segunda-feira, 18 de março de 2019

Reconstruindo o Pensamento de Rawls (II) "Distributive Justice: Some Addenda" (1968)


Esta postagem dá continuidade ao que foi dito em uma ocasião anterior a respeito de um outro velho artigo de Rawls, chamado “Justice as Fairness” (1958). O objetivo aqui é compreender de que forma a teoria da justiça rawlsiana foi sendo construída ao longo dos anos até culminar com sua versão acabada em “Uma Teoria da Justiça” (1971). O texto de que trata esta postagem é um artigo de Rawls que tem por nome “Distributive Justice: Some Addenda”, publicado em 1968, em um periódico da faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame. O artigo leva adiante uma discussão levantada em um outro, que tinha o mesmo nome, porém sem o subtítulo, ao qual até agora ainda não pude ter acesso.
Recapitulemos brevemente o que Rawls havia dito no texto de 1958. Ali ele havia lançado a público sua tentativa de formular uma nova concepção de justiça com um pano de fundo contratualista. Já aparecia um esboço do que viriam a se tornar os dois princípios de justiça, um prenúncio do construtivismo kantiano que viria a ser utilizado como metodologia futuramente, além de uma argumentação sobre o porquê de essa concepção de justiça ser preferível ao utilitarismo. A ideia central era mostrar como o conceito de justiça está centrado na noção de equidade.
No texto que é objeto desta postagem, Rawls pretende tratar mais detidamente dos dois princípios que havia formulado. Em 1958, eles haviam sido colocados da seguinte maneira: (1) toda pessoa tem igual direito à mais ampla liberdade que seja compatível com uma liberdade semelhante para todos; e (2) desigualdades são arbitrárias a menos que seja razoável esperar que elas funcionem para o proveito de todos e que estejam ligadas a cargos e posições igualmente abertos a todos.
Desta vez, Rawls os apresenta de uma forma ligeiramente modificada, mas já contendo novidades relevantes. Eis como eles aparecem: (1) toda pessoa tem igual direito à mais ampla liberdade básica que seja compatível com um liberdade semelhante para os outros; e (2) desigualdades socioeconômicas devem ser dispostas de forma que tanto (a) possa-se esperar razoavelmente que elas sejam para o proveito de todos e (b) que elas advenham de cargos e posições igualmente abertos a todos.
Vê-se, pois, que já se fazem presentes a ideia de liberdade básica, bem como a necessidade de uma distinção dentro do segundo princípio. O conceito de liberdade básica, como um tipo de liberdade que não se confunde com outras liberdades quaisquer, ganha maior importância quando considerarmos o modo como se chega a ele através da posição original, o que ainda não é exatamente o foco de Rawls. A divisão dentro do segundo princípio já é um prenúncio daquilo que viria a acontecer em Uma Teoria da Justiça, quando Rawls introduzirá a questão da prioridade lexical entre os princípios, fazendo com que sua teoria se torne superior às concorrentes intuicionistas.
Mas aquilo que Rawls realmente tem em mente com esse texto é discutir uma certa questão em torno do segundo princípio. Após terem sido levadas a público, algumas expressões que aparecem nesse princípio foram consideradas como ambíguas de uma forma muito problemática. São as expressões “para o proveito de todos” e “igualmente abertos a todos”. Cada uma das duas, segundo os críticos de Rawls, pode ser lida de duas maneiras significativamente diferentes. De tal modo que, a depender de qual interpretação escolhemos para elas, há quatro possibilidades distintas de se entender o segundo princípio. Significa dizer que a proposta de Rawls, assim como está colocada, pode significar até quatro concepções diferentes de justiça,
O que Rawls pretende fazer, portanto, é examinar cada uma das quatro possibilidades para concluir que apenas uma delas seria aceitável como critério de justiça distributiva, a partir do recurso da posição original, que agora já começa a se parecer com aquele que nos é familiar. Os princípios de justiça serão aqueles que os indivíduos escolheram a partir de uma condição em que desconhecem sua própria identidade e sua posição na sociedade (véu de ignorância). Dessa forma, afasta-se a influência que nossas condições atuais poderiam ter na escolha que faríamos. A ideia é que, nesta condição, os princípios a ser escolhidos por todos seriam os dois apresentados por Rawls e citados anteriormente, e não o princípio de utilidade (utilitarismo). Será esta mesma posição original que irá nos dizer qual a forma adequada de se atribuir sentido às duas partes do segundo princípio.
Para determinar qual a forma adequada de se fazer justiça distributiva, precisamos antes saber o que será distribuído. Precisamos saber o que as pessoas desejam obter, quais suas preferências e quais suas expectativas em relação a um sistema de distribuição. Sem isso, não seríamos capazes de discernir quando um indivíduo está em uma posição mais ou menos proveitosa. Neste ponto, Rawls introduz o conceito de bens primários. Como é impossível (até por causa do modo como é formulada a posição original) saber o que especificamente cada pessoa deseja, é mais apropriado que a distribuição seja pensada em termos daquilo que todo e qualquer indivíduo desejaria. Isso são os bens primários: aqueles que bens que todo indivíduo egoísta racional quereria para si, porque eles são necessários para a realização do seu projeto de vida pessoal, qualquer que ele seja. Dentre os bens primários estão renda, riqueza, liberdade, oportunidades, saúdes, autorrespeito, dentre outros. Por uma questão de simplicidade, Rawls propõe que argumentação que ele irá desenvolver em seguida seja pensada só em termos de renda e riqueza, já que  a distribuição desses bens é um pouco mais fácil e intuitiva de se imaginar.
Vejamos então de que possibilidades de interpretação estamos falando. Reproduzirei aqui, por motivos de didática, o mesmo esquema colocado por Rawls no artigo, e que volta a aparecer em Uma Teoria da Justiça, com algumas diferenças adicionais. A primeira linha da tabela apresenta as duas possibilidades de interpretação da primeira parte do segundo princípio, enquanto que a primeira coluna apresenta as da segunda parte do segundo princípio. A cada combinação dois a dois, obtém-se uma concepção de justiça diferente, que aparecem conforme está colocado nas outras casas. Rawls terá uma argumentação para excluir três dessas quatro concepções e uma argumentação para favorecer a concepção remanescente, que será a da igualdade democrática.



Antes de começar a mostrar como Rawls caracteriza e examina cada uma dessas quatro concepções, acho importante deixar claro o que significa essa “otimalidade de Pareto”, que consta como uma das possibilidades para a primeira parte do primeiro princípio. Expor exaustivamente essa noção excederia os propósitos de uma postagem como esta, então irie me limitar a dizer apenas o indispensável para entender a mensagem que Rawls tentará nos transmitir.
O chamado ótimo (ou otimalidade) de Pareto é um conceito desenvolvido pelo economista italiano Vilfredo Pareto, para descrever situações de eficiência em termos econômicos. Em uma situação prática, estamos diante do ótimo de Pareto toda vez que não for possível melhorar a situação de alguém, sem que para isso se prejudique a situação de outra pessoa. Em se tratando de distribuição de bens e riqueza, o ótimo de Pareto pode ser compreendido da seguinte forma: é toda aquela situação em que a distribuição é feita de tal maneira que é impossível aumentar os bens e a riqueza de alguém sem diminuir os bens e a riqueza de outrem. É, portanto, uma situação limite em termos de distribuição, no sentido de que tentar ir além dela seria privar alguém de alguma parte do que já tem.
Importante dizer que o ótimo de Pareto não é necessariamente a situação em que todos têm o mesmo nível de bens e riqueza. Ao contrário, pode-se fazer uma distribuição que atende ao critério de maximização definido e absolutamente desigual. Suponhamos um total de R$ que precisam ser distribuídos entre duas pessoas. Se dermos R$ 30,00 a uma e R$ 40,00 a outra, ainda não chegamos ao ponto ótimo, porque ainda é possível aumentar a parte de ambos. Se ficassem com R$ 40,00 e R$ 60,00, dessa vez sim estaríamos diante de um ótimo de Pareto, já que seria impossível que um tivesse sua quantia aumentada sem que a do outro fosse diminuída. Vê-se, assim, que uma situação de igualdade para os dois R$ 50,00 seria um ótimo de Pareto assim como uma situação de máxima diferença como R$ 1,00 para um e R$ 99,00 para o outro, e todas as outras possibilidades de se fazer essa distribuição.
Vejamos então as concepções da tabela. A primeira é a liberdade natural. Nessa concepção, como fica claro, uma distribuição é justa quando ela se dá produzindo um estado de coisas que seja um ótimo de Pareto, definido nos termos que expliquei acima. Este é o modo como o sistema de liberdade natural entende a primeira parte do primeiro princípio (“proveito de todos”). No entanto, como já foi dito, não há apenas uma distribuição que configura o ótimo de Pareto. Pelo contrário, há uma infinidade de formas de distribuir bens e riquezas de modo que não se possa dar mais a um sem tirar do outro. Dentre essas possibilidades, há inclusive aquelas em que um indivíduo fique com tudo e os outros sem nada. Como então dizer qual dessas possibilidades é a distribuição justa?
Aqui entra a interpretação para a segunda parte do segundo princípio. A distribuição de bens e riquezas, além de ter de ser um ótimo de Pareto, precisa também ser o resultado de carreiras as quais os indivíduos acessam em função dos seus talentos pessoais. Ser “aberto a todos”, nesse caso significa que ninguém é proibido ou impedido de concorrer. Isto é, as desigualdades que existem são o resultado das renumerações de diferentes cargos que existem na sociedade, e estes cargos são ocupados pelos indivíduos através de uma disputa em que são vencedores aqueles que apresentam mais talentos. O sistema de liberdade natural, portanto, pressupõe um contexto de livre mercado.
O problema com essa concepção, diz Rawls, é que ela não apresenta nenhum elemento que aponte para a necessidade de uma redistribuição de renda e riqueza. Significa dizer que o ponto de partida para a disputa que os indivíduos travarão pelos cargos são as condições sociais (o grau de renda, riqueza, incentivos e oportunidades) que cada um tem na sua condição atual. Em sociedades como as atuais, marcadas pela desigualdade, isso significaria que pessoas extremamente abastadas precisariam concorrer com pessoas extremamente desprovidas. A consequência é que o sucesso de cada um em alcançar algum dos cargos dependeria da sua atuação circunstância social e dos talentos naturais que cada um possui.
Ocorre que ninguém escolheu ter a posição social que tem, assim como ninguém tem mérito por possuir os talentos que possui. Fazer a distribuição depender desses fatores seria fazer a distribuição se basear em fatos que são puramente contingentes e aleatórios, que ninguém é capaz de controlar ou decidir. Ter mais riqueza ou mais talentos é um mero acaso, um mero fortuito. Em última instância, o sistema de liberdade natural estaria baseado em critérios que são moralmente arbitrários. Se nos colocarmos na posição original, o sistema de liberdade natural seria claramente rejeitado. Se não quem sou, e existe a possibilidade de eu ser um dos menos favorecidos, certamente esse sistema me seria desfavorável, já que eu poderia ter a má sorte de ser um dos que têm poucos talentos e recursos escassos.
A chamada igualdade liberal seria a concepção que mantém o ótimo de Pareto como interpretação correta da primeira parte do segundo princípio, mas tem um entendimento diferente a respeito da segunda parte. Enquanto a liberdade natural estabelecia que a distribuição legítima advinha de uma livre concorrência entre as pessoas sem nenhuma alteração do status quo, a igualdade liberal acredita que seja preciso fazer ajustes, de modo que todos possam disputar em pé de igualdade. Em outras palavras, as desigualdades aceitáveis ainda são aquelas que resultam de cargos e posições obtidos por meio de competição, mas essa competição precisa acontecer de uma maneira que nenhuma pessoa tenha vantagem sobre a outra no início. É preciso, então, mecanismos para garantir que todos sejam colocados em um mesmo patamar, para que só depois as pessoas possam concorrer pelos cargos de maior prestígio e remuneração.
Em comparação com a liberdade natural, que continha apenas igualdade formal, o sistema da igualdade liberal se preocupa também com a igualdade material, com a eliminação das posições de superioridade de que os indivíduos se originam. No entanto, diz Rawls, essa concepção ainda tem o problema de fazer a distribuição depender de um fato moralmente arbitrário que são os talentos individuais. Talento e habilidade excepcional (como força, inteligência, etc.) são coisas que se tem por acaso, nunca por merecimento. Menos mérito ainda existe no fato de se viver em uma sociedade que valorize determinados talentos e habilidades em vez de outros. Mesmo em uma disputa que tivesse um ponto de partida igualitário, alguns indivíduos estariam em desvantagem pela simples casualidade de não terem nascido com nenhuma capacidade que a sociedade valorize. Novamente, na posição original, eu não poderia aceitar essa concepção. Isso porque eu poderia ser uma das pessoas que nasceu sem talentos ou que nasceu com talentos que a sociedade despreza. Nas duas situações, estaria em grave desvantagem.
A próxima concepção é a da aristocracia natural. A segunda parte do segundo princípio (“igualmente abertos a todos”) voltará a ser interpretada como era na liberdade natural: os cargos e posições de diferentes socioeconomicamente desiguais serão preenchidos pelos indivíduos mais dotados dos talentos e habilidades requisitadas, em um processo de livre concorrência. Novamente, não há aqui mecanismos institucionais de correção das desigualdades, de modo que a capacidade de competição de cada um é fortemente influenciada pela posição social já ocupada por cada pessoa. A diferença importante que a aristocracia natural apresenta é a interpretação que se dá à primeira parte do segundo princípio (“para o proveito de todos”).
Na aristocracia natural, essa parte deve ser entendida como um princípio da diferença. Significa o seguinte: as desigualdades socioeconômicas só serão consideradas justas se elas proporcionarem algum tipo de benefício para aqueles que são menos favorecidos. Pensemos no caso de alguém que apresente habilidades excepcionais para pesquisa científica na área médica em relação aos demais profissionais da medicina. No caso dessa pessoa, seria justo que ela recebesse mais financiamento e mais recursos para suas atividades. Isso porque todos teriam apenas a ganhar com suas descobertas e inovações de novos medicamentos, novas formas de tratamento, etc.
O que o princípio da diferença exige, nesse sentido, é que nenhum tipo de desigualdade seja proveitosa de forma unilateral. As posições desiguais devem beneficiar não só os que as estão ocupando, como também aqueles que não tiveram a possibilidade de alcança-las. Rawls acredita que essa versão do segundo princípio se justificaria a partir da posição original. Com efeito, eu não poderia aceitar que o outro ficasse melhor colocado dentro da sociedade só pelo fato de ter nascido com esta ou aquela habilidade, amenos que eu soubesse que essa posição mais avantajada seria de alguma forma benéfica para mim.
O sistema de aristocracia natural merece esse nome porque justamente os indivíduos que ocuparão as posições mais levadas são aqueles que já tiverem sido favorecidos por ter uma posição melhor antes do processo de distribuição e por terem sido agraciados com talentos naturais. E esse é o motivo pelo qual Rawls considera que ele deva ser rejeitado. Não sabendo quem sou o que tenho, eu ainda desejaria ter alguma possibilidade de alcançar uma posição social mais elevada, em vez de deixar que isso seja influenciado diretamente por contingenciais sociais como o nascimento (ainda que, na aristocracia natural, eu tenha a certeza de ser beneficiado pelas desigualdades se fosse alguém menos favorecido).
Rejeitadas três das quatro concepções de justiça apresentadas, a única que restou, e que Rawls considera aceitável para um egoísta racional na posição original, seria a igualdade democrática. Nessa concepção, a primeira parte do primeiro princípio significa igualdade de oportunidades, enquanto que a segunda parte é entendida como um princípio da diferença, nos termos que defini há pouco. Por isso, futuramente, o segundo princípio da teoria da justiça rawlsiana ficaria conhecido exatamente como Princípio da Diferença. E é nele que se encontram alguns dos principais pontos de controvérsia levantados pelo debate que se seguiu a 1971
O que temos agora, é uma forma de justiça distributiva com as seguintes feições. Em primeiro lugar, todos os indivíduos gozam das mesmas liberdades básicas (expressão, pensamento, reunião, associação, etc.) sem que jamais possam ser privados delas (primeiro princípio). Nesse sistema, é possível e aceitável que haja desigualdades socioeconômicas, mas apenas se elas atenderem a certos requisitos. Só serão admitidas aquelas desigualdades sejam benéficas inclusive para aqueles que estão nas piores posições. Além disso, essas desigualdades devem ser sempre originadas de cargos e posições sociais aos quais todos têm as mesmas oportunidades de ascender, ou seja, as mesmas condições de disputar.
Rawls acredita que, por mais que o segundo princípio assim formulado possa parecer estranho ou indesejável, ele faz muito sentido do ponto de vista racional. Se a sociedade pode ser adequadamente concebida como um esquema de cooperação- no qual as pessoas colaboram entre si para que possam perseguir seus próprios objetivos-então o princípio da diferença para de fato representar um acordo razoável de ser firmado entre os indivíduos. Ninguém que goze de uma boa posição social e de grandes talentos poderia esperar que uma pessoa desprovida e sem talentos aceitasse firmar um pacto social, já que ela continuaria em seu lugar social inferior. A não ser que o menos favorecido já soubesse de antemão que teria algo a ganhar com as vantagens que o outro possui.
O princípio da diferença pare atraente, também, por ser capaz de pôr em prática o ideal ético kantiano de nunca tratar a humanidade como um mero meio, mas antes sempre como um fim em si mesmo. Isso porque, como o segundo princípio seria a escolha feita na posição original, aplica-lo na prática seria tratar as pessoas de acordo com aquilo que elas mesmas escolheriam para si, de tal modo que a distribuição não seria apenas uma forma instrumental de beneficiar uns em detrimento de outros.

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