No
capítulo 1 de “Lei Natural e Direitos Naturais”, John Finnis pretende de uma só
vez nos mostrar como o jusnaturalismo é uma teoria descritiva do Direito (e
portanto está páreo com o positivismo jurídico) e como ele possui
significativas vantagens em relação ao positivismo pela sua forma diferenciada
de fazer descrição. Nesta postagem, pretendo passar por alguns aspectos
centrais da proposta metodológica de Finnis e qual o direcionamento o autor
pretende dar à teoria do Direito que pretende construir.
John Finnis (1940-) |
Finnis
começa a partir de algumas observações metodológicas aparentemente triviais.
Toda descrição que se pretenda fazer de alguma coisa implica que nós abordemos
características e aspectos dessa coisa, detalhando-os e aprofundando-os, de
forma a determinar sua natureza. Ocorre que, para qualquer objeto que se queira
descreve, ele sempre apresentará uma vastidão e uma diversidade de aspectos e
de exemplares no mundo a serem apreciados que é humanamente impossível darmos conta
de todos eles de uma só vez. No caso do Direito, objeto especialmente complexo,
isso é bastante fácil de se perceber. Há sistemas jurídicos baseados nos
costumes, outros baseados na autoridade da tradição, outros que não empregam
leis escritas. Há sistemas cujas fontes são uniformes e pré-determinados,
enquanto que outros se modificam e se transformam de maneira relativamente
dispersa e aleatória. Há sistemas que aplicam as regras de maneira uniforme e
regular, outros em que a aplicação das mesmas regras se dá de forma diferente
de acordo com a situação, ou em que nem mesmo são as mesmas regras que se
aplicam a todos os casos.
Assim,
fica evidente que uma descrição só se torna viável de ser feita contanto que
antes se faça uma seleção de quais aspectos do Direito e quais exemplos
concretos do fenômeno jurídico serão levados em consideração e quais serão
deixados de lado. A descrição será feita a partir de uma abordagem desses
aspectos e exemplares em primeiro lugar, e, apenas de forma secundária e
eventual, daqueles outros casos e aspectos que ficaram de fora.
No
entanto, observa Finnis, essa seleção necessariamente precisará ser feita com
base em critérios. E esses critérios de forma alguma serão neutros. Uma vez que
eles servem para determinar o que interessa e o que não interessa para fins de
análise teórica, eles são critérios valorativos. São o meio pelo qual decidimos
se algo tem ou não tem importância, se merece atenção ou pode ser descartado.
Selecionar é discriminar, é fazer juízo de valor, ainda que este juízo de
valor, pelo menos neste nível metodológico, não seja do tipo que classifica as
coisas como boas ou ruins. Qualquer um que se arrogue a dizer que sua descrição
é completamente neutra não estaria fazendo mais do que tentar ocultar o caráter
não neutro implícito e inegável que sua descrição já apresenta.
Finnis
alega que o positivismo jurídico,-como não poderia deixar de ser, à luz do que
já foi dito-, também faz sua seleção não neutra dos aspectos e exemplares
relevantes. As escolhas positivistas a esse respeito foram invariavelmente
pelos aspectos mais comuns e gerais que o Direito apresenta, isto é, o
positivismo buscava por aqueles aspectos e características que poderiam ser
encontrados, se não em todos os sistemas jurídicos, mas pelo menos na maior
parte deles. Trata-se de uma preferência pelo que é mais recorrente e mais
frequente de se observar no Direito, como o seu caráter coercitivo, o emprego
de sanções, a obrigatoriedade das normas, etc.
É
nesse ponto que, na minha leitura, Finnis fixa seu primeiro esteio longe da
tradição e do ambiente filosófico em que está inserido. Inspirado em
Aristóteles, propõe uma outra forma de lidarmos com a questão dos critérios e
da seleção. Para já introduzir a terminologia finnisiana, o conjunto dos aspectos
mais importantes de um determinado conceito é o que podemos chamar de seu significado focal. Paralelamente, todos
aqueles exemplares- isto é, as manifestações concretas do conceito- que
expressam seu significado focal constituem o seu caso central. Naturalmente, aqueles manifestações que não expressam
o significado focal serão compreendidos como casos periféricos.
O
caso central merece esse nome porque, como fica fácil de compreender, é dele
que extrairemos as informações que queremos obter a respeito do que está sendo
estudado. Isso equivale a dizer que é sobre o caso central que o teórico
descritivo volta seu holofotes. É no caso central que enxergamos as coisas em
sua forma mais madura e desenvolvida, e é ele que torna todos os demais casos
inteligíveis ao intelecto humano. À luz do caso central, todos os demais casos
ainda são exemplos, porém sempre possuem alguma dimensão em que são
incompletos, imperfeitos, defeituosos ou desviantes, dimensões estas que só nos
são compreensíveis tendo em vista aquele caso central.
Dito
isso, agora já sabemos que rumo a descrição do Direito deve tomar: em vez de
buscar simplesmente por aquilo que se repete e que há de mais comum nos
fenômenos jurídicos, devemos buscar por aquilo que melhor os caracterizam enquanto
tal. Em vez de tentarmos montar uma teoria que se aplique igualmente bem a
todas as manifestações do Direito que existem, devemos reduzir seu escopo
explicativo principalmente àqueles casos em que essas características aparecem
de forma sobressalente e desenvolta.
Contudo,
fica uma questão a ser resolvida, a saber, como determinar quais são as características
e os aspectos mais importantes do Direito, que irão compor o significado focal
e definir os casos centrais? Finnis pretende responder a isso dizendo-nos que
essa determinação precisa se dar a partir de um certo ponto de vista. É a escolha
desse ponto de vista que nós levará à compreensão de quais são o significado
focal e o caso central.
Por
trás dessa afirmação, de que é preciso se montar o arcabouço metodológico a
partir de um ponto de vista, está nada mais nada menos do que um insight
hartiano. H.L.A. Hart, ao construir sua teoria do Direito como um conjunto de
práticas sociais, inovou ao dizer que é preciso analisa-las a partir do seu
ponto de vista interno. Significa dizer que, ao contrário do que fizeram
Bentham, Austin e Kelsen, não basta descrever o Direito apenas com base
naquelas regularidades e constâncias que ele apresenta, como o uso da força, a
aplicação de sanções, o fato de haver autoridades designadas para tomar
decisões, etc. Esses são aspectos constatáveis e perceptíveis para um
observador externo, isto é, um que fosse capaz de ver somente os participantes
da prática jurídica agem na maioria das vezes, daí porque esse é o chamado
ponto de vista externo. Mas nem de longe ele nos diz tudo sobre o que o Direito
é. Se as regras jurídicas se resumissem a isso, diz Hart, elas não seriam
diferentes de meros hábitos, como tomar café com leite de manhã e ir ao cinema
aos fins de semana. O que distingue hábitos de regras é justamente o fato que
os agentes consideram as regras como obrigatórias e o desvio em relação a elas
como errado, enquanto que os hábitos não. Precisamos, pois levar em
consideração o ponto de vista daquele que usa a regra para avaliar/julgar a
conduta dos outros bem como a sua própria, julgando-as como corretas, desviantes,
dignas de crítica, reprováveis, etc., o que Hart chamou de ponto de vista
interno.
Finnis
acompanha Hart no sentido de concordar que o Direito é uma instituição de
caráter prático, que cumpre um papel central na orientação do comportamento dos
indivíduos. Também não discorda de seu mestre quanto ao fato de o ponto de
vista interno ser altamente relevante em uma teoria do Direito para que ela
seja bem sucedida. A divergência entre os dois é que Finnis considera que o
entendimento de Hart sobre o ponto de vista interno é lato demais. Hart teria
considerado que o ponto de vista interno engloba certos pontos de vista que
para Finnis seriam de menor importância em relação a outros. Na interpretação
que Finnis dá ao que está dito na primeira edição de “O Conceito de Direito”,
por exemplo, Hart teria dito que contam como ponto de vista interno não só o
ponto de vista daquele que obedece às regras por respeito ao Direito, mas
também o daquele que apenas deseja agir como os demais, ou o daquele que o faz
simplesmente por força da repetição de seu comportamento, ou ainda o daquele
que o faz com vista a objetivos pessoais. No ponto de vista externo estariam
aquele que não compreende o sentido das regras e, no extremo, aquele que acha
que não lhes deve obediência, seguindo-as simplesmente para evitar
consequências negativas.
Ora,
para Finnis, tanto o autointeressado, quanto o obediente por tradição, quanto o
que quer simplesmente imitar os outros não têm pontos de vista que mereçam
grande consideração para a formulação de uma teoria do Direito. Isso porque o
ponto de vista desses indivíduos não se fundamenta sobre uma real preocupação
com o cumprimento das determinações jurídicas. Ao contrário: comparados com o
ponto de vista daquele que se entende realmente obrigado a obedecer ao Direito,
esses outros pontos de vista mais parecem formas desviantes e em certo sentido
degeneradas, tal como os casos periféricos são para o caso central.
Com
isso, pretende Finnis, uma vez assimilado e devidamente “purificado” aquilo que
entendemos ser o ponto de vista interno (ou prático), chegamos à escolha do
nosso ponto de vista. Se quisermos saber quais são os aspectos relevantes (que
resultarão no significado focal) e os exemplares importantes (que resultarão no
caso central), precisamos tomar o ponto de vista daquele que vê no Direito uma fonte
de obrigações verdadeiras, isto é, aquele que o Direito como algo que lhe cria
obrigações válidas, como se fossem obrigações morais.
Ao
cabo dessas explanações, Finnis acredita ter dado o primeiro passo rumo à
reabilitação do jusnaturalismo enquanto teoria. Se antes ele era descartado
pelos positivistas por ser considerado como uma prescrição de um direito ideal,
moralmente correto e justo, agora, diz Finnis, somos capazes de compreender
como na verdade ele é tão descritivo quanto o positivismo. É apenas que a
descrição jusnaturalistas privilegia alguns casos do Direito em relação a
outros, em vez de atribuir a todos a mesma importância para se extrair a
natureza fundamental do Direito. O modo como se dá essa valorização de alguns
casos sobre os demais não é arbitrário, mas antes pautado na distinção daqueles
casos em que podemos enxergar melhor cumprida a finalidade de uma instituição
como o Direito, que é a orientação e a prescrição do comportamento humano. Ao
fazer essa filtragem, Finnis acredita que o jusnaturalismo inclusive fornece
uma melhor descrição do que a do positivismo, na medida em que, por esse mesmo
motivo metodológico, não corre o risco de nos levar a confusões ou becos sem
saída em uma tentativa de encontrar um denominador comum a tudo aquilo que
chamamos Direito.
Terminada
essa fase metodológica, importante para seu projeto teórico, Finnis prossegue
no capítulo seguinte com uma exposição e desconstrução em série de diversas
visões caricaturais sobre o jusnaturalismo que foram se sedimentando ao longo
da história das ideias. Contudo, ele continua com o seguinte problemas em mãos:
já que o ponto de vista mais adequado é o de quem vê no Direito uma fonte de
obrigações moralmente legítimas, como podemos saber quando as obrigações que o Estado
e outras instituições jurídicas nos criam são de fato obrigações aceitáveis do
ponto de vista moral? Para responder a essa questão, Finnis iniciará uma longa
reflexão sobre quais são as coisas que o agente enquanto agente valoriza por si
mesmas, na forma de certos bens que todas as pessoas invariavelmente perseguem.
Mas isso é assunto para uma outra postagem.