domingo, 12 de julho de 2020

Sobre Algumas Contribuições de Sócrates

A alma nos ordena conhecer quem nos admoesta “conhece-te a ti mesmo”
(Segundo Alcibíades, 130e)

Todos já ouviram falar de Sócrates, mestre de Platão. Embora sua fama seja notória e a importância de sua figura, inegável, é sabido que nada temos de Sócrates a não ser registros feitos do ponto de vista de outras pessoas, sendo os mais famosos os diálogos de Platão, alguns escritos de Xenofonte e a peça “As Nuvens” de Aristófanes. E, ainda assim, sobre todas essas fontes foram e são objeto de debate entre os historiadores da filosofia a respeito de que aspectos elas verdadeiramente nos revelam sobre quem foi Sócrates. De origens humildes quando comparadas às de seu maior discípulo, Sócrates não hesitou em colocar em questão algumas das principais crenças defendidas em Atenas em seu tempo quando elas não se provassem sustentáveis à luz da razão, o que lhe rendeu uma condenação à morte sob acusação de corromper a juventude, além ter sido considerado por Hegel como o primeiro indivíduo e por Nietzsche como o bastião de uma tradição de pensamento negadora da vida.
Longe de mim ousar pisar o terreno dessas discussões, gostaria, com essa postagem, de apenas fazer alusão a três ideias atribuídas a Sócrates e que, quer tenham sido realmente desenvolvidas por ele ou não, foram determinantes para a tradição filosófica posterior.
Uma nova concepção de alma
Seria absurdo dizer que foi Sócrates quem criou o conceito de alma. Afinal, há referências à alma em Homero, nas seitas órficas, nos pré-socráticos, nos poetas líricos e outras fontes mais. Nunca, porém, alguém havia concebido a alma como sendo idêntica à consciência. Em Homero, vemos a alma considerada como um tipo de entidade que deixa o corpo com a morte e se desloca para o Hades. No orfismo (que terá grande influência sobre Platão), a alma é algo que habito o corpo em um processo de expiação, que vive adormecida dentro de cada um de nós, que ascende a certos estados de consciência quando dormimos e que só se torna livre de sua prisão corpórea e totalmente dispersa com a morte. Nesse sentido, Sócrates foi o primeiro grande pensador a designar por “alma” o centro da capacidade pensante e das faculdades racionais. De Sócrates em diante, a minha alma é o meu eu, essa dimensão da minha existência que pensa, que raciocina, que decide e que escolhe. Isso tem pelo menos dois desdobramentos
Se é verdade que a essência do ser humano é sua alma em vez de seu corpo, então também é verdade que, se houver uma forma de vida que possa ser considerada superior às demais, ele deve ser uma forma de vida que atribui prioridade ao cuidado da alma sobre o cuidado do corpo, que valoriza aquilo que é bom para alma acima do que é bom para o corpo. Isso de forma alguma implica dizer que a dimensão corporal humana é desprovida de importância e não merece atenção. Significa, isso sim, que toda força, resistência, desenvoltura que o corpo vier a possuir, e mesmo as riquezas, propriedades e poder político, só possuem valor real na medida em que por trás delas esteja uma alma que alcançou um estágio de excelência
Uma nova concepção que integra virtude e saber verdadeiro
E o que quer dizer a excelência da alma? Se o ser humano é alma, e se alma, de Sócrates em diante, é intelectual, quer dizer que alma é tanto mais desenvolta quanto mais sábia e conhecedora a respeito do mundo e de si mesmo ela for. É por isso que a melhor das vidas possíveis é a vida na filosofia: aquela que valoriza acima de tudo o cultivo do saber e a busca da verdade.
Mas não é só isso. Na época de Sócrates, que também foi o tempo de grandes sofistas, as discussões em Atenas passavam por uma gama de questões éticas e morais. Por exemplo, se valores como justiça, coragem, piedade são só formas de comportamento reproduzidas ao longo do tempo ou se elas têm algum fundamento maior; se essas qualidades sempre aparecem juntas no indivíduo ou se é possuir algumas sim e outras não ;se as leis e a instituições se reduzem a costumes e convenções humanas ou se há algo a mais que as justifique.
A partir da ideia socrática do saber verdadeiro como valor supremo, uma tentativa de resposta a todas essas problemáticas começa a despontar. Aquilo a que chamamos de virtudes nada mais são do que o reflexo prático do conhecimento do bem. Todo aquele que chegou a compreender a ordem do mundo inevitavelmente sabe quais sãos os fins que merecem ser perseguidos. Por isso, sempre se comporta da maneira devida perante a diversidade de situações, e tem ciência exatamente de qual atitude tomar perante seus temores, desejos, fraquezas, etc. Na nova concepção socrática, conhecimento teórico e conhecimento prático são dois lados da mesma moeda, de modo que quem possui um necessariamente possui o outro. Ser sábio significa agir e viver bem, e só pode agir e viver bem quem conseguiu sair do terreno instável das opiniões para a verdade. Da mesma forma, a pessoa ignorante necessariamente padece do vício, e só sofre de vício quem ainda não contemplou a verdade.
Uma nova concepção de liberdade
Disso também deriva uma nova forma de pensar a liberdade. É famosa (principalmente a partir do texto de Benjamin Constant) a distinção entre a maneira antiga e a moderna de conceber a liberdade. Se para nós, modernos, ser livre é pode agir e escolher sem ser constrangido ou coagido, os antigos entendiam que livre era o homem que podia participar das instituições e viver somente sob as leis em cuja criação ele teve a possibilidade de opinar. Para além disso, Sócrates iniciou uma tradição de pensamento segundo a qual o ser humano pode ser escravo não apenas dos outros como também de si mesmo. Somos escravos de nós mesmos sempre que sucumbimos àquelas forças que fazem parte da nossa constituição, mas que não funcionam segundo nossas escolhas: as paixões. O homem passional não domina o próprio destino, porque, dado o caráter caótico da passionalidade humana, ele é levado para qualquer direção instável para onde ela apontar. Em vez disso, o homem livre possui a capacidade de fazer a razão se sobrepor à paixão, e dá a si mesmo a possibilidade de dirigir suas ações mesmo quando seu desejo pende para um sentido diferente. Liberdade aqui, significa autocontrole, domínio de si e independência em relação ao desejo.

Por último, para mostrar a importância dessas ideias, gostaria de terminar apontando alguns dos desdobramentos que elas tiveram na época contemporânea e posterior a Sócrates. Se Sócrates disse que virtude é saber e que a vida boa é uma vida de conhecimento das coisas verdadeiras, ele não respondeu à questão de como é possível que possamos sair da ignorância para a sapiência, de onde as almas vêm porque a verdade é assim e não de outro. Para isso foi preciso esperar a metafísica platônica, que partirá daquela premissa do primado da alma como consciência para dizer que a realidade possui uma estrutura dual, uma das quais é o domínio originário da alma e a sede dos verdadeiros objetos do conhecimento.
Além disso, na República, Platão famosamente proporá uma concepção de justiça que pretende fazer com que a estrutura da cidade idealmente justa corresponda à estrutura da alma, colocando o poder nas mãos justamente daqueles mais propensos a acessar a verdade sobre o mundo. No mesmo sentido, no livro I da Ética a Nicômaco, Aristóteles dirá que, se existe algo que merece ser chamado de bem supremo, ele consiste no exercício mais elevado e excelente possível daquela parte da alma que só o ser humano possui, a saber, a alma racional. Existem ainda aqueles grupos de pensadores que abraçaram partes da herança socrática e a partir dela desenvolveram doutrinas específicas, os chamados socráticos menores. Dentre eles estão os cínicos, que, radicalizando a concepção de liberdade inaugurada por Sócrates, acreditavam que a liberdade verdadeira requer um desligamento radical em relação às coisas mundanas, sob a forma de um silenciamento da busca pelos prazeres, do amor pela riqueza e do desejo pela fama, em prol de uma forma de vida simples, desprovida de luxos e próxima da naturalidade.

sábado, 25 de abril de 2020

A Crítica de Quine à Distinção entre Analítico e Sintético

Willard van Orman Quine, mais conhecido como W.V.O. Quine (1908-2000), foi um dos mais importantes autores da filosofia analítica do século XX. Em suas contribuições à lógica e à epistemologia, Quine foi um dos grandes responsáveis por abrir caminho para aquilo que hoje se conhece como naturalismo, corrente de pensamento segundo a qual não existe distinção qualitativa entre o trabalho investigativo das ciências (especialmente as ciências naturais) e o da filosofia. Em seu famoso artigo “Dois Dogmas do Empirismo” (1951), Quine ataca a conhecida distinção entre enunciados analíticos e sintéticos, argumentando que não há boa razões para aceitar essa distinção. O artigo foi posteriormente incluído na coletânea de Quine chamada “De um Ponto de Vista Lógico”, traduzida no Brasil pela editora Unesp. Dado que esse texto foi decisivo para o projeto de Quine como um todo, pretendo fazer aqui uma pequena esquematização de seu argumento e mostrar como ele acena para uma guinada naturalista na filosofia.
W. V. O. Quine

Antes, porém, gostaria de me debruçar um pouco sobre a distinção analítico-sintético em si, e qual papel até então ela havia desempenhado dentro da filosofia analítica. Essa distinção de forma alguma é uma novidade do século XX. Ela aparece tendo um papel central, pelo menos, desde a Crítica da Razão Pura de Kant (1781). Mas, até o momento em que Quine escreveu sobre o tema, ela havia sofrido algumas modificações consideráveis, de modo que poderia ser colocada mais ou menos assim.
Um enunciado analítico é aquele que pode ser considerado verdadeiro ou falso em virtude apenas do seu significado. Enunciados como “todo triângulo tem três lados”, “a bola é redonda”, “o que é grande não é pequeno”, são enunciados desse tipo, porque basta saber o que significa cada palavra que os compõe e as regras básicas da lógica, e já poderemos dizer se são verdadeiros ou não. Enunciados analíticos dispensam, portanto, qualquer confirmação ou verificação a partir de nada que não seja o enunciado mesmo. O enunciado sintético, como se poderia esperar, é exatamente aquele cujo significado apenas não é suficiente para que se possa dizer que ele é verdadeiro ou não, de modo que isso só pode ser confirmado observando-se algum tipo de estado de coisas no mundo. Para dar novos exemplos, “a soma dos ângulos interno de um triângulo é 180º”, “a bola é amarela”, “a bola é grande”, são enunciados conceitualmente passíveis tanto de veracidade quanto de falsidade, e só é possível dar a palavra final a esse respeito examinado a realidade e objeto de que eles tratam.
O que eu quero deixar claro é que essa distinção não se trata de uma mera forma de categorizar enunciados, mas que ela cumpriu um papel importante na definição daquilo que os primeiros filósofos analíticos consideravam que era sua tarefa em contraste com a ciência. Pois se é verdade que há uma classe de enunciados cuja verificação depende de um exame da realidade concreta, também deve ser verdade que nossa capacidade determinar sua veracidade ou falsidade será tanto maior quanto mais precisos forem os métodos que usarmos para isso. Ou seja, teremos mais certeza a respeito dos enunciados sintéticos quanto maior for o rigor das metodologias que usamos para investigar a realidade.
Isso tem uma consequência crucial para o filósofo. Pois no estágio em que se encontrava o conhecimento humano- ou assim se pensava quando esta ideia surgiu- quem dispunha de métodos precisos e rigorosos era a ciência, sobretudo às ciências naturais. Ao passo que a filosofia contava apenas com o pensamento abstrato, experimentos mentais e o emprego de categorias lógicas. Nessa linha de raciocínio, faz sentido que a filosofia se ocupe exclusivamente daquilo que pertence ao campo da analiticidade, deixando tudo que envolve enunciados sintéticos a cargo da ciência. Ao filósofo, cabe investigar tão somente o que é conceitual e não dependente de provas empíricas. Disso resulta uma espécie de divisão de tarefas entre ciência e filosofia, em que as duas, de certa forma, andam “de mãos dadas”. A filosofia trata de problemas que são pertinentes e relevantes para o progresso da pesquisa científica, mas que o cientista não pode, ele próprio, investigar. Enquanto a ciência procura saber quais as leis que regem o mundo, quais as causas dos fenômenos e quais as propriedades da matéria, a filosofia procura esclarecer o que conta como uma causa, como se pode expressar verdades de forma não-ambígua, o que significa dizer que algo é uma lei, etc.
Muito bem. E como Quine atacará essa distinção? O argumento de Quine possui alguns passos, que transitam de analiticidade à sinonímia, e de sinonímia a intercambialidade salva veritate. A partir de agora, o que significam essas expressões e como ele faz isso.
Quine começa dizendo que os enunciados considerados analíticos aparecem em pelo menos dois tipos. Um, sob certo ponto de vista, apresenta-se forma bastante óbvia, como, para usar o seu próprio exemplo “nenhum homem não casado não é casado”, que é um enunciado aparentemente autoevidente e independente de empiria. Há uma outra forma, porém, como os enunciados analíticos se mostram, que é um pouco mais difícil de encaixar na definição que demos anteriormente. Usando mais uma vez o exemplo do autor, “nenhum solteiro é casado” pertence a esse segundo grupo. E o que há diferente nesse segundo enunciado? É que, se alguém tivesse dúvida sobre ele ser um enunciado analítico, bastaria trocar “solteiro” por “homem não casado”, e ele iria se transformar naquele primeiro enunciado, este, por sua vez, “claramente” analítico.
Ora, mas só podemos fazer essa conversão de enunciado no outro (e assim ter certeza de sua analiticidade), se for verdade que “solteiro” e “homem não casado” são sinônimos. Em outras palavras, a analiticidade do enunciado só se confirma se também pudermos provar a relação de sinonímia existente entre essas duas expressões, e, mais importante de tudo, que essa relação é ela própria independente de informação empírica. Porque, se a veracidade da sinonímia tiver fundamentos empíricos, isso já desmentiria que o enunciado acima é analítico.
Assim, analiticidade precisa de sinonímia. E sinonímia consiste em quê? Quine propõe, a essa altura do argumento, que pensemos a sinonímia pertinente para essa questão pode ser definida como intercambialidade salva veritate. Falar de intercambialidade equivale a dizer que duas palavras ou expressões podem ser trocadas, substituídas uma pela outra. A designação salva veritate, aqui, quer dizer que essa substituição é tal que não modifica o valor de verdade do enunciado em questão, ou seja, o seu status como enunciado verdadeiro ou falso. Em síntese, quanto temos um enunciado verdadeiro (ou falso), podemos dizer que há intercambialidade salva veritate, se, ao trocarmos uma das expressões que o compõem por outra, o enunciado permanece sendo verdadeiro (ou falso). No exemplo em discussão, trata-se de que “solteiro” e “homem não casado” possam ser substituídos um pelo outro de um jeito que a frase como um todo continua verdadeira.
Obs.: Quine faz um adendo sobre esse ponto. Diz que não está interessado em qualquer possibilidade de troca mútua entre expressões, mas apenas no que ele denomina, de maneira preliminar, de sinonímia cognitiva. Não se está falando, portanto, da possibilidade de substituições de termos dentro de textos poéticos ou metafóricos, quando poderíamos observar possibilidades de troca incomuns dentro da linguagem comum ou científica.
Então, analiticidade requer sinonímia. Sinonímia requer intercambialidade salva veritate. O que precisa ser provado, agora, é se podemos demonstrar que duas expressões são intercambiáveis no sentido que estamos falando, de maneira que essa demonstração seja puramente conceitual e despojada de elementos empíricos. Isto é, trata-se, em última instância, de saber se o fato de duas expressões serem intercambiáveis é ou não empiricamente puro, ou, se, ao contrário, é algo que só se confirma analisando algum estado de coisas no mundo. Trata-se, enfim, de saber se intercambialidade salva veritate é condição suficiente de sinonímia.
E aqui vem o momento crucial dessa discussão. Quine tentará nos convencer de que o caráter intersubstituível de duas expressões não é algo que possamos saber de forma abstrata ou apriorística, mas sim que essa é uma característica contingente linguagem, ao qual estamos tão familiarizados a ponto de considerá-lo como não empírico. Abstraindo um pouco as coisas e adaptando a argumentação de Quine, poderíamos pensar numa série de objetos x que tenham todos a propriedade A, o que podemos formular na proposição “todo x é A”. Suponhamos, porém, que todos os objetos x também tenham a propriedade B, o que se expressa na proposição “todo x é B”. Ora, já que A e B são propriedades possuídas ao mesmo tempo por todos os objetos x, é possível trocar “A” por “B” dentro desses enunciados sem mudar o seu valor de verdade. Mas isso definitivamente não significaria que esses são enunciados analíticos. Para pensar em termos menos abstratos, é possível que tenhamos um caso de expressões intercambiáveis que não mantêm o significado em questão, o que significa que não haveria sinonímia, nem, consequentemente, analiticidade. É o que ocorre, como diz Quine, em pares como “criaturas com rins” e “criaturas com coração”, em que a possibilidade de substituição mútua é apenas um acidente que diz respeito a esta linguagem particular.
Ao final de todo esse raciocínio, conclui Quine, percebemos que a intercambialidade salva veritate é insuficiente para explicar sinonímia e analiticidade. Se há expressões que podem ser trocadas umas pelas outras produzindo aquele efeito de verdade aparentemente conceitual, isso é uma propriedade contingente daquele grupo de expressões naquela linguagem específica. Seria perfeitamente possível imaginar um mundo em que “solteiro” e “homem não casado” não fossem sinônimos, nem pudessem formar um enunciado que chamamos de analítico. Nesse sentido, eu só posso saber que “solteiro” e “homem não casado” podem ser tratados como sinônimos porque já tenho um conhecimento prévio sobre o modo como essas duas expressões funcionam nessa linguagem particular. Ou seja, preciso ter algum conhecimento prévio sobre como é que certos falantes usam essas expressões ou não.
Ora, dado que toda informação sobre o uso específico de expressões é uma informação sobre um estado de coisas no mundo, segue-se disso que não há enunciado analítico que não seja formado a partir de alguma informação de natureza sintética. Dito de outra maneira, qualquer enunciado que aparente possuir analiticidade no fundo repousa sobre a presunção de algo que só poderia ser provado de forma empírica. “Todo triângulo tem três lados” depende da maneira particular como uma certa figura geométrica é desenhada. Mas uma pessoa só poderia saber que tal figura é desenhada sempre daquela maneira se já tivesse tido contato com ela repetidas vezes em suas experiência prévias. Quine quer dizer, portanto, que todo enunciado dito analítico possui um “input” que só se revela sinteticamente.
Para concluir essa postagem, quero fazer pelo menos algumas considerações de qual a importância desse argumento para a história da filosofia analítica.
Se todo enunciado antes considerado analítico revela que, em verdade, depende de um esclarecimento de natureza empírica, então não faz mais sentido que esses enunciados sejam discutidos de forma conceitual e apartada da experiência. A própria ideia de uma “verdade conceitual” perde sentido, na medida em que tudo aquilo que pensávamos ser puramente conceitual tem algum elemento empírico tácito.
Mas está longe de ser só isso. Uma vez que a separação analítico-sintético é relativizada, já não há mais bons motivos para crer naquela divisão das tarefas intelectuais entre filosofia e ciência de que falamos no início. Deixar que os filósofos continuassem a tratar de verdades conceituais como se elas independessem da experiência no fundo seria deixar que eles discutissem afirmações dependentes da experimentação sem qualquer método adequado para isso. Aceitar o argumento de Quine acarreta uma revisão substancial na maneira como se pensa a relação entre saber científico e saber filosófico, uma revisão cujo primeiro passo é reconhecer que entre um e outro não há nenhuma diferença qualitativa, mas antes continuidade.
Na prática isso quer dizer, como a ciência é quem possui os métodos rigorosos, e agora sabemos que as questões discutidas pela filosofia ressoam questões empíricas, a maneira adequada de fazer filosofia é trazer o conhecimento produzido pela ciência para dentro do pensamento filosófico. Ou seja, racionar filosoficamente tomando sempre como base e como fonte de informações fidedignas aquilo que for sendo descoberto empiricamente pela ciência ao longo do tempo. Ao filósofo cabe abraçar as descobertas científicas como seu ponto de partida e como seu horizonte de reflexão. A essa perspectiva, de que a filosofia em parte se confunde com a ciência e deve ser informada pelas descobertas das ciências naturais, damos o nome de naturalismo, do qual Quine é um grande defensor.
Assim, o jeito certo de fazer epistemologia passa a ser tomando como base aquilo que for revelado sobre a mente humana pela psicologia cognitiva e o modo como ela interage com a realidade. O jeito certo de fazer ética passa a ser pensar sobre o agir moral e a conduta a partir do que a teoria da evolução biológica tem a dizer sobre o comportamento e a ação humana em seu estágio atual.
No campo da teoria do direito, que é um dos meus interesses pessoais de estudo, a aceitação do naturalismo implica abandonar a famigerada análise conceitual. Se quisermos entender o que o direito é, não podemos nos limitar simplesmente a refletir a partir de nossas intuitivas sobre o direito, como fizeram Hart os outros membros da tradição positivista que se seguiu a ele. Pois, para a nossa surpresa, muito do que consideramos intuitivo muitas vezes se revela como mera idiossincrasia da forma de pensar de uma classe social específica, após uma simples pesquisa empírica. Em vez disso, deveríamos partir de investigações quantitativas e experimentais sobre o comportamento dos operadores do direito e sobre o que os indivíduos realmente pensam sobre as instituições jurídicas, para que aí sim tenhamos uma base de informações seguras para começar a dizer o que o direito é. Na tradição anglo-saxã, talvez o maior nome dessa corrente de pensamento, o naturalismo jurídico, seja o de Brian Leiter

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Freud e os Sonhos


Psicanálise sempre foi uma das áreas de conhecimento que me despertaram interesse. Não importa qual seja a sua formação ou as suas afinidades ideológicas, muito dificilmente você jamais ouviu falar de Freud, de Lacan, do famigerado complexo de Édipo ou de conceitos psicanalíticos que adentraram o senso comum assumindo conotações geralmente muito diversas daquelas que possuíam em seu contexto original, como as noções de recalque, perversão e repressão. Sabemos, também, que justamente pelo caráter inovador e pelo potencial de abalar crenças sociais arraigadas que são próprios da psicanálise, ela também se apresenta como um campo aberto a uma série de mal-entendidos e críticas infundadas.
Para dar um exemplo, se as teorias psicanalíticas sobre a sexualidade são capazes de exercer um efeito perturbador até mesmo em que esteja disposto a compreendê-las bem, que dirá sobre os que não estão abertos a questionamentos quanto a suas visões de mundo mais consolidadas. Por isso, esta postagem é dedicada àqueles que, como eu próprio, não grandes conhecedores da área, mas antes estão em busca de entender como ela se construiu e quais contribuições deixou para o mundo atual. Sabe-se que uma das primeiras inovações propostas por Freud foram suas teorias a respeito do significado dos sonhos e como eles podem ser úteis no tratamento de transtornos mentais, teorias estas que podem ser encontradas em seus primeiro livro importante, A Interpretação dos Sonhos (1900). Há um outro texto menor, no entanto, em que funciona como espécie de resumo do livro. Trata-se de um ensaio que tem como título “Os Sonhos” (1911), no qual podemos encontrar as linhas mestras do trabalho que Freud desenvolveu sobre a atividade onírica humana. É com base neste texto que escrevo essa postagem.
Sigmund Freud (1856-1939)
Como essa é a primeira postagem em que toco em psicanálise, parece interessante, antes de falar do objeto central, tecer alguns comentários de como os sonhos chegaram ao centro dos estudos de Freud. Sabemos que Freud, que praticava pesquisa médica no campo da neurologia, já no final do século XIX, interessou-se pelo estudo das neuroses. Mais especificamente a chamada histeria, um tipo de neurose que na época era conhecido por acometer sobretudo mulheres (a palavra histeria vem do termo grego para “útero”). Neurose é uma expressão não muito fácil de definir, que ganhou conotações diferentes em épocas diferentes, mas para os fins dessa exposição podemos dizer que neurose é todo distúrbio funcional sem causas somáticas/orgânicas identificáveis.
Trata-se de um fenômeno em que o paciente apresentava sintomas dos mais diversos, como perda de um dos sentidos, ou paralisia de algum membro, ou medos inexplicáveis, ou uma necessidade inevitável de realizar determinada tarefa, ou tremores súbitos, além de uma série de outros sintomas possíveis, até mesmo vários simultaneamente. Isso, porém, sem que se pudesse encontrar nenhuma explicação em seu organismo. Nenhuma alteração do funcionamento dos órgãos, nem sinais de infecção, nem nada que pudesse provocar a presença dos sintomas. Esses casos eram tão inexplicáveis para os médicos da época que muitos deles nem mesmo acreditavam que fosse uma patologia de verdade, e sim que era mero fingimento ou insanidade do paciente.
Convencido de que esse era um quadro clínico real e interessado em desvendar o que estava por trás, Freud partiu para a França para estudar com o médico francês Jean Martin Charcot, que recentemente havia ficado famoso por estudos sobre a histeria. Charcot havia observado que, colocando-os em estado de hipnose, conseguia não apenas fazer cessar os sintomas de pacientes neuróticos, da mesma forma como conseguia fazer com que pessoas sadias reproduzissem sintomas típicos de neuroses, enquanto estivessem hipnotizados. O insight fundamental que essa observação proporcionava era que, primeiro, a neurose é uma patologia de natureza psíquica e não corpórea. Segundo, e talvez mais importante, que deve haver um nível de atividade mental que está para além da consciência do paciente, de tal forma que a hipnose, afastando temporariamente a consciência do paciente, permitiria acessá-la.
Durante certo tempo, Freud estudou casos de pacientes acometidas por histeria, juntamente com o médico e amigo seu Josef Breuer, empregando o método da hipnose, e chegaram à conclusão de que de fato a sintomatologia tinha algo a ver com algum tipo de lembrança, evento ou emoção da paciente enterrada abaixo de sua consciência, que só podia ser acessada hipnotizando-a. Com o famoso caso de histeria da paciente que entrou para a história da psicanálise com o codinome de Anna O., Breuer se convenceu de que a cura para os sintomas histéricos seria possível se fosse capaz de fazer com que o paciente revivesse exatamente aquela lembrança traumática dentro do estado de hipnose. Segundo Breuer, a experiência de reviver hipnotizado a dinâmica emocional relacionada àquela lembrança teria o poder de liberar a energia psíquica patológica associada a ela, de forma que dali por diante o paciente ficaria livre dos sintomas.
Não muito tempo depois, entretanto, após a parceria entre os dois ter se rompido por motivos pessoais, Freud percebeu que a hipnose estava se mostrando ineficaz. Nem todas as pessoas podiam ser hipnotizadas, e nem todas as que podiam sê-lo alcançavam um grau de hipnose suficiente para proceder à investigação. Mais importante de tudo, Freud chegou à conclusão de que exatamente aqueles eventos da vida do paciente que estavam por trás dos sintomas lhe eram completamente inacessíveis à memória no estado de vigília. Isto é, a despeito do papel crucial que esses eventos tiveram para a gênese do quadro clinico, o paciente era completamente incapaz de se recordar de que eventos eram esses, quando e como ocorreram, não importando o quanto se esforçasse para lembrar.
Sendo os pacientes incapazes de trazer à tona aquelas lembranças no estado de vigília, mas ainda assim não tendo dúvida de que de alguma forma eram elas as responsáveis pela patologia, Freud foi levado a postular a existência de algum tipo de mecanismo ou estrutura que tivesse o condão de impedir que aquelas lembranças específicas, mais os desejos e emoções relacionados a elas, viessem ao nível da consciência. Uma parte da psique humana que opera e funciona sem que seja notada. Aquele conteúdo continuava lá, presente no psiquismo do paciente, porém de alguma forma e por algum motivo ocultado da consciência.
Freud estava convencido de que essa dimensão não consciente da psique humana era onde deveria residir a causa da histeria e das outras neuroses. De fato, pode-se dizer que a grande ruptura trazida pela psicanálise foi justamente a descoberta e a dedicação de estudar essa parte importantíssima, mas até então negligenciada, da vida mental humana, que ficou conhecida como inconsciente. De sorte que aos poucos Freud abandonou a hipnose como método, e buscou outros tipos de materiais e métodos pelos quais pudesse acessar níveis mais profundos dos pacientes.
O procedimento clínico mais famoso é a chamada livre associação, em que o analista convida o paciente a verbalizar o que lhe vêm espontaneamente à cabeça sem se preocupar com a eventual ilogicidade ou irracionalidade do que possa vir a dizer. Outra fonte de que se servia a psicanálise eram os eventos da psicopatologia da vida cotidiana, aqueles acontecimentos aparentemente insignificantes poderem sutilmente portadores de pistas a respeito da vida psíquica do paciente, dos quais os mais famosos talvez sejam o chiste o ato falho.
A terceira, porém não menos importante, fonte principal explorada pelo analista é justamente aquele fenômeno que já foi associado a presságios pela cultura popular, mistificado por religiões e reputado como sem sentido por gerações de cientistas: o sonho. Freud dedicou-se a construir um aparato conceitual capaz de fazer frente a essa posição cética até então esposada por determinados setores da neurologia e assim ser capaz de partir do conteúdo do sonho para chegar até dados relevantes sobre a situação clínica do paciente. E é disso que eu gostaria de falar um pouco a partir de agora.
Freud começa “Os Sonhos” ponderando como os sonhos outrora eram entendidos como manifestações do divino e do sobrenatural, mas ficaram sem uma explicação precisa após a modernização e o advento da ciência. Há basicamente três espécies de sonhos. Há aqueles que somos capazes facilmente de atribuir um sentido (como sonhar com receber um presente que se quer muito). Outros podemos até entender o que se passou, mas não entendemos qual a razão de termos sonhados com aquilo especificamente. Por último, há aqueles que nos parecem tão estranhos que não compreendemos nem mesmo que coisas eram aquelas que se apresentaram no sonho.
Assim, pode parecer que não há nenhum motivo convincente para aceitar que se deva estudar os sonhos, ou que algum conhecimento útil possa ser extraídos deles diretamente. Mas Freud faz uma observação que considera ser um ponto de partida a ser levado em consideração. É que os sonhos das crianças, ao contrário dos sonhos dos adultos, podem ser facilmente compreendidos como tendo algum significado. Quando uma criança relata o que sonhou, não apenas não é difícil entender o que ela experimentou durante o sonho, como também é possível relacioná-lo a certos fatos da realidade de tal forma que pareceria infundado dizer que é mera coincidência.
Os sonhos infantis, observa Freud, estão invariavelmente ligados a algum desejo que a criança tinha, mas não foi proibido ou ainda não teve a possibilidade de se realizar. Para usar nosso exemplo anterior, o fato de uma criança sonhar que estava recebendo o brinquedo que queria muito é facilmente interpretável como uma representação do desejo de recebê-lo na vida real. Para ser mais exato, o sonho funciona sempre como um meio de realização daquele desejo. Uma situação não real em que aquele desejo trazido da realidade está sendo realizado.
Freud quer sustentar a hipótese de que um processo análogo está por trás dos sonhos de adultos. Ou seja, os sonhos que os adultos têm também são realizações de desejos de quem está sonhando. A diferença é que nos adultos o desejo ou os desejos que deram origem ao sonho aparecem de forma oculta, disfarçada, por trás daquilo que o sonhador visualiza em enquanto dorme.
Freud chegou a essa conclusão após analisar diversos sonhos relatados por pacientes seus, empregando o método da chamada livre associação. De certa forma, é um método até simples. O analista pede que o paciente foque em um dos elementos do sonho, e então solicita que ele diga tudo aquilo que aquele elemento em particular lhe trouxer à mente, de modo que assim, pela reunião das associações feitas pelo paciente, o analista seja capaz de desvendar o que aquele elemento queria dizer. O resultado geral de repetidas experiência como essa foi o desenvolvimento da teoria freudiana dos sonhos, que tenta nos responder por que sonhamos, como os sonhos são formados e como podemos entendê-los.
A primeira distinção importante que Freud nos apresenta é entre o que ele chama de conteúdo manifesto e conteúdo latente do sonho. O conteúdo manifesto é aquilo que é vivenciado pelo paciente. São as coisas que o paciente viu, ouviu e sentiu no sonho. Em outras palavras, o conteúdo manifesto nada mais é do que o conjunto das representações que formam a descrição do sonho. O conteúdo latente, por sua vez, é exatamente aquilo que está por trás do conteúdo manifesto. É o sentido do conteúdo manifesto, aquilo que ele pretendia encobrir. Assim, para nos acostumarmos com esse vocabulário, a análise de um sonho consiste em partir de cada elemento do conteúdo manifesto para que assim se possa desvendar o conteúdo latente.
O processo pelo qual o conteúdo latente é convertido, mascarado e apresentado como conteúdo manifesto é chamado por Freud de elaboração onírica. O estudo da elaboração onírica compreende o estudo dos artifícios que a psique humana se utiliza para fazer com que o sonho tenha um certo sentido sem parecer que o tem. É preciso, portanto, entender como a elaboração onírica funciona para que possamos aprender a desfazê-la e entender a que exatamente o sonho se refere. De um modo geral, existem quatro mecanismos que podem ser encontrados na construção dos sonhos para identificar de que modo o teor oculto está colocado.
O primeiro deles é chamado de condensação. Trata-se de uma característica que os sonhos em geral tendem a apresentar. Condensação é o conceito que Freud usa para explicar o fato de que os elementos presentes no sonho normalmente consistem em uma mistura, uma mescla de vários elementos da vida do paciente. Podemos tomar como exemplo um sonho de uma mulher certa vez analisada por Freud, no qual ela recebia um chapéu preto. Após uma série de livre associações, Freud conseguiu entender o que aquilo significava. A moça era casada, mas confessadamente tinha interesses amorosos por outro homem que não o seu marido, que estava doente. E no anterior havia visitado com sua amiga uma loja de chapéus. Sucintamente, o sonho com o ganho do chapéu se revelou ser uma mistura entre (1) a lembrança da ida à loja de chapéus, (2) o desejo de que o marido estivesse morto, que explica a cor preta, (3) o desejo de estar livre do casamento, e (4) o desejo pelo outro homem. Como fica claro, assim, a condensação é a propriedade dos sonhos de serem o resultado da fusão de várias coisas aparentemente desconexas, como lembranças, desejos, eventos marcantes, etc. Todos eles aparecem como que misturados, condensados, no sonho, donde o nome.
O segundo é deslocamento, ao qual Freud atribui um papel de destaque. Com o deslocamento, a carga de energia psíquica que na realidade dirigimos a um certo objeto, no sonho aparece sendo dirigido a algo distinto, aparentemente sem qualquer relação com o objeto-alvo da realidade. Na prática, o que acontece é que um sentimento ou um desejo (normalmente inconsciente) que temos por alguma coisa no mundo real é reproduzido dentro do sonho, porém não em relação àquela coisa real, e sim em relação a alguma outra coisa. Poderia ser esse o caso, por exemplo, da pessoa que sonha em estar agredindo determinado animal, quando esse animal está no lugar de um rival seu da vida real. O mesmo sentimento de hostilidade que pessoa direciona ao rival está representado no sonho, mas sendo direcionado a um outro ente. O deslocamento é um dos mecanismos da elaboração onírica que mais dificultam a revelação do significado latente justamente porque ele desvencilha desejo de coisa desejada. É por causa dele que certos sonhos são capazes de nos provocar emoções intensas, ao mesmo tempo que nos questionamos “por que sonhei com isso?”
O terceiro é o simbolismo dos sonhos. Esta é uma propriedade da elaboração onírica onde mais podemos ver pontos de contato em relação à cultura e à sociedade em que o indivíduo se encontra. Pois se os sonhos são compostos por imagens que, quando têm o seu sentido decifrado, remetem a aspectos da vida real, amiúde as imagens de que os sonhos são feitos advém de determinados elementos da vida social do sonhador. O exemplo clássico disso é como objetos pontiagudos ou oblongos potencialmente são representantes fálicos, e sua presença dentro de um sonho historicamente tenha sido apontada pela psicanálise como um representante de atividade sexual. O mesmo ocorre com a presença da cor preta como referência à morte. Então, nem toda a composição do sonho se explica apenas pelas circunstâncias pessoais da vida do paciente, mas também pelos simbolismos que sua cultura plasma em seu psiquismo.
O quarto e último que gostaria de falar é a chamada elaboração secundária. Esta na verdade se encontra no limiar entre a atividade onírica propriamente dita e o estado de vigília. Pois, dito de uma maneira bastante direta, elaboração secundária é o nome que se dá à tentativa de fazer das diversas partes do sonho um todo coerente. Ela está presente toda vez que, ao acordarmos e pensarmos no que sonhamos, tentamos encaixar as coisas que conseguimos lembrar de modo que elas juntas tenham algum sentido. Elaboração secundária, então, é algo como procurar fazer do sonho uma narrativa: uma sequência cujas partes estão interligadas formando algo inteligível. De tal forma que o sonho parece se tornar mais compreensível do ponto de vista de quem sonhou. Mas isso não passa da produção de mais uma camada, por assim dizer de elaboração onírica, pois as partes constitutivas do sonho não são produzidas de forma totalmente coerente e interdependente entre si. Ao se tentar uni-las todas para extrair seu significado, o que se está fazendo é justamente o inverso: embaralhar mais ainda o real conteúdo latente que lhe subjaz.

domingo, 5 de janeiro de 2020

O que é Governamentalidade? História da Arte de Governar


Na postagem anterior, falamos bastante sobre governo. Expliquei como o conceito de governamentalidade é um conceito que surge na obra de Foucault na segunda metade da década de 1970. Agora, dando continuidade, irei falar mais detidamente de como foi traçada a genealogia dessa arte de governar moderna, qual sua origem e quais fases foram atravessadas para que pudéssemos chegar aonde chegamos hoje. Para isso, partirei do curso que Foucault ministrou em 1978 no Collège de France que já mencionei antes, “segurança, território, população”.
Poder Pastoral
Sabemos já que governamentalidade tem a ver com um certo tipo de governo. Foucault observa que a particularidade dessa noção de governa é que ela se trata, antes de tudo, de um governo dos homens. O que se governa não somente coisas, mas principalmente pessoas. Trata-se de dirigir a maneira como eles se comportam, como vivem, que práticas adotam e que valores cultivam. Essa arte de governas pessoas, esse governo enquanto governo de homens antes de ser um governo de coisas, dirá Foucault, é uma prática sem precedentes na antiguidade clássica ocidental. Nos gregos, é verdade, podíamos encontrar a metáfora de que o governante atua sobre a pólis como um capitão sobre um navio. Mas mesmo aqui não há comparação suficiente, pois se o capitão governa algo, é o navio como um todo, e só tem ingerência sobre o que fazem os membros da tripulação na medida em que estes interferem no curso do navio. O governante da pólis está interessado no futuro da pólis como um todo, e não em manter em controlar e orientar a vida de cada um dos cidadãos até nas minúcias de sua casa, o que para o pensamento político grego antigo seria um contrassenso. De fato, a ideia de que o governante atua como que um pastor dos homens, guiando-os e dirigindo-os em todos os âmbitos de sua vida, teve suas raízes na tradição hebraica, mas só foi adquirir maturidade nas comunidades cristãs, e que depois foi transportada para o modus operandi da Igreja enquanto instituição. É esta prática, de caráter pastoral, que está nas raízes do que veio a ser a governamentalidade.
Michel Foucault (1926-1984)

E como se define este poder pastoral? Vejamos algumas de suas características. Primeiro, ele se vincula a um grupo, e não a um território. Um indivíduo está submetido ao pastorado não porque se encontra dentro de uma porção territorial demarcada geograficamente, mas sim porque está inserido numa coletividade que por sua vez é dirigida por um pastor. O pastorado se exerce sobre o grupo, esteja este onde estiver, e acompanha o grupo quando se desloca. Segundo, ele é orientado para a salvação. O poder do pastor sobre as ovelhas não se apresenta como o poder de subjugar os adversários ou de esmagar os inimigos, mas sim como o poder de mostrar o caminho correto que leva à salvação, de dirigir e guiar no sentido daquilo que é bom e correto. Poder benfazejo, portanto. Terceiro, embora tenha abrangência coletiva, tem aplicação individualizada. Quer dizer, o poder pastoral envolve o controle de um grupo, sim, mas esse controle é exercido sobre cada um dos integrantes individualmente. É uma fiscalização em que cada um precisa de tempos em tempos se submeter a práticas que procuram examinar como ele tem se conduzido até ali, se tem agido, enfim, se cada um está trilhando o caminho corretamente. Observa o que cada um tem feito, quais desvios cada um tem cometido; orienta e corrige cada um com atenção individualizada.
O que é interessante a respeito do vínculo estabelecido pelo poder pastoral é que ele não é feito para terminar. E isso o distingue de qualquer outra modalidade de relação social que se viu na Antiguidade ocidental. O vínculo entre o sofista e seu aprendiz no mundo grego, por exemplo, é feito para durar só o tempo necessário até o aprendiz adquirir o expediente retórico que pretende. Assim como o vínculo entre o estratego e a assembleia dos cidadãos se mantém apenas na medida em que este serve aos propósitos do bem da pólis com legitimidade. A ovelha, por outro lado, nunca atinge um estágio em que possa prescindir do pastor, justamente porque o fim do pastorado é a salvação. E a salvação não se alcança sem um guia ao qual se mantenha fiel por toda a vida
Razão de Estado
Muito bem. E como foi possível que esse governo pastoral, que até então parece tão teológico, pôde ser transposto para a política estatal? São vários fatores que Foucault aponta. Vamos tratar só de dois. Um tem a ver com a derrocada de uma visão teleológica de mundo. Com o surgimento das ciência, a ideia de que as coisas do mundo se movimentam para um propósito último vai sendo substituído pela ideia de que as coisas obedecem a leis mecânicas que nos permitem prever e controlar acontecimentos. Como consequência, já não faz mais sentido a concepção política medieval, segundo a qual o problema da política faz parte de uma narrativa cosmo-teleológica em que o governante dirige os homens sob sua jurisdição como Deus dirige o cosmos. Agora, as qualidade que precisa ter o bom governante não são mais as mesmas virtudes que precisa ter uma figura comum. A política deixa de ser pensada como atividade regida pela mesma ordem natural que rege todas as coisas, e passa a ser pensada como uma atividade distinta, que enfrenta problemas que lhe são exclusivos, e por isso necessita de um tipo de racionalidade próprio, uma forma própria de lidar com esses problemas. Descontinuidade entre política e teologia, portanto.
O outro fator representa uma dupla ruptura com duas ideias do imaginário político ocidental. De um lado, o fim da aspiração política de unificação de todos os territórios para reconstituir novamente Roma. De outro, o fim da aspiração religiosa da Igreja de unificação de todos os povos sob a fé católica. Essas duas ideias, que haviam sobrevivido como esperanças tanto nos sonhos de todo reino que ufanava de ter raízes romanas, quanto em cada pontificado da Alta Idade Média, encontraram seu fim definitivo respectivamente na organização que sucedeu ao Tratado de Vestefália e na Reforma Protestante. Com efeito, o final da Guerra dos Trinta Anos foi decisivo para afirmação de uma nova ordem política protagonizada pelo Estado moderno. Cada Estado sendo uma unidade independente dos demais, que possui sua estrutura interna própria, sua própria história e o controle sobre determinado pedaço de território e interesses específicos. A partir desse momento, só o que pode haver é uma convivência entre Estados, mas já não há qualquer condição para pensar que eles pudessem resolver suas diferenças e se fundir todo sob um mesmo regime como havia sido Roma. Da mesma forma, a Reforma, que trouxe uma efervescência de novos credos, tornou para sempre inalcançável o universalismo católico de transformar o mundo todo em fiéis. Emergência da unidade Estado e pluralismo irredutível de crenças.
Assim, diz Foucault, a relação entre um Estado e outro não é simplesmente uma rivalidade entre dinastias que alimentavam rixas históricas entre si como fora no medievo, mas sim uma relação de competitividade e concorrência. Na corrida por mercados consumidores, riquezas e territórios, o que todos os Estados querem é superar uns aos outros, despontar na frente dos outros com prosperidade e brio. Só que essa disputa entre Estados, que não teve precedentes nos reinos da Idade Média, só pode se dar se cada um dos Estados se organizar internamente para tal. Se ele for capaz de lançar mão do que tem a sua disposição para se impulsionar e se sobressair sobre os demais. Essa nova organização interna do Estado para concorrer não será mais pautada numa ordem cósmica universal, como vimos, mas sim na política definida como atividade que tem regras próprias e meios próprios.
Para gerar para si a força necessária, vai ser preciso que o Estado centralize as decisões políticas, o poder definir o proibido e o permitido. Porém, mais do que tudo, vai ser preciso que ele instale um controle cuidadoso sobre todas as coisas. Precisará vigiar o fluxo de moedas, para manter a balança comercial dentro do esperado. Precisará definir quanto de mercadorias deve ser vendida, a qual preço, onde e por quem. Precisará controlar a mão de obra disponível, e para isso precisa, de um lado, fazer com que as pessoas tenham filhos e, de outro, colocar um freio sobre as doenças. Precisará fazer manutenção das vias públicas para que pessoas e mercadorias cheguem ao lugar certo na hora certa sem prejuízo. Precisará inflamar nas pessoas o hábito do trabalho, para que produzam o quanto devem no tempo certo e no ritmo certo. Precisará, enfim, manter um olho incansável sobre os preguiçosos, ociosos, loucos e vadios, para impedir que eles infestem as ruas. Isso irá envolver uma inspeção sobre a vida privada de todo mundo. Para saber como vivem, qual religião professa e como ocupam o seu tempo.
Assim, explica Foucault, assistimos ao nascimento de um “Estado de polícia”. Um Estado que se coloca na tarefa de governar de uma maneira totalizante. Faz com que cada coisa seja colocada onde deve estar para o sucesso da nação. Na marcha da competição internacional, a arte de governar não se orienta mais pela finalidade transcendente da salvação, mas pela finalidade imanente da prosperidade. E lançará mão de todos os meios necessários para que as coisas se mantenham segundo as regulamentações estabelecidas e o conjunto das metas fixadas.
Isso explicaria, continua Foucault, por que boa parte da literatura política desta época, sec. XVI- XVII, é contra Maquiavel. Maquiavel havia concebido o príncipe como um ente externo ao seu principado. O príncipe adquire o principado pela herança ou pela conquista, mas ele não é um dos que fazem parta da vida do principado. Em Maquiavel, também, atividade realizada pelo príncipe é a arte de sua automanutenção no poder. O bom príncipe é aquele que tem a astúcia de lidar com a situação qualquer que ela seja de modo que não seja derrubado de sua posição quer pelas circunstâncias quer pelos seus adversários. Contrariamente a isso, boa parte dos autores de teoria política que Foucault enumeram acredita que a tarefa de governar um povo é semelhante a governar uma casa. Assim como o homem governa sua esposa, seus filhos, seus criados, dirigindo a conduta de cada um para que o lar seja próspero, o governante faz da cidade a sua casa, em que precisa governar as mercadorias, os comerciantes, as condutas dos súditos e os delinquentes. Isso explica inclusive por que a economia, que hoje tem uma conotação de ordem pública, em sua origem significa governo da casa.
Governamentalidade Moderna
Chegamos ao terceiro e último momento da nossa história da governamentalidade. Se houve uma ruptura com o medievo que permitiu o surgimento do Estado de polícia que vimos, o período do final do sec. XVIII até o XIX apresenta uma outra ruptura, a partir da qual outra governamentalidade, essa sim basilar para o momento atual, irá nascer. Essa mudança tem a ver com o salto do crescimento populacional que aconteceu nesse mesmo período, devido ao começo das atividades industriais e do início da produção em fábrica. Essa governamentalidade moderna se define sobretudo por ter tecidos críticas às formas de governar anteriores. Patente nas novas doutrinas dos fisiocratas, a nova arte de governar acusará o modelo do Estado de polícia de ser excessivamente invasivo, de tentar regulamentar o que não deve ser regulamentado e de impor padrões sobre aquilo que já funciona de forma natural. Vamos ver um exemplo.
Na França do século XVII, que é um bom exemplar do Estado de polícia, a preocupação com a escassez dos cereais era uma questão de primeira ordem. Afinal, sendo uma fonte de alimentos principal, quando faltam cerais há fomes coletivas, e quando há um decréscimo de mão de obra, afetando a produtividade, assim como insurgências populares e toda uma cadeia de eventos indesejados. Qual era, então, a atitude do Estado francês? Uma série de providências para fazer com que não se produzisse a escassez: proibição de estocagem de grãos e limitação das importações. Estabelecimento de um preço que impedisse lucros muito altos e deixasse baixo o custo do grão, para ser atingido pelos pobres. Isso de modo a garantir de continue havendo um contingente populacional vivo e fisicamente forte o bastante para trabalhar durante o tempo necessário para o sucesso econômico do Estado.
Pois bem. Sobre este caso específico, o que nova doutrina econômica e governamental dirá é que essa forma de governar é totalmente problemática. Ela pressupõe que seja possível manter um controle sobre os preços e distribuição de grão segundo padrões dados de cima para baixo pelo Estado, e que seja possível gerir os lucros auferidos assim segundo metas dadas pelo governo. No lugar disso, irá propor que entendamos que escassez de grãos é um fenômeno natural. Ele ocorre quer se queira, quer não.
Isso porque as relações sociais de que a escassez deriva, que são de compra e venda, de produção e de distribuição, já possuem uma forma natural. Elas acontecem sempre segundo os mesmos padrões, e dentro delas os indivíduos sempre respondem a determinados estímulos. Não há, pois, como impedir a escassez, como queria o Estado de polícia. O que se pode fazer, diz a governamentalidade moderna, é determinar qual o nível não prejudicial de escassez e assim arranjar as coisas para que esse nível não seja ultrapassado. Não se trata, por outros termos, de gerar a fartura para evitar a fome. Fome sempre haverá numa ou noutra medida. O que deve ser evitado é que a fome atinja proporções anormais. Não se trata de eliminar a fome, mas sim de conduzir a fome que já existe. Um certo quantitativo de pessoas que morrem de fome é normal, deve-se deixar que isso ocorre, mas não mais do que esse nível normal.
O conhecimento de quais são as distribuições estatísticas normais e aceitáveis depende, contudo, de que entendamos qual o funcionamento das relações sociais de que elas derivam. O que a governamentalidade moderna propõe, nesse sentido, é que a arte de governar não é arte de impor padrões segundo os desígnios do Estado, mas sim entender que o conjunto formado pelos indivíduos já possui uma dinâmica natural, a qual é preciso preservar em vez de modificar.
É nesse momento da história que, segundo Foucault, vemos pela primeira vez a ideia de uma sociedade civil. Claro que muitos antes já haviam dito que os humanos formam grupos naturalmente e que faz parte da natureza humana a geração de coletividades. Mas ninguém antes dissera que as própria trocas, a oferta de produtos, a disponibilidade de recursos, tudo isso também obedece a padrões naturais que podem ser estudados e catalogados. Que existem reações espontâneas que qualquer coletividade humana apresenta face à escassez ou abundância. O conjunto dos indivíduos forma, portanto, um todo que apresenta uma série de processos naturais (no sentido de que existem espontaneamente sem a intervenção de ninguém), como mortalidade, natalidade, consumo, poupança. O Estado, então, é um terceiro para quem esses processos naturais já se apresentam como um dado, como algo que é fato. Qualquer tentativa de impor ordem sobre essa ordem que já há não pode resultar em outra coisa que não calamidade e anarquia.
Deve-se então, deixar acontecer. Laissez-faire, laissez-passer. O modo como Estado irá governar não será mais o de regrar e regulamentar. Será o de criar condições e remover empecilhos. Vigiar os status quo para que nenhum fator de fora da dinâmica natural venha a interferir. Isso não quer dizer ausência de intervenção, mas reformulação da forma intervir. Governar não é mais regulamentar. Governar é gerir. Em vez de definir preços, evitar que eles sejam controlados por outra coisa que não a concorrência. Em vez de regrar o comércio, limpar o caminho para a competição. Em vez de controlar o número de nascimentos, proporcionar que eles cresçam de forma segura. Incentivar o aumento da produção ali e incentivar a redução ali.
Assim, podemos ver as feições mais evidentes da governamentalidade moderna. Ela encara o coletivo não mais como um conjunto de súditos que devem obedecer, mas sim como uma população, como conjunto de processos naturais que é preciso conduzir e fazer manter dentro de um nível considerado normal.
Não se trata mais de tentar impor ao mercado, à família, à doença, às migrações leis que elas deveram seguir segundo aquilo que o Estado entenda que é melhor. As leis que regem cada uma dessas coisas, diz o novo pensar governamental, já vêm prontas. São parte da própria natureza de cada um desses âmbitos. Saberemos quais são essas leis através da disciplina científica que é própria a cada um. Uma arte de governar os processos das trocas, que se tornou a economia. Uma arte de governar a dinâmica de população, que se tornou a demografia. Uma de governar os processos da infância, que se tornou a pedagogia. Uma arte de governar os processos naturais do corpo, que se tornou a medicina. Uma arte de governar as mentes e a sanidade que se tornou a psiquiatria.
Governar bem é entender que cada um desses componentes da vida social possui uma lógica específica, e precisa ter um espaço de liberdade e não interferência preservado para se desenvolver adequadamente. A tarefa de bem conduzir a saúde, o mercado, a loucura, a fome, a miséria, enfim, a população, é saber como e de que maneira cada um desses pode ser estrategicamente manipulado para que se obtenha os conformes esperados. É um cálculo que vai dos meios e recursos disponíveis aos resultados prováveis, na intenção de assim produzir os fins desejados. O conjunto das técnicas de governa toma para si a tarefa de manter tudo em ordem, de manter os níveis e as distribuições uniformes, e para isso se vale do saber técnico que empresta das ciências modernas já constituídas e independentes.
Eis aqui a diferença entre a normalização das disciplinas e a dos dispositivos de segurança. Enquanto as disciplinas pretendem regular todos os aspectos de seu objeto, definindo como normais os que conseguem ser modelados segundo se espera e como anormais os que não conseguem, o dispositivo de segurança já parte de uma definição do que será o normal (número de nascimentos, de mortes, de mercadorias importadas, pessoas migrando, etc.) e então seleciona quais aspectos de cada desses processos irá manipular e reger, e quais outros deixará que se desdobrem por si mesmos.
Com o tempo contudo, Foucault percebeu que cada uma das práticas envolvidas na governamentalidade só é capaz de funcionar na medida em que ela consiga engajar cada um dos indivíduos. Isto é, instalar-se como dentro deles e fazer com que eles controlem a si mesmos de uma forma condizente com a estratégia global. Quer se trate de disciplina, quer se trate de biopoder, todo dispositivo só se torna operante na medida em que faz cada sujeito enxergar em si elementos que precisam ser controlados, corrigidos, normalizados. Seus desejos, seus rendimentos, seus desempenhos, suas condutas, suas aspirações etc. Em outras palavras, um governo sobre todos só funciona na medida em que ele seja capaz de induzir em cada indivíduo um “governo de si”. Isso envolve fazer com que o sujeito passe a adotar uma série de práticas em que o sujeito aprende a prestar atenção em si, a se monitorar e autorregular de uma forma particular, que é ao mesmo tempo efeito e condição de possibilidade das estratégias globais de poder. O conjunto das maneiras pelas quais o sujeito toma a si mesmo como seu objeto de governo foi o tema da terceira e última fase do pensamento de Foucault, que ocupou os volumes subsequentes de História da Sexualidade. Mas isso já é assunto para outra postagem.

sábado, 4 de janeiro de 2020

O que é Governamentalidade? Introdução


De toda a rica obra que Foucault nos legou, o conceito de governamentalidade certamente está entre os mais importantes. Isso por vários motivos. Talvez o principal deles seja a sua conexão direta com o diagnóstico foucaultiano do neoliberalismo, que por sua vez é uma das principais fontes de onde bebem os estudos recentes, e a cada dia mais relevantes diante do cenário nacional e mundial atuais, de Wendy Brown, assim como de Dardot & Laval.
É claro que numa postagem como esta seria impossível tratar da governamentalidade de maneira completa, ainda mais devido à versatilidade que esse conceito possui. Tanto é verdade que mais recentemente ele tem sido empregado para estudos de feições muito diferentes dos objetos de análise originais de Foucault, como teoria das organizações, algoritmos, dentre outros. Meu propósito será muito mais modesto e introdutório. Tentarei, primeiro, explicar como a governamentalidade está inserida dentro da biografia intelectual do Foucault. Em uma outra postagem, procurarei reconstruir aqui o levantamento histórico que é feito pelo autor em “Segurança, Território, População” (1978), que foi o curso no Collège de France em que Foucault primeiro cunhou a expressão. Por fim, irei fazer breve menção sobre como o tema da governamentalidade acena para o desenvolvimento do pensamento foucaultiano tardio, vindo a se concentrar na questão ética e das técnicas de si.
Vamos começar. Falemos um pouco sobre poder em Foucault em geral e sobre como a governamentalidade vai surgindo em seus trabalhos.

As análises sobre a governamentalidade são, de certa forma, a culminância daquilo que veio a ser conhecido como a fase genealógica do pensamento de Foucault. Convencido de que os discursos e as noções sobre o que é verdadeiro e o que é falso numa dada época são regidos por práticas não discursivas atravessadas por relações de poder, Foucault havia se dedicado a entender que formatos o poder havia assumido no mundo moderno desde que se tornara docente no Collège de France, no começo da década de 1970. A bem da verdade, no senso comum intelectual, poder é geralmente o primeiro termo que vem à cabeça quando se fala no nome de Foucault. Vamos ver um exemplo.
 Em Vigiar e Punir, de 1975, Foucault havia se dedicado a mostrar que o nascimento da prisão moderna como a conhecemos não foi, como queria o discurso oficial, a substituição de uma prática punitiva brutal (suplício) por uma outra prática mais humana e racional (cárcere). O que houve após o desaparecimento do espetáculo punitivo foi, na verdade, o surgimento de uma nova estrutura social em que a riqueza era baseada não mais na terra e sim na troca de mercadorias, e com ela uma nova forma de poder muito mais sutil e difícil de perceber.
Trata-se de uma forma de poder que coloca o corpo como uma unidade capaz de desempenhos e atividades, e que pretende controlar o modo como o corpo aplica suas energias e seus esforços através de um controle minucioso de seus movimentos. Se antes o condenado era levado à praça pública onde todos podiam vê-lo sendo torturado e esquartejado, agora ele é mantido numa instituição onde não vê a luz do dia, em que é submetido a uma série de tarefas que se repetem diariamente e em que se espera dele que após tempo suficiente isso seja capaz de mudar seus hábitos, suas preferências, seus gostos e seus comportamentos cotidianos, tudo isso sob a vigilância infalível de alguma autoridade.
É esse mesmo sistema que está na base da estrutura da escola, do hospital, do quartel, da fábrica e do escritório. Vigilância constante, e correção perpétua, em que o corpo é constantemente domesticado para assumir a postura correta, fazer os gestos corretos, posicionar-se corretamente, interagir corretamente com os outros corpos, realizar tarefas no tempo estipulado e cumprir as metas estabelecidas para cada indivíduo. Até que o indivíduo se torna o seu próprio vigilante passa a controlar a si mesmo da forma como é esperada dele. Essa modalidade de poder, que tem como propósito produzir sujeitos obedientes que não violem os padrões estabelecidos, é o que Foucault chama de poder disciplinar, cuja genealogia Foucault dedicou seus cursos no período de 1973-1975.
E o que há de tão interessante na descoberta dessa nova forma de poder? Muitas coisas. Destacarei somente dois pontos que importam para o que vou explicar a seguir. Primeiro, que pensar o poder disciplinar é um convite a revisitar o modo como o poder em geral tem sido concebido na tradição de pensamento ocidental. Onde quer que ele exista, estamos acostumados à ideia de que o poder é algo que bloqueia, limita, restringe, destrói oprime, nos impede de fazer coisas, enfim, algo negativo, associado à coerção. O que estamos vendo agora é algo que sem dúvida envolve poder, mas em que, dessa vez, o poder formata, modela, constrói, ajusta, corrige e enquadra, e que apenas muito raramente faz uso direto da força (exatamente o motivo pelo qual é mais difícil de perceber). O poder, diz Foucault, possui também uma atuação positiva (não no sentido de boa, mas sim no sentido de produzir em vez de apenas destruir). Em verdade, as relações de poder são reconfiguradas na modernidade de uma maneira que as suas manifestações de tipo negativas se tornam cada vez mais minoritárias em comparação com as positivas.
Segundo, e como consequência, é que o modo como estudamos o funcionamento do poder precisa mudar também. Em vez de fazermos, como é mais comum, uma análise que vai dos escalões mais altos da sociedade e investiga como eles encurralam e suprimem os escalões mais baixos -que Foucault chama de análise descendente- precisamos fazer o contrário, e procurar saber quais são os pequenos mecanismos que atuam sobre cada indivíduo-elo dessas relações transformando-o em um sujeito submisso e obediente que torna a existência e a continuidade daquela relação possíveis, o que Foucault chamou de uma análise ascendente. Temos que estudar o poder de baixo para cima, portanto, e não de cima para baixo. Se a nossa sociedade é repleta de desigualdade e opressão, as formas mais explícitas de poder, como o Estado, são a culminância e o efeito, e não a causa e a origem disso.
Esses dois pontos juntos renderam a Foucault algumas críticas que o conceito de governamentalidade veio a resolver. De fato, sobretudo do marxismo se insurgiram ao diagnóstico e à metodologia proposta por Foucault alegando que eles pulverizam o poder de uma forma prejudicial. Dizer que são as formas micro de poder que constituem as macro não explica como essas formas micro – a princípio tão diferentes e heterogêneas entre si como a relação professor-aluno, médico-paciente, condenado-carcereiro- podem juntas convergir para estabilizar uma mesma configuração social. Partir das estratégias locais de poder, diziam os críticos, torna difícil entrever como estas se conectam para formar uma estratégia global.
De certa forma, Foucault já havia começado a se debruçar sobre essa questão da relação entre o micro e o macro. Em seu curso de 1976, chamado “Em defesa da sociedade”, ele havia se debruçado a hipótese de o poder ser entendido como guerra entre grupos diferentes dentro da sociedade. Se um dia o exercício de contar a história de uma sociedade fora uma prática pelo qual a cultura e os feitos de um povo eram exaltados, houve mudanças que lhe conferiram uma nova função. Nas mãos de grupos politicamente sem controle sobre o aparato governamental, contar a história se transformou num exercício de narrar os abusos de alguma entidade ou grupo hegemônico sobre este que fala, como foi o caso das historiografias produzidas pelos parlamentes ingleses de ascendência saxã contra a monarquia de ascendência normanda, assim como as historiografias feitas pela aristocracia francesa em face dos monarcas absolutos.
 Ocorre que, com surgimento do discurso cientificista no século XIX introduziu um elemento biologizante a esse modelo de narrativa agonística. De modo que agora era possível dizer que a sociedade é composta de indivíduos não apenas cultural e histórica, mas também morfológica e anatomicamente diferentes, isto é, de raças. Essa forma de saber, derivada das ciências biológicas modernas, quando se somou ao juízo de valor, também validado por essas mesmas ciências, de há raças superiores e outras degeneradas, permitiu que o Estado protagonizasse uma forma de poder em que ele se ocupa de governar a dinâmica das populações de cada uma dessas raças, estimulando a natalidade numa e liberando a mortalidade sobre outra, expulsando umas para a periferia insalubre e mantendo outra em condições de saúde no centro, etc. O mesmo saber que esteve por trás dos desdobramentos modernos da medicina e das novas formas de catalogar as doenças. Uma nova forma de saber que dá origem a uma nova forma de poder, em que o Estado se torna gestor da vida e da morte dos indivíduos, proporcionando que uns sobrevivam mais e outros pereçam. Entre o racismo e a estatística, uma estreita conexão. Governo das raças. Governo da vida e da morte.
Também em História da Sexualidade 1, publicado no mesmo ano, Foucault mostrara, indo na contramão do que dissera a psicanálise (sobretudo Wilhelm Reich), que o que a modernidade trouxe em termos de sexualidade não foi uma política de repressão, impedindo os indivíduos de darem vazão a seus impulsos. Antes, foi uma proliferação dos discursos que incitam os indivíduos a falarem de seus desejos mais recônditos e das minúcias de sua atividade libidinal cotidiana. Primeiro, ao se confessar para o padre, numa prática inaugurada pela nova pastoral cristã criada pela Contrarreforma, uma tentativa desesperada da Igreja de manter um controle minucioso sobre a vida de cada um dos fiéis até em suas dimensões mais íntimas. A partir do século XIX, essa prática de modelo confessional e de falar do interior de si passa existir também com o psicólogo, com o psiquiatra, com o pedagogo no caso das crianças e- quero colocar em destaque- com o responsável pelo recenseamento, que periodicamente batia de casa em casa inquirindo quantos filhos havia em cada casa, de quais sexos, quantas mulheres férteis, qual o ritmo de procriação, etc.
No nível individual, a emergência dessas novas práticas discursivas em que o indivíduo é levado a falar cada vez mais sobre suas profundezas servem para que o profissional em questão seja capaz de modelar como irá se dar a relação do indivíduo com seus desejos. Dizer a ele o que, dentro do relato que ele faz, há de patológico e anormal, a quais desejos deverá dar vazão, como e quando; quais, em vez disso, precisarão ser domados. Trata-se de construir no indivíduo uma postura face a seus desejos em que ele aprenda que eles podem ser realizados de algumas formas sim e outras formas não. Que alguns deles é preciso trabalhar para silenciar e que certas condutas são degenerescências. Governo dos desejos. Governos das intenções. Governo dos prazeres.
No nível da coletividade, essas mesmas informações colhidas através do dispositivo confissão (agora atuante em práticas seculares, e não mais em religiosas) servirão para o que o Estado tenha um cômputo geral de quantos indivíduos apresentam qual tipo de conduta sexual, em que região eles estão localizados, qual o nível de patologias que existe na população como um todo, qual o ritmo de crescimento da população a partir da atividade sexual contabilizada, etc. Essas informações formam a base a partir da qual o Estado articula suas políticas de controle da população. Atividades pelas quais ele produz incentivos ou desincentivos para que a população cresça de maneira adequada a suprir as necessidades por mão de obra, mercados de consumo. Também é nesse nível macro que o Estado controla quais são e como se espalham as doenças, definindo o nível normal de mortes, ou seja, quantos se deve deixar morrer, e intervindo quando esse número se torna prejudicial para o Estado. Permitir que doenças e mortes ocorram, mas mantendo-as dentro de padrões definidos como normais. Define, ainda, quais segmentos da população devem prosperar, e quais se pode abandonar à própria sorte. Governo das populações. Governo dos nascimentos e falecimentos. Governo da saúde e da doença.
O conceito de governamentalidade, então, surge para explicar justamente como essa noção de governo veio a prevalecer no Ocidente. Essa prática em que o Estado analisa um estado de coisas, define um certo quantitativo ou distribuição estatística como ótima ou aceitável, e então passa a manipular esses estados de coisas para que ele corresponda a e se mantenha dentro desse padrão de aceitabilidade. Governamentalidade, então, será o conjunto de técnicas, mecanismos, regulações, dispositivos e práticas pelos quais se mantém um controle minucioso sobre um certo estado de coisas, guiando-o para que corresponda a um padrão de normalidade. Estudar a governamentalidade é a investigação de como foi possível que essa arte de governar, de conduzir as coisas dessa forma, pôde surgir e se tornar o paradigma político do Ocidente. É sobre isso que vamos tratar na próxima postagem.