quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Finnis sobre a Descrição do Direito


No capítulo 1 de “Lei Natural e Direitos Naturais”, John Finnis pretende de uma só vez nos mostrar como o jusnaturalismo é uma teoria descritiva do Direito (e portanto está páreo com o positivismo jurídico) e como ele possui significativas vantagens em relação ao positivismo pela sua forma diferenciada de fazer descrição. Nesta postagem, pretendo passar por alguns aspectos centrais da proposta metodológica de Finnis e qual o direcionamento o autor pretende dar à teoria do Direito que pretende construir.
John Finnis (1940-)

Finnis começa a partir de algumas observações metodológicas aparentemente triviais. Toda descrição que se pretenda fazer de alguma coisa implica que nós abordemos características e aspectos dessa coisa, detalhando-os e aprofundando-os, de forma a determinar sua natureza. Ocorre que, para qualquer objeto que se queira descreve, ele sempre apresentará uma vastidão e uma diversidade de aspectos e de exemplares no mundo a serem apreciados que é humanamente impossível darmos conta de todos eles de uma só vez. No caso do Direito, objeto especialmente complexo, isso é bastante fácil de se perceber. Há sistemas jurídicos baseados nos costumes, outros baseados na autoridade da tradição, outros que não empregam leis escritas. Há sistemas cujas fontes são uniformes e pré-determinados, enquanto que outros se modificam e se transformam de maneira relativamente dispersa e aleatória. Há sistemas que aplicam as regras de maneira uniforme e regular, outros em que a aplicação das mesmas regras se dá de forma diferente de acordo com a situação, ou em que nem mesmo são as mesmas regras que se aplicam a todos os casos.
Assim, fica evidente que uma descrição só se torna viável de ser feita contanto que antes se faça uma seleção de quais aspectos do Direito e quais exemplos concretos do fenômeno jurídico serão levados em consideração e quais serão deixados de lado. A descrição será feita a partir de uma abordagem desses aspectos e exemplares em primeiro lugar, e, apenas de forma secundária e eventual, daqueles outros casos e aspectos que ficaram de fora.
No entanto, observa Finnis, essa seleção necessariamente precisará ser feita com base em critérios. E esses critérios de forma alguma serão neutros. Uma vez que eles servem para determinar o que interessa e o que não interessa para fins de análise teórica, eles são critérios valorativos. São o meio pelo qual decidimos se algo tem ou não tem importância, se merece atenção ou pode ser descartado. Selecionar é discriminar, é fazer juízo de valor, ainda que este juízo de valor, pelo menos neste nível metodológico, não seja do tipo que classifica as coisas como boas ou ruins. Qualquer um que se arrogue a dizer que sua descrição é completamente neutra não estaria fazendo mais do que tentar ocultar o caráter não neutro implícito e inegável que sua descrição já apresenta.
Finnis alega que o positivismo jurídico,-como não poderia deixar de ser, à luz do que já foi dito-, também faz sua seleção não neutra dos aspectos e exemplares relevantes. As escolhas positivistas a esse respeito foram invariavelmente pelos aspectos mais comuns e gerais que o Direito apresenta, isto é, o positivismo buscava por aqueles aspectos e características que poderiam ser encontrados, se não em todos os sistemas jurídicos, mas pelo menos na maior parte deles. Trata-se de uma preferência pelo que é mais recorrente e mais frequente de se observar no Direito, como o seu caráter coercitivo, o emprego de sanções, a obrigatoriedade das normas, etc.
É nesse ponto que, na minha leitura, Finnis fixa seu primeiro esteio longe da tradição e do ambiente filosófico em que está inserido. Inspirado em Aristóteles, propõe uma outra forma de lidarmos com a questão dos critérios e da seleção. Para já introduzir a terminologia finnisiana, o conjunto dos aspectos mais importantes de um determinado conceito é o que podemos chamar de seu significado focal. Paralelamente, todos aqueles exemplares- isto é, as manifestações concretas do conceito- que expressam seu significado focal constituem o seu caso central. Naturalmente, aqueles manifestações que não expressam o significado focal serão compreendidos como casos periféricos.
O caso central merece esse nome porque, como fica fácil de compreender, é dele que extrairemos as informações que queremos obter a respeito do que está sendo estudado. Isso equivale a dizer que é sobre o caso central que o teórico descritivo volta seu holofotes. É no caso central que enxergamos as coisas em sua forma mais madura e desenvolvida, e é ele que torna todos os demais casos inteligíveis ao intelecto humano. À luz do caso central, todos os demais casos ainda são exemplos, porém sempre possuem alguma dimensão em que são incompletos, imperfeitos, defeituosos ou desviantes, dimensões estas que só nos são compreensíveis tendo em vista aquele caso central.
Dito isso, agora já sabemos que rumo a descrição do Direito deve tomar: em vez de buscar simplesmente por aquilo que se repete e que há de mais comum nos fenômenos jurídicos, devemos buscar por aquilo que melhor os caracterizam enquanto tal. Em vez de tentarmos montar uma teoria que se aplique igualmente bem a todas as manifestações do Direito que existem, devemos reduzir seu escopo explicativo principalmente àqueles casos em que essas características aparecem de forma sobressalente e desenvolta.
Contudo, fica uma questão a ser resolvida, a saber, como determinar quais são as características e os aspectos mais importantes do Direito, que irão compor o significado focal e definir os casos centrais? Finnis pretende responder a isso dizendo-nos que essa determinação precisa se dar a partir de um certo ponto de vista. É a escolha desse ponto de vista que nós levará à compreensão de quais são o significado focal e o caso central.
Por trás dessa afirmação, de que é preciso se montar o arcabouço metodológico a partir de um ponto de vista, está nada mais nada menos do que um insight hartiano. H.L.A. Hart, ao construir sua teoria do Direito como um conjunto de práticas sociais, inovou ao dizer que é preciso analisa-las a partir do seu ponto de vista interno. Significa dizer que, ao contrário do que fizeram Bentham, Austin e Kelsen, não basta descrever o Direito apenas com base naquelas regularidades e constâncias que ele apresenta, como o uso da força, a aplicação de sanções, o fato de haver autoridades designadas para tomar decisões, etc. Esses são aspectos constatáveis e perceptíveis para um observador externo, isto é, um que fosse capaz de ver somente os participantes da prática jurídica agem na maioria das vezes, daí porque esse é o chamado ponto de vista externo. Mas nem de longe ele nos diz tudo sobre o que o Direito é. Se as regras jurídicas se resumissem a isso, diz Hart, elas não seriam diferentes de meros hábitos, como tomar café com leite de manhã e ir ao cinema aos fins de semana. O que distingue hábitos de regras é justamente o fato que os agentes consideram as regras como obrigatórias e o desvio em relação a elas como errado, enquanto que os hábitos não. Precisamos, pois levar em consideração o ponto de vista daquele que usa a regra para avaliar/julgar a conduta dos outros bem como a sua própria, julgando-as como corretas, desviantes, dignas de crítica, reprováveis, etc., o que Hart chamou de ponto de vista interno.
Finnis acompanha Hart no sentido de concordar que o Direito é uma instituição de caráter prático, que cumpre um papel central na orientação do comportamento dos indivíduos. Também não discorda de seu mestre quanto ao fato de o ponto de vista interno ser altamente relevante em uma teoria do Direito para que ela seja bem sucedida. A divergência entre os dois é que Finnis considera que o entendimento de Hart sobre o ponto de vista interno é lato demais. Hart teria considerado que o ponto de vista interno engloba certos pontos de vista que para Finnis seriam de menor importância em relação a outros. Na interpretação que Finnis dá ao que está dito na primeira edição de “O Conceito de Direito”, por exemplo, Hart teria dito que contam como ponto de vista interno não só o ponto de vista daquele que obedece às regras por respeito ao Direito, mas também o daquele que apenas deseja agir como os demais, ou o daquele que o faz simplesmente por força da repetição de seu comportamento, ou ainda o daquele que o faz com vista a objetivos pessoais. No ponto de vista externo estariam aquele que não compreende o sentido das regras e, no extremo, aquele que acha que não lhes deve obediência, seguindo-as simplesmente para evitar consequências negativas.
Ora, para Finnis, tanto o autointeressado, quanto o obediente por tradição, quanto o que quer simplesmente imitar os outros não têm pontos de vista que mereçam grande consideração para a formulação de uma teoria do Direito. Isso porque o ponto de vista desses indivíduos não se fundamenta sobre uma real preocupação com o cumprimento das determinações jurídicas. Ao contrário: comparados com o ponto de vista daquele que se entende realmente obrigado a obedecer ao Direito, esses outros pontos de vista mais parecem formas desviantes e em certo sentido degeneradas, tal como os casos periféricos são para o caso central.
Com isso, pretende Finnis, uma vez assimilado e devidamente “purificado” aquilo que entendemos ser o ponto de vista interno (ou prático), chegamos à escolha do nosso ponto de vista. Se quisermos saber quais são os aspectos relevantes (que resultarão no significado focal) e os exemplares importantes (que resultarão no caso central), precisamos tomar o ponto de vista daquele que vê no Direito uma fonte de obrigações verdadeiras, isto é, aquele que o Direito como algo que lhe cria obrigações válidas, como se fossem obrigações morais.
Ao cabo dessas explanações, Finnis acredita ter dado o primeiro passo rumo à reabilitação do jusnaturalismo enquanto teoria. Se antes ele era descartado pelos positivistas por ser considerado como uma prescrição de um direito ideal, moralmente correto e justo, agora, diz Finnis, somos capazes de compreender como na verdade ele é tão descritivo quanto o positivismo. É apenas que a descrição jusnaturalistas privilegia alguns casos do Direito em relação a outros, em vez de atribuir a todos a mesma importância para se extrair a natureza fundamental do Direito. O modo como se dá essa valorização de alguns casos sobre os demais não é arbitrário, mas antes pautado na distinção daqueles casos em que podemos enxergar melhor cumprida a finalidade de uma instituição como o Direito, que é a orientação e a prescrição do comportamento humano. Ao fazer essa filtragem, Finnis acredita que o jusnaturalismo inclusive fornece uma melhor descrição do que a do positivismo, na medida em que, por esse mesmo motivo metodológico, não corre o risco de nos levar a confusões ou becos sem saída em uma tentativa de encontrar um denominador comum a tudo aquilo que chamamos Direito.
Terminada essa fase metodológica, importante para seu projeto teórico, Finnis prossegue no capítulo seguinte com uma exposição e desconstrução em série de diversas visões caricaturais sobre o jusnaturalismo que foram se sedimentando ao longo da história das ideias. Contudo, ele continua com o seguinte problemas em mãos: já que o ponto de vista mais adequado é o de quem vê no Direito uma fonte de obrigações moralmente legítimas, como podemos saber quando as obrigações que o Estado e outras instituições jurídicas nos criam são de fato obrigações aceitáveis do ponto de vista moral? Para responder a essa questão, Finnis iniciará uma longa reflexão sobre quais são as coisas que o agente enquanto agente valoriza por si mesmas, na forma de certos bens que todas as pessoas invariavelmente perseguem. Mas isso é assunto para uma outra postagem.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

Reconstruindo o Pensamento de Rawls. Justice as Fairness (1958): Resenha


Este ano tenho a pretensão de iniciar um estudo mais detido e aprofundado sobre teorias da justiça. Fazer isso exige, é claro, a leitura de uma série de livros, de autores muito variados e com abordagens igualmente variadas. Dando os passos iniciais nesse sentido, a postagem de hoje é dedicada a um artigo de Rawls publicado pela Universidade de Cornell em 1958, que tem por título “Justice as Fairness”. Pretendo agora fazer um apanhado geral das ideias expostas no artigo e minhas visões sobre elas. Desde o começo, é importante deixar claro que meu interesse sobre o texto de 1958 está muito mais na observação nas nuanças e mudanças que podemos observar entre as ideias de Rawls até então e o modo como ele as formularia em “Uma Teoria da Justiça” (1ª ed. 1971).
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John Rawls (1921-2002)
O objetivo de Rawls no artigo, como ele próprio o coloca, é mostrar que, ao contrário do que pode parecer, justiça e equidade (fairness) não são a mesma coisa, mas no cerne do conceito de justiça está a noção de equidade. O modo como Rawls pretende nos levar a essa conclusão é através da proposição de uma certa concepção de justiça que segundo ele nos pareceria intuitiva e razoável, seguida de uma argumentação sobre em que circunstâncias sociais essa concepção poderia ser aceita pelos integrantes da sociedade.
Em primeiro lugar, é importante que fique claro que Rawls aqui está pensando a justiça enquanto uma virtude das instituições. Não se trata dos méritos sobre justiça naquelas situações privadas entre uma pessoa e outra, mas antes da maneira como as instituições distribuem direitos e deveres, encargos e benefícios, bônus e ônus, obrigações e recompensas. Para usar os termos que o próprio filósofo usa, a justiça que está sendo tratada aqui é a justiça das práticas, termo que aqui designa todo tipo de atividade envolvendo as pessoas que é governada ou controlada por regras, indo de procedimentos políticos a cerimoniais, passando por julgamentos e eleições. Pessoas, por sua vez, tem um sentido um pouco mais lato do que o habitual. Inclui tanto os indivíduos quanto grupos empresariais, corporações, entidades coletivas, etc. A justiça não é a única virtude das instituições: também há, por exemplo, a eficiência. É apenas que dentre todas as virtudes que essas instituições podem ostentar, a justiça é aquela que parece ter mais destaque e maior importância. Nesse sentido, Rawls não está muito distante da forma como viria a caracterizar a justiça em sua obra de 1971.
A concepção de justiça pronta a que Rawls nos quer apresentar também lembra bastante as conclusões a que viria a chegar futuramente. No texto de 1958, a justiça social é definida segundo dois princípios. Primeiro, todas as pessoas que participam de práticas têm igual direito à mais ampla liberdade que seja compatível com uma liberdade semelhante para todos. Segundo, as desigualdade são arbitrárias se não se puder mostrar, de forma razoável, que sua existência gera benefícios para todos, e que essas desigualdades derivam de cargos e posições abertos para todos.
Assim, o primeiro princípio quer nos dizer dizer que todos têm direito à liberdade, mas a liberdade que cada um possui tem limites: ela não pode ser tão grande a ponto de afetar ou restringir a liberdade de outras pessoas. O segundo princípio é aquele que nos permite identificar quando estamos diante de uma desigualdade aceitável ou não. Ela será aceitável quando essa desigualdade (que pode ser em termos de salário, reconhecimento, gratificações, recompensas, bônus, deveres diferenciados, etc.) está relacionada a algum tipo de cargo ou de posição que todas as pessoas têm a possibilidade de acessar. E, mais do que isso, o fato dessa desigualdade existir precisa de alguma forma beneficiar a todos, e não apenas aqueles que gozam dessas vantagens.
O primeiro princípio serve para evitar que alguns sejam arbitrariamente colocados em uma condição melhor do que outros, ao passo que o segundo serve para sabermos se uma certa disparidade pode é legítima ou não. Assim (e estas já são conclusões minhas, não de Rawls) o primeiro princípio seria o que impediria que as eleições acontecessem segundo critérios censitários, enquanto que o segundo princípio seria o que impediria os detentores de mandatos políticos de receberem auxílio paletó. Diferentemente do que aconteceria em Uma Teoria da Justiça, o segundo princípio ainda não aparece elencado segundo dois “subprincípios”, nem há prioridade lexical a respeito de suas respectivas exigências. Seria, ainda, o segundo princípio o que autorizaria, em um processo seletivo igualitário, que os melhores pesquisadores recebessem mais bolsas e investimentos, já que as descobertas derivadas a partir de seus talentos potencialmente beneficiaria toda a sociedade, não apenas aqueles responsáveis por elas.
Mas por que esses princípios e não outros? Rawls acredita que possa nos justificar isso argumentando que seriam estes os princípios escolhidos (ou que pelo menos seriam razoáveis de se escolher) por uma coletividade de pessoas em certas circunstâncias. Essas pessoas Rawls pressupõe que sejam pessoas racionais. Ser racional, nesse contexto, implica uma série de coisas. Implica que as pessoas sejam capazes de calcular as consequências de seus atos, que consigam ter um mínimo de controle sobre seu comportamento, são capazes de resistir a tentações imediatas, sabem por alto quais são seus desejos e objetivos na vida, etc. Cada um tem uma ideia diferente do que é bom para si e de como quer conduzir sua própria vida, e ninguém está disposto a abrir mão de seus próprios objetivos pura e simplesmente em um gesto de altruísmo em relação a outras pessoas. São, portanto, egoístas racionais, embora isso de modo nenhum impeça que estabeleçam vínculos de afeto entre si, como se dá na formação de grupos familiares. Tampouco o fato de ser egoísta racional impede que haja cooperação entre essas pessoas, visto que é esta cooperação o fator responsável por fazê-las viver em sociedade.
Agora, diz Rawls, imaginemos que essas pessoas, que discordam entre si a respeito de variados assuntos, vez por outra entram em dúvida sobre o modo de funcionamento das instituições que as governam, isto é, vez por outra elas começam a se questionar se aquelas práticas (no sentido que explicamos há pouco), do modo como estão estabelecidas, são justas ou não. Daí porque elas periodicamente se reúnem para decidir sobre a adoção de novas formas sociais. A primeira coisa que elas definem é quais serão os princípios que usarão para julgar quando o estado de coisas é justo ou injusto. Esses princípios se aplicarão indiscriminadamente para todos. Aqui vemos já um prenúncio da posição original.
Em condições como essa, as pessoas não teriam como saber qual será a sua situação futuramente. Quem hoje goza de pleno bem estar amanhã pode não, assim como quem goza de influência, riqueza, etc. Uma vez que podemos presumir que todos desejariam princípios que lhe favorecessem pessoalmente, a única possibilidade razoável de ser aceita seria aquela em que todos gozassem da mesma liberdade. Com efeito, como todos querem a maior liberdade para si, mas ninguém que a liberdade do outro seja maior que a sua, uma opção viável seria aquela em que ninguém é mais ou menos livre que o outro, o que fundamenta o primeiro princípio. Já quanto à questão das desigualdades, elas jamais seriam aceitas por essa população se se provassem arbitrárias e aleatórias. No entanto, se essas vantagens puderem ser obtidas por todos em igual concorrência e se for possível provar que elas não prejudicam, mas antes beneficiam a situação de cada um, não haveria motivo para que não fossem aceitas. Assim se fundamenta o segundo princípio.
Com isso, Rawls acredita ter sido capaz de demonstrar aquilo que pretendia desde o começo do artigo, que era a relação de continente e conteúdo que existe entre justiça e equidade. E aqui vale uma observação que desde a primeira leitura desse texto me pareceu fundamental para a compreensão do que está sendo dito. O termo equidade, apesar de próximo, não é um correspondente perfeito de fairness no inglês. Isso porque, linguisticamente, as expressões derivadas de fairness são muito mais cotidianas e frequentes na língua inglesa dos que as expressões derivadas de equidade na língua portuguesa (além da palavra equidade em si). Em inglês, quando estamos jogando um jogo ou participando de algum tipo de competição, e percebemos que outra pessoa está tendo algum tipo de vantagem, é comum dizer que isso é “unfair” ou “that is not fair” por exemplo. Ao passo que em português é pouco usual nos referirmos a esse mesmo de situação como “iníqua”.
Isso é de fundamental importância porque a tese central que Rawls quer nos provar, a meu ver, envolve um pouco dessa questão do uso linguístico de fairness e de justice na língua inglesa. Arrisco a dizer que nesse momento de sua carreira Rawls estava de certa forma influenciado pela filosofia da linguagem ordinária ou algo semelhante, isso por causa da maneira como expõe seu entendimento a respeito da equidade. Rawls descreve equidade (fairness) como o modo como nos referimos àquelas situações em que há indivíduos livres, nenhum tendo poder sobre o outro, cada um almejando algo, e a interação entre eles é governada por regras que não favorecem ou prejudicam nenhum deles. Mais uma vez, é a situação do jogo, da aposta, da competição, do concurso, etc.
Pois bem, o ponto a que Rawls quer chegar é nos fazer ver que é justamente essa noção de fairness,- que aparentemente pertence a situações banais e de menor amplitude- está por trás do conceito de justiça. O tipo de equiparação entre as pessoas que seria gerada pela adoção dos dois princípios propostos seria o mesmo tipo de equilíbrio e não disparidade que existe em um jogo comum quando ele é “fair”. É apenas que, no caso da justiça, estamos lidando com outras formas de distribuição. Em vez de premiações e condecorações, estamos lidando com renda, vagas de emprego e recursos públicos. Apesar disso, a lógica é a mesma. Justiça e equidade não são duas noções totalmente diferentes. No fundo, a justiça contém dentro de si a equidade, operando em uma escala maior (esfera pública) e afetando mais pessoas (a sociedade em geral). Garantir condições de equidade em um jogo tem a ver com estabelecer as coisas de modo que nenhum tenha mais chances de ganhar do que o outro. Da mesma forma, o problema da justiça tem a ver com fazer com que a distribuição de benefícios e encargos não coloque ninguém em uma situação melhor que a do outro de forma arbitrária. No coração da justiça, mora a equidade.
Essa nova concepção de justiça como equidade, bastante convincente e bem compatível com nossas noções comuns do que vem a ser justiça, Rawls considera ser oponível à sua concorrente utilitarista. Justiça no utilitarismo tem a ver com a maximização das utilidades. A medida justa é aquela que gera a maior satisfação para o maior número de pessoas, de sorte que no utilitarismo a justiça se torna vizinha da eficiência. O modo como Rawls acredita que sua concepção de justiça seja melhor do que a utilitarista vai no sentido de dizer que essa abordagem do utilitarismo não consegue explicar a presença da equidade dentro do conceito de justiça.
O exemplo que Rawls usa para deixar isso claro é o da escravidão. Em que pese nossas intuições dizerem que escravizar pessoas é injusto sempre e em qualquer caso, o utilitarismo não descarta a escravidão como ilegítima de imediato. Ele só a exclui na medida em que ela não atende ao requisito de maximização da satisfação de todos. Se pensássemos em uma situação em que escravizar alguns resultaria em um máximo de prazer para a maioria, explica Rawls, a instituição do escravismo se tornaria perfeitamente aceitável à luz do utilitarismo. Nesse caso, restaria a nós dizer que são nossas intuições normais sobre justiça que estão equivocadas. Rawls acredita que muito mais preferível seria uma noção de justiça que se coadunasse com aquilo que normalmente nós já pensamos sobre escravizar pessoas, a saber, que isso não é admissível, ainda que possa beneficiar alguns ou mesmo a maioria. Embora não conte com todos os seus elementos, essa ideia já aparenta apontar no sentido do equilíbrio reflexivo, que só viria a ser introduzido com toda sua importância já em 1971.   

sábado, 2 de fevereiro de 2019

Amartya Sen: Desigualdade Reexaminada (Cap. 1, 2 e 3)


Todas as teorias normativas dos arranjos sociais, incluindo nisso teorias da justiça distributiva, de alguma forma têm um viés igualitarista. Mais precisamente, toda teoria dessa espécie sempre acredita que deve haver igualdade entre todas as pessoas em algum aspecto que ela considera relevante. Em Rawls, defende-se igualdade na distribuição de bens primários e nas liberdades básicas de que cada um dispõe. Em Dworkin, defende-se igualdade de recursos, por sua vez pautada em igualdade de respeito e de consideração. Nas teorias igualitárias propriamente ditas, defende-se igualdade de renda, ou de riqueza ou de algum outro requisito. Nas teorias utilitaristas, a igualdade está na exigência de a utilidade para todas as pessoas sejam considerada como tendo o mesmo valor no cômputo geral de cada situação a ser analisada. Até mesmo no libertarianismo de Nozick, há uma argumentação em favor de que todos possuam de forma igual liberdades (no sentido de não impedimento) em forma de direitos individuais, que excluiriam qualquer forma de intervenção estatal contra eles.
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Amartya Sen (1933-)
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Aquilo que cada teoria considera como sendo o fator que deve ser igual para todos, podemos chamar de variável focal. O grande detalhe para o qual temos de atentar contudo, é o da diversidade humana, ou seja, o fato de que entre as pessoas de um mesmo grupo ou de grupos diferentes, há diferenças que podem ser grandes ou pequenas, mas que jamais pode-se deixar de levar em consideração. Existem diferenças que dizem respeito tanto a circunstâncias pessoais (como idade, gênero, sexo biológico e habilidades físicas e mentais) quanto a circunstâncias externas ao indivíduo (localização geográfica, disponibilidade de alimentos e água potável, recursos naturais, clima, vetores de doenças, fertilidade do solo, etc.).
A importância da diversidade humana é que, justamente por causa dela, exigir igualdade em um certo nível implica desigualdade em outro. Por outras palavras, quando fazemos com que as pessoas sejam estejam em condições iguais em relação a uma certa variável, estamos inevitavelmente fazendo com que elas fiquem desiguais entre si em relação a uma outra variável.
Para ilustrar, suponhamos que em um certo país passe por uma crise de fome coletiva. Para combater esse problema, o governo lança mão de uma política que consiste em distribuir em cada residência uma mesma porção de mantimentos básicos. Se todas as pessoas fossem absolutamente iguais e tivessem absolutamente as mesmas características, a ação governamental teria sido precisa e acertada, ao menos para amenizar a situação. No entanto, sabe-se que na realidade há idosos (diferenças de idade), mulheres gestantes (diferenças de condição física), pessoas com alergias a certos alimentos (diferenças biológicas), pessoas que vivem em locais de difícil acesso e não computados pela administração pública (diferenças sociais) e muitas outras. De sorte que até poderia haver igualdade na posse de recursos alimentares, porém certamente haveria desigualdade no que se refere ao suprimento das necessidades nutricionais de cada um.
Da mesma forma, a própria razão pela qual cada uma das teorias citadas acima se excluem entre si e são antagônicas é exatamente porque o que uma considera como variável focal implica desigualdade naquilo que a outra considera como a sua variável focal. Igual distribuição de bens primários não pode conviver com igualdade de liberdades nozickianas. Igualdade na consideração de utilidade não pode conviver com igualdade de riqueza, e assim por diante.
Ora, se todas as teorias da justiça defendem igualdade de alguma coisa e, por causa da diversidade humana, a igualdade dessa coisa é incompatível com igualdade de outra coisa, isso significa que a questão fundamental que precisa ser resolvida não é “por que a igualdade?”, mas sim “igualdade de quê?”. Dito de outro modo, o problema não é mais o de saber se precisamos ou não de igualdade, mas sim o de saber qual tipo de igualdade é necessária.

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Na análise dos problemas a serem enfrentados por teorias normativas das instituições sociais, há pelo menos duas maneiras como elas podem ser abordadas. Em primeiro lugar, pode-se avaliar a situação identificando aquilo que as pessoas de fato realizam, fazem, são e possuem. A outra consiste em observar, em vez disso, aquilo que as pessoas têm liberdade para realizar, fazer, ser e possuir. A primeira forma está preocupada com aquilo que já existe na prática e com os resultados finais das escolhas feitas e dos rumos tomados por cada um dos indivíduos. A segunda, a seu turno, está preocupada com quais são as opções e as possibilidades de escolha que as pessoas têm em seu respectivo contexto.
Correntes como aquelas que defendem igualdade de renda ou de riquezas têm como foco fazer com que, ao final de todo o processo social de agrupamento e interação entre as pessoas, cada uma saia com uma mesma porção de um tipo de bem (que pode ser a própria renda ou riqueza ou aquilo que elas permitem comprar). O grande problema de teorias como essa, que visam a resultados, é que, por causa da diversidade humana, a sua proposta igualitária não é capaz de eliminar uma série de formas de privação. Se a duas pessoas, uma analfabeta e a outra alfabetizada, fosse entregue uma mesma quantia em dinheiro, esta conseguiria usá-lo para fazer coisas que aquela não poderia em função da sua limitação.
Assim, voltando às teorias de Rawls e de Dworkin, fica fácil ver que elas padecem de um problema semelhante. Ao delimitarem seu foco sobre bens primários (Rawls) ou sobre recursos (Dworkin), elas acabam por se voltar muito mais aos meios que tornam a liberdade possível, mas não à liberdade em si. Por esse motivo, elas seriam capazes de se contentar com situações em que os indivíduos apenas dispusessem dos mesmos meios para se atingir a liberdade, ignorando a possibilidade de, mesmo com os mesmos meios, as pessoas não tenham de fato as mesmas liberdades, em função das circunstâncias em que se encontra cada um.
O problema se torna ainda mais dilacerante quando constatamos que, pela forma como foram construídas, essas teorias nem mesmo poderiam dar conta da diversidade humana. No caso de Rawls, por exemplo, uma vez que tentássemos analisar a problemática da justiça distributiva pelas perspectivas de cada uma das pessoas em sua situação particular, seríamos obrigados a abrir mão do recursos metodológico do véu de ignorância, o que comprometeria a teoria quase que por completo.
O que é necessário, portanto, é uma abordagem alternativa. Essa abordagem precisa ser tal que veja a liberdade não como algo meramente instrumental, e sim como algo importante em si mesmo. Precisa ser uma teoria que tenha como foco não aquilo que as pessoas alcançam ou atingem, mas sim aquilo que cada um poderia escolher alcançar e atingir. Precisa se preocupar não com o que as pessoas são e fazem, mas sim com aquilo que elas têm condições e possibilidades de ser e de fazer. Aquilo que uma pessoa realiza em sua vida- como alimentar-se, locomover-se, estabelecer relações, ter vínculos de emprego, adquirir bens, etc- podemos chamar de funcionamentos (functioning) Em contrapartida, aquilo que uma pessoa tem liberdade (no sentido de possibilidade socialmente construída) podemos chamar de capabilidade (capability). Nesse sentido, nossa nova abordagem é uma voltada não para os funcionamentos, mas antes para a capabilidade.
De agora em diante, todo problema precisará ser enfrentado mediante uma análise na qual está em jogo quais são as capabilidades que se tem, e não mais quais os recursos ou quais os bens que se possui. Ao se pensar proposta de intervenção social com vista ao combate à desigualdade (agora definida em termos de capabilidade), não devemos nos perguntar o que cada pessoa ganharia com dessa forma. Na verdade, à luz desse novo aporte teórico, a pergunta correta a ser feita seria muito mais “de que maneira essa ação proporcionaria às pessoas novas possibilidades ou aumentaria aquelas que elas já têm?”.
Feito isso, agora sim temos as ferramentas conceituais necessárias para construir uma nova teorias sobre os arranjos sociais mais ampla e mais adaptada a cada caso concreto. Mais do que isso, por ser uma abordagem que se baseia nas liberdades substantivas, a abordagem das capabilidades abre caminho para a construção de novas formas de enfrentamento da questão de desigualdades sociais. Novas formas capaz de enxergar a pluralidade de identidades e de ser verdadeiramente inclusiva.