos indivíduos através de uma disputa em que são
vencedores aqueles que apresentam mais talentos. O sistema de liberdade
natural, portanto, pressupõe um contexto de livre mercado.
O
problema com essa concepção, diz Rawls, é que ela não apresenta nenhum elemento
que aponte para a necessidade de uma redistribuição de renda e riqueza.
Significa dizer que o ponto de partida para a disputa que os indivíduos travarão
pelos cargos são as condições sociais (o grau de renda, riqueza, incentivos e
oportunidades) que cada um tem na sua condição atual. Em sociedades como as
atuais, marcadas pela desigualdade, isso significaria que pessoas extremamente
abastadas precisariam concorrer com pessoas extremamente desprovidas. A
consequência é que o sucesso de cada um em alcançar algum dos cargos dependeria
da sua atuação circunstância social e dos talentos naturais que cada um possui.
Ocorre
que ninguém escolheu ter a posição social que tem, assim como ninguém tem
mérito por possuir os talentos que possui. Fazer a distribuição depender desses
fatores seria fazer a distribuição se basear em fatos que são puramente
contingentes e aleatórios, que ninguém é capaz de controlar ou decidir. Ter
mais riqueza ou mais talentos é um mero acaso, um mero fortuito. Em última
instância, o sistema de liberdade natural estaria baseado em critérios que são
moralmente arbitrários. Se nos colocarmos na posição original, o sistema de
liberdade natural seria claramente rejeitado. Se não quem sou, e existe a
possibilidade de eu ser um dos menos favorecidos, certamente esse sistema me
seria desfavorável, já que eu poderia ter a má sorte de ser um dos que têm
poucos talentos e recursos escassos.
A
chamada igualdade liberal seria a
concepção que mantém o ótimo de Pareto como interpretação correta da primeira
parte do segundo princípio, mas tem um entendimento diferente a respeito da
segunda parte. Enquanto a liberdade natural estabelecia que a distribuição
legítima advinha de uma livre concorrência entre as pessoas sem nenhuma
alteração do status quo, a igualdade liberal acredita que seja preciso fazer
ajustes, de modo que todos possam disputar em pé de igualdade. Em outras
palavras, as desigualdades aceitáveis ainda são aquelas que resultam de cargos
e posições obtidos por meio de competição, mas essa competição precisa
acontecer de uma maneira que nenhuma pessoa tenha vantagem sobre a outra no
início. É preciso, então, mecanismos para garantir que todos sejam colocados em
um mesmo patamar, para que só depois as pessoas possam concorrer pelos cargos
de maior prestígio e remuneração.
Em
comparação com a liberdade natural, que continha apenas igualdade formal, o
sistema da igualdade liberal se preocupa também com a igualdade material, com a
eliminação das posições de superioridade de que os indivíduos se originam. No
entanto, diz Rawls, essa concepção ainda tem o problema de fazer a distribuição
depender de um fato moralmente arbitrário que são os talentos individuais.
Talento e habilidade excepcional (como força, inteligência, etc.) são coisas
que se tem por acaso, nunca por merecimento. Menos mérito ainda existe no fato
de se viver em uma sociedade que valorize determinados talentos e habilidades
em vez de outros. Mesmo em uma disputa que tivesse um ponto de partida
igualitário, alguns indivíduos estariam em desvantagem pela simples casualidade
de não terem nascido com nenhuma capacidade que a sociedade valorize.
Novamente, na posição original, eu não poderia aceitar essa concepção. Isso
porque eu poderia ser uma das pessoas que nasceu sem talentos ou que nasceu com
talentos que a sociedade despreza. Nas duas situações, estaria em grave
desvantagem.
A
próxima concepção é a da aristocracia
natural. A segunda parte do segundo princípio (“igualmente abertos a todos”)
voltará a ser interpretada como era na liberdade natural: os cargos e posições
de diferentes socioeconomicamente desiguais serão preenchidos pelos indivíduos
mais dotados dos talentos e habilidades requisitadas, em um processo de livre
concorrência. Novamente, não há aqui mecanismos institucionais de correção das
desigualdades, de modo que a capacidade de competição de cada um é fortemente
influenciada pela posição social já ocupada por cada pessoa. A diferença
importante que a aristocracia natural apresenta é a interpretação que se dá à
primeira parte do segundo princípio (“para o proveito de todos”).
Na
aristocracia natural, essa parte deve ser entendida como um princípio da diferença. Significa o
seguinte: as desigualdades socioeconômicas só serão consideradas justas se elas
proporcionarem algum tipo de benefício para aqueles que são menos favorecidos.
Pensemos no caso de alguém que apresente habilidades excepcionais para pesquisa
científica na área médica em relação aos demais profissionais da medicina. No
caso dessa pessoa, seria justo que ela recebesse mais financiamento e mais
recursos para suas atividades. Isso porque todos teriam apenas a ganhar com
suas descobertas e inovações de novos medicamentos, novas formas de tratamento,
etc.
O
que o princípio da diferença exige, nesse sentido, é que nenhum tipo de
desigualdade seja proveitosa de forma unilateral. As posições desiguais devem
beneficiar não só os que as estão ocupando, como também aqueles que não tiveram
a possibilidade de alcança-las. Rawls acredita que essa versão do segundo
princípio se justificaria a partir da posição original. Com efeito, eu não
poderia aceitar que o outro ficasse melhor colocado dentro da sociedade só pelo
fato de ter nascido com esta ou aquela habilidade, amenos que eu soubesse que
essa posição mais avantajada seria de alguma forma benéfica para mim.
O
sistema de aristocracia natural merece esse nome porque justamente os
indivíduos que ocuparão as posições mais levadas são aqueles que já tiverem
sido favorecidos por ter uma posição melhor antes do processo de distribuição e
por terem sido agraciados com talentos naturais. E esse é o motivo pelo qual
Rawls considera que ele deva ser rejeitado. Não sabendo quem sou o que tenho,
eu ainda desejaria ter alguma possibilidade de alcançar uma posição social mais
elevada, em vez de deixar que isso seja influenciado diretamente por contingenciais
sociais como o nascimento (ainda que, na aristocracia natural, eu tenha a
certeza de ser beneficiado pelas desigualdades se fosse alguém menos
favorecido).
Rejeitadas
três das quatro concepções de justiça apresentadas, a única que restou, e que
Rawls considera aceitável para um egoísta racional na posição original, seria a
igualdade democrática. Nessa
concepção, a primeira parte do primeiro princípio significa igualdade de
oportunidades, enquanto que a segunda parte é entendida como um princípio da
diferença, nos termos que defini há pouco. Por isso, futuramente, o segundo
princípio da teoria da justiça rawlsiana ficaria conhecido exatamente como
Princípio da Diferença. E é nele que se encontram alguns dos principais pontos
de controvérsia levantados pelo debate que se seguiu a 1971
O
que temos agora, é uma forma de justiça distributiva com as seguintes feições.
Em primeiro lugar, todos os indivíduos gozam das mesmas liberdades básicas
(expressão, pensamento, reunião, associação, etc.) sem que jamais possam ser privados
delas (primeiro princípio). Nesse sistema, é possível e aceitável que haja
desigualdades socioeconômicas, mas apenas se elas atenderem a certos requisitos.
Só serão admitidas aquelas desigualdades sejam benéficas inclusive para aqueles
que estão nas piores posições. Além disso, essas desigualdades devem ser sempre
originadas de cargos e posições sociais aos quais todos têm as mesmas
oportunidades de ascender, ou seja, as mesmas condições de disputar.
Rawls
acredita que, por mais que o segundo princípio assim formulado possa parecer estranho
ou indesejável, ele faz muito sentido do ponto de vista racional. Se a
sociedade pode ser adequadamente concebida como um esquema de cooperação- no
qual as pessoas colaboram entre si para que possam perseguir seus próprios
objetivos-então o princípio da diferença para de fato representar um acordo
razoável de ser firmado entre os indivíduos. Ninguém que goze de uma boa
posição social e de grandes talentos poderia esperar que uma pessoa desprovida
e sem talentos aceitasse firmar um pacto social, já que ela continuaria em seu
lugar social inferior. A não ser que o menos favorecido já soubesse de antemão
que teria algo a ganhar com as vantagens que o outro possui.
O
princípio da diferença pare atraente, também, por ser capaz de pôr em prática o
ideal ético kantiano de nunca tratar a humanidade como um mero meio, mas antes
sempre como um fim em si mesmo. Isso porque, como o segundo princípio seria a
escolha feita na posição original, aplica-lo na prática seria tratar as pessoas
de acordo com aquilo que elas mesmas escolheriam para si, de tal modo que a
distribuição não seria apenas uma forma instrumental de beneficiar uns em
detrimento de outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário