segunda-feira, 4 de março de 2019

A Poiesis Reduzida à Práxis: Agamben e o Homem sem Conteúdo


O Homem sem Conteúdo (1970) é o primeiro livro publicado por Giorgio Agamben, filósofo italiano da contemporaneidade. Nele, Agamben, pretende nos mostrar, a partir de insights contidos em Heidegger, Nietzsche, Arendt e Aristóteles, como o processo de entrada da obra de arte na dimensão estética nos revela algo de relevante sobre a própria condição do ser humano na era moderna.
Giorgio Agamben (1942-)


Composta com capítulos em forma de ensaio, o livro, como o restante da obra posterior de Agamben, é riquíssimo em repertório cultural sobre pintura, escultura, poesia, música e literatura, além de todo o arcabouço filosófico mobilizado pelo autor. A postagem de hoje é dedicada a explicar alguns pontos assinalados por Agamben ao longo do livro, que, não obstante serem relevantes por si mesmos, funcionam de certa forma como prenúncios daquilo que ele viria a desenvolver em seus escritos posteriores. Está longe da minha pretensão e do meu conhecimento dominar por completo todos os variados saberes que Agamben utiliza para sustentar suas conclusões. Meu objetivo, se cumprido com êxito, é apenas o de lançar sobre o diagnóstico que está sendo traçado, a partir da compreensão que tive com a primeira leitura.
Agamben começa com a citação de uma passagem de Nietzsche, contida na terceira dissertação da Genealogia da Moral, em que o filósofo do além-homem critica a abordagem sobre o gosto desenvolvida por Kant na Crítica do Juízo. Como se sabe, Kant teria ali definido o belo como aquilo que apraz de forma desinteressada, isto é, aquilo que nos é aprazível sem que julguemos a coisa em questão com base em nenhum tipo de propósito, expectativa pré-definida, conceito, etc. Isso, disse Nietzsche, fez com que o domínio da estética migrasse totalmente para o expectador. Em outras palavras, agora é no expectador que encontramos a resposta sobre se uma obra de arte tem ou não tem valor estético, e não mais em quem a produziu ou com que finalidade, ou segundo que ideais. Com essa constatação, Nietzsche parece derivar a urgência de uma arte “para artistas”, uma arte “interessada”, uma arte que para ele desempenharia um papel relevante de valorização da vida.
Agamben, por sua vez, acha que essa discussão filosófica sobre o estatuto estético da obra, seja com foco sobre o expectador, seja com o foco sobre o artista, reflete um processo histórico que, na época de Kant e Nietzsche, já estava em um estágio avançado. Esse processo é o que Agamben chama de a entrada da obra de arte na dimensão estética.
Mas o significa exatamente dizer que a obra de arte “entrou para dimensão estética” ou mesmo “vive a sua época estética”? É importante que fique claro que, para Agamben, esse processo tem a ver com uma mudança, operada na idade moderna, sobre o papel e o lugar da arte na vida humana. Uma mudança em que antes, a obra de arte era concebida de uma certa maneira e tinha um certo valor, e depois passa a ser vista pela sociedade de uma outra forma, ganhando um valor diferente daquele que possuíra.
Com efeito, dentro da vida social pré-moderna, a arte não era simplesmente mais uma das esferas da criatividade e da produção humana, ao lado da ciência, da filosofia e outras. A arte desempenhava um papel central na formação do caráter e da personalidade das pessoas. Era uma das responsáveis pela construção e pela manutenção da identidade individual e coletiva, dos valores e das visões de mundo professadas pela comunidade. Isso equivale a dizer que a arte enquanto tal só existia e tinha algum sentido dentro de sua relação com a moral e com a religião. Ela ao mesmo tempo refletia valores morais e religiosos, bem como funcionava com uma maneira de que esses valores se perpetuassem.
Assim, esculturas, pinturas, corais, músicas em ambiente público, tudo isso era visto como tendo um propósito para a construção do tipo de “eu”, do tipo de pessoa e cidadão, com as virtudes que as sociedades, primeiro pagãs e depois cristãs, valorizavam. Fazer arte não podia ser jamais um capricho ou a realização de desígnios meramente pessoais de quem está fazendo, do contrário dificilmente seria reconhecido como arte genuína. Antes, ser artista era, antes de tudo, fazer com que seu trabalho desse voz e substância aos ideais que norteavam a comunidade: seus deuses, suas tradições, sua história, e assim por diante.
Exemplo notável dessa concepção de arte é a que se encontra em Platão. Na República, é famosa a passagem em que Platão afirma que os poetas deveriam ser expulsos da pólis, dado que o efeito da poesia sobre a alma humana pode ser nefasto, desequilibrando os sentimentos, enfraquecendo a razão, fazendo o homem tender à desmesura e à passionalidade.
Na Idade Média não é muito diferente. O belo e o sublime são compreendidos em comparação com o belo transcendental, de origem divina. A arte, enquanto criação humana, é para os homens medievais também uma das formas de ascese e elevação que nos levam, em última instância, à comunhão com Deus. O belo, tal como fora no mundo antigo, continua inseparável do bom e do justo. Aquilo que é belo, verdadeiramente belo artístico, é sempre também algo que nos acrescenta e nos orienta no caminho do bem.
Agamben acredita que, a partir da Idade Moderna, a civilização ocidental passa por um ponto de inflexão no que diz respeito à relação entre a arte e o ser humano. É a época do surgimento do chamado homem de gosto, ou homem de bom gosto. O homem de bom gosto é aquele capaz de apreciar e reconhecer uma boa obra de arte, mas ele mesmo carece das capacidades necessárias para produzi-la. Para ele, que tem um ponto de vista de mero expectador passivo, arte é sinônimo de fruição. Uma obra de arte é algo que nos provoca prazer e nos proporciona um tipo especial de satisfação ao ser admirada.
Essa mudança Agamben tenta representar alegoricamente fazendo uma comparação com a chamada câmara de maravilhas (Wundekammer). A Wunderkammer era um cômodo em que príncipes e eruditos abastados costumavam guardar diversas coisas consideradas como tendo valor (não necessariamente econômico): peças de vestuário, relíquias, objetos antigos, pedras preciosas e obras de arte. O que Agamben vê de interessante nessa imagem da Wunderkammer é que nela a arte aparece ao lado de outros objetos não artísticos, de objetos de certa forma banais e comuns, ou pelo menos que parecem sê-lo comparados à arte, do ponto de vista moderno.
Oposto à Wunderkammer está o museu. Se a Wunderkammer era um ambiente em que, de forma simbólica, a arte convivia lado a lado com outras coisas mais comuns, o museu é o espaço reservado para servir de “residência” às obras de arte por excelência. O fato de haver um local específico para a obra de arte, que é o espaço do museu, possui uma importância simbólica. Significa que agora a obra de arte é vista como uma coisa que não se confunde com outros objetos como os que havia na câmara de maravilhas. Significa que arte ganhou um estatuto especial, em virtude do qual ela precisa ser separada, retirada do ambiente da vida cotidiana e habitual, para ser realocada a um novo local que lhe é próprio.
Agora, arte serve para aproveitamento. Arte é o que nos provoca satisfação e prazer, mexe com as nossas emoções e transforma nosso estado de espírito. A arte nos desloca de nossa consciência cotidiana, apresentando-se para nós como algo diferente, inusitado, original, impensado. A arte é disposta no museu para que possa ser observada e contemplada por aqueles que ali passam, produzindo excitação e gozo estético. O artista, por sua vez, já não é mais alguém incumbido de levar a cabo uma certa tarefa específica. Ele já não é mais visto como alguém que possui responsabilidade na reprodução simbólica dos valores da comunidade. A produção estética se baseia agora tão somente no princípio criador. O artista, sem estar atado a alguma obrigação social, produz agora como lhe apraz. Torna-se, assim, um homem sem conteúdo.
Até agora dissemos o que Agamben vê de transformação no campo da arte. Mas qual a importância disso. Agamben acredita que essa mudança da obra de arte, essa entrada na dimensão estética, é reflexo de uma mudança no próprio fazer e agir humano na modernidade.
Para deixar mais claro o que está querendo dizer, Agamben se vale de termos gregos. No pensamento grego (e, para os propósitos de Agamben, sobretudo o aristotélico), existem as coisas que têm na natureza mesmo o seu princípio (ἀρχή), e aquelas cujo princípio é dado pelo ser humano. Isto é, existem as coisas que existem, se desenvolvem e reproduzem naturalmente, e há coisas que só passam a existir pelas mãos do ser humano, pelo uso da técnica (τέχνη). A produção de algo novo por obra do ser humano é a chamada poiésis (poihsiV). Poiésis é quando trazemos à existência algo que antes não existia, tampouco poderia ter existido se não fosse a intervenção humana na natureza. Poiésis é uma atividade que resulta na produção de algo, uma atividade que tem um fim diferente de seu começo. Assim, utensílios domésticos, artigos de decoração, armas, construtos arquitetônicos e obras de arte são todos, nesse sentido, poiéticos, isto é, derivados da poiésis- já que sua forma não existia antes, e sim lhes foi introduzida pela mão do ser humano.
Ao lado da poiésis, que é uma atividade essencialmente criativa, existe uma outra dimensão do agir humano que é práxis (πράξις). A diferença entre uma e outra é que a práxis não envolve a produção de algo novo. É um agir que consiste apenas no agir. Não cria, não modifica o mundo de forma adicionar um novo ser. A práxis tem a ver com aquelas atividades que são movimentadas pela vontade. Atos como o de comer, de prover sua própria subsistência, de satisfazer as necessidades vitais, de deslocar-se. Enfim, tudo o que não tem a ver com produção ou criação de algo novo pode ser entendido como práxis. O fato de na poiésis haver a geração de coisa nova fazia com que Aristóteles considerasse a práxis inferior à poiésis. No âmbito da poiésis, o ser humano expressa suas potencialidades que mais o tornam especial e que mais o diferenciam dos outros seres. No âmbito da práxis, o ser humano está mais próximo daquilo que o assemelha aos outros animais e mais próximo de suas necessidades básicas, consideradas como baixas e inferiores.
Agamben quer provar que, com a entrada da arte na sua dimensão estética, a obra de arte de pertencer a poiésis e migrou para a práxis.
Com efeito, modernidade, passa a existir uma distinção que antes não faria sentido para o modo grego de ver o mundo. Coisas como um vaso de armazenamento e uma pintura de uma tela, que no mundo grego estariam unidos no campo da poiésis, para nós modernos são substancialmente diferentes. O vaso de armazenamento possui um tipo de valor que a tela não tem e vice-versa.
O vaso tem valor na medida em que ele pode ser usado para um determinado propósito ou para a satisfação de determinada necessidade humana. E só tem valor enquanto pode ser usado para tal. Qualquer outro semelhante capaz de cumprir a mesma função/finalidade vale da mesma forma. A obra de arte, a seu turno, se define pelo seu caráter único, irrepetível, particular. Ela é algo que foi feito em um momento, em certas circunstâncias, e que jamais virão a ocorrer de novo. Em suma, o objeto comum se define pela sua reprodutibilidade, ao passo que a obra de arte se define pela sua originalidade. Se para o grego ambos teriam em comum o fato de serem produtos da técnica, para o moderno apenas o primeiro seria produto da técnica. Isso porque a concepção moderna de técnica assume uma nova conotação, muito mais ligada à produção em série fabril e industrial do que ao poder criativo do ser humano.
Ao mesmo tempo, já que a arte passou a ser um suporte para a produção de gozo e prazer, ela parece estar definitivamente se distanciando daquilo que o grego entendia como poiésis. Se a obra de arte agora é algo que serve ao ser humano para se proporcionar um certo estado de espírito e uma certa forma de excitação, então parece que sua essência já não está mais no fato de ser algo novo, criado. Parece, isso sim, que sua essência e seu valor estão muito mais na sua capacidade de provocar esse estado de espírito e essa excitação, na sua capacidade de gerar gozo e prazer estético tantas vezes quantas nos coloquemos diante dela.
Ora, sendo assim, a obra de arte moderna está cada vez mais próxima de um utensílio do que de um ente de origem poiética, compreendido da forma da Antiguidade. O utensílio serve para a realização ou facilitação de algum tipo de tarefa. A obra de arte serve para proporcionar gozo. Ela já não é obra de arte tanto pelo seu caráter de ter uma essência não criada pela natureza, mas sim porque serve a uma necessidade humana. Em outras palavras, podemos dizer que já não é mais à poiésis que arte pertence, mas sim à práxis. Se isso for verdade, diz Agamben, é porque a poiésis enquanto tal está em vias de desaparecer ou mesmo já desapareceu. O que aconteceu ao longo desse processo, segundo Agamben, é que a poiésis foi cada vez mais perdendo espaço, até ser reduzida à práxis.
As conclusões a que isso nos leva, segundo Agamben, são várias, passando inclusive pela relação entre o passado e o futuro do ponto de vista da humanidade. Mas a ideia de Agamben que acho mais interessante a esse respeito é que essa redução da poiésis à práxis tem a nos dizer sobre a condição humana na época atual. Se só o que há é apenas práxis ou pelo menos um forte predomínio dela, e a práxis está mais ligada a nossas atividades vitais, é que boa parte da existência humana no contexto moderno gira em torno do seu aspecto biológico. Gira em torno de suas necessidades mais básicas. Gira em torno da vida humana como simples vida vivente, vida que nasce, se reproduz e morre. Acredito que isso possa ser entendido como um prelúdio daquilo que Agamben iria dizer anos depois em outros livros. O próximo passo seria o insight de que essa vida humana como vida biológica não apenas é governada pela política, como também é o seu domínio de exercício de poder por excelência, através do dispositivo do estado de exceção, ideia que está no coração da obra Homo Sacer.

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