sábado, 29 de junho de 2019

Fundamentação à Metafísica dos Costumes (Breve Resumo)


Essa postagem será uma versão resumida em que pretendo reproduzir pelo menos os argumentos principais de Kant em favor de sua filosofia moral. Futuramente, pretendo escrever um novo texto em que possa ilustrar os pontos de contato e de atrito entre o que Kant estava dizendo e outras propostas éticas contemporâneas. Por enquanto, irei me limitar a uma abordagem mais direta sem grandes comentários. O texto abaixo se centra em pontos que podem ser encontrados na primeira e na segunda seção do texto de Kant, visto que a terceira já serve muito mais como uma ponte entre a Fundamentação à Metafísica dos Costumes e o projeto kantiano posterior.



A única coisa boa por si mesma é a boa vontade. Os talentos do espírito, que incluem astúcia, perspicácia, persistência, não podem ser bons por si, porque nas mãos de alguém mal intencionado eles potencializam a perversidade dos atos, em vez de torná-los melhores. Também os dons da fortuna, como dinheiro, saúde e força, de forma alguma são bons em si mesmos, porque sua bondade de depende de que a vontade por trás de seu uso seja ela mesma boa. E, ao contrário do que possa parecer, como a felicidade enquanto objetivo pode levar a atos descontrolados ou excessos por parte dos indivíduos, tampouco ela é algo bom em si.
A ideia de boa vontade se conecta diretamente com a ideia de dever. Com efeito, agir movido por boa vontade significa agir por dever, agir pelo desejo de fazer aquilo que é certo. O fato de uma vontade ser boa depende não dos resultados que ela provoca ou do seu sucesso em realizar o que pretende, mas sim no querer mesmo, na intenção por trás da pessoa que estava agindo. Disso segue que o valor moral de uma ação por dever não se mede por aquilo que ela de fato com segue realizar, pelas alterações que ela provoca no mundo ou por suas consequências serem desejáveis. Antes, o valor de uma ação por dever precisa ser buscado na sua máxima. A máxima é uma espécie de princípio que pode ser abstraído de uma ação qualquer na forma de um enunciado, uma frase que explicita a intenção por trás daquela ação. Por exemplo, quando roubo algo de outrem, minha máxima pode ser “toma para ti aquilo que desejares”. Quando agrido alguém por ter feito algo que me incomodou, minha máxima pode ser “desconta no outro a raiva que ele te causa”, etc.
Então, para julgar uma ação como boa ou ruim, precisamos fazer isso com base não na ação em si, não na conduta externa do agente, mas sim na máxima que ele tinha no momento de agir. Se, como dissemos antes, a ação boa é movida por boa vontade e se boa vontade é agir por dever, então aquelas ações que não forem por dever já restam como ações sem valor moral. Dentre essas temos as ações contra o dever, quando o agente faz o oposto daquilo que deveria. E as ações conforme o dever, quando o agente adota uma conduta correspondente ao que deveria fazer, mas sem que a máxima que motivou sua ação tenha sido uma máxima moralmente boa (como o caso de uma pessoa que ajuda outra a fim de obter benefícios posteriormente).
Já sabemos, então, que agir de forma moralmente correta é agir por dever. Mas como podemos determinar quais deveres temos e quando devemos agir desta ou daquela forma? Um ponto importante aqui para responder a essa pergunta é observar que a ideia de uma ação por dever por si só exclui que essa ação seja motivada por inclinações. Inclinações é um termo que podemos usar para nos referirmos a todo e qualquer tipo de desejo, aspiração, interesse, atração, emoção, etc. Se eu ajo porque quero determinado bem, ou porque sinto determinada emoção, ou porque almejo determinado interesse, aquilo que está me fazendo agir, no fundo, são exatamente esse bem, essa emoção e esse interesse, e não o meu dever.
Consequentemente, para dizer que uma ação é por dever significa dizer que aquilo que a inspira não é nenhuma dessas formas. Ela não pode ser motivada por qualquer dessas coisas, porque do contrário ela já não seria mais ação por dever, e sim ação por inclinação. Em outras palavras, a máxima vinculada a uma ação genuinamente por dever não pode estar subordinada a uma inclinação. Mas o que motiva o agir por dever não são as inclinações, então o que é? Na maioria de nossas ações, fazemos o que fazemos porque queremos atingir certo objetivo, ou porque nos sentimos inclinados a fazer aquilo, ou porque achamos que fazer aquilo nos trará algum benefício. Se o que dissemos até for verdade, nem uma ação pautada assim teria valor moral.
Ora, se, como acabamos de explicar, uma ação por dever não é motivada por inclinações, a única que coisa que pode motivá-la é a vontade de querer fazer a coisa a certa, isto é, o puro sentimento de respeito à lei da qual esse dever deriva. Mas que lei seria essa? Continuando o raciocínio, essa lei, como vimos, não pode apresentar sequer um resquício de inclinação. Já que toda inclinação tem sempre um caráter contingente, ou seja, às vezes se faz presente e às vezes não, uma lei totalmente despida de inclinações só pode ter um caráter universal. Dito de outro modo, ela tem de ser não uma lei que me manda fazer isto ou aquilo dependendo da situação, mas sim uma lei que me manda agir sempre da mesma forma em todas as situações, não importando as circunstâncias. Para ser mais exato, uma vez que o valor moral está na máxima da ação, essa lei moral ordena que eu escolha a minha máxima sempre como se ela fosse uma lei, obrigatória e válida para todos os casos. A lei exige, portanto, que eu aja de maneira tal que eu possa querer que a máxima da minha ação se torne uma lei universal.
Com isso, já sabemos que todo juízo moral verdadeiro advém sempre da razão pura prática, nunca de uma observação a respeito de um fato do mundo. Se imaginássemos um ser dotado unicamente de razão, os juízos morais para ele não seriam nada além disso: juízos morais. As máximas dotadas de valor moral não passariam de simples máximas. Isso porque, possuindo apenas razão, ele não teria outra possibilidade a não ser fazer o que é certo, agir segundo a lei moral lhe ordena.
No caso do ser humano, a situação é diferente. Justamente porque no humano a razão está constantemente competindo com outras forças para determinar como vamos agir. Essas forças são justamente nossas emoções, paixões, desejos, apetites, as inclinações de que estávamos falando. Com efeito, não são raras as vezes em que nosso senso de moralidade nos indica fazer uma coisa, quando nosso desejo é de fazer outra. Assim, no humano, a razão não simplesmente estabelece quais máximas têm valor moral, mas também exige que optemos por seguir a ela (razão) em detrimento dos outros fatores que pesam sobre nossa vontade. Em nós, portanto, os juízos morais que advêm da razão assumem sempre a forma de comandos, de imperativos.
Um imperativo pode ser de dois tipos: um imperativo hipotético ou um imperativo categórico. Imperativo hipotético é aquele que informa qual meio se deve utilizar para atingir determinado fim. Exemplos de imperativos hipotéticos são: “se queres passar, estuda”, “se queres ser respeitado, respeita os outros”, “se queres ter dinheiro, trabalha”, etc. São hipotéticos na medida em que prescrevem um meio na hipótese de se querer um fim específico. Imperativo categórico, por outro lado, é aquele que simplesmente manda fazer algo, sem vinculação com qualquer tipo de fim ou resultado. Por exemplo, “dize a verdade”, “respeita o próximo”, “ajuda o outro”. É chamado de categórico porque não apresenta nenhuma forma de circunstância ou condição.
Como a lei moral jamais pode estar ligada a nenhuma contingência, ela toma a forma sempre de um imperativo categórico e nunca de um imperativo hipotético. Mas como são possíveis esses imperativos? Vejamos. O imperativo hipotético é possível na medida em que eu deseje os fins aos quais ele está vinculado. Se eu quero um certo fim e sei que esse fim só se alcança por certo meio, então eu também quero esse meio. No nosso exemplo, se eu quero passar e sei que só posso passar se estudar, segue-se que eu também quero estudar. No caso do imperativo categórico, no entanto, não pode valer a mesma explicação, exatamente porque nele não existe nenhum fim que se possa querer ou não. Ele apenas está me dizendo que eu preciso fazer alguma coisa (como no exemplo, respeitar o próximo) não importa quais as circunstâncias. Então, no imperativo categórico, não é preciso que eu queira isto ou aquilo. Ao contrário, para que ele seja possível, é preciso simplesmente que eu possa querer a máxima da minha ação em qualquer situação, como se ela fosse uma lei. Donde se extrai uma nova demonstração do que dissemos há pouco: age de maneira tal que possas querer que a máxima da tua ação se torne lei universal.
Mas esta não é a única maneira de exprimir a lei moral. Há certos fatos evidentes à razão que podem nos levar a outras. Com efeito, existem entes no mundo que se encontram à nossa disposição. São coisas que não possuem nenhum tipo de valor ou finalidade/utilidade por si, somente o valor ou a finalidade que nós, enquanto seres racionais, atribuímos a elas. É o caso dos objetos inanimados, dos vegetais e dos animais não racionais. Os seres racionais, contudo, são um caso à parte. Justamente porque possuem razão, eles não estão submetidos às relações de causa e efeito como as outras coisas do mundo. A racionalidade lhes confere a possibilidade controlar suas próprias ações, o que por sua vez lhes permite escolher como querem agir e quais propósitos querem perseguir. Ao contrário do que acontece com os outros seres, não são agentes externos que determinam os fins dos seres racionais, mas sim são eles próprios que dão a si mesmos os seus fins. Tratar um ser racional como se irracional fosse- ou seja, tratar um ser racional como mero meio- significa ignorar sua natureza racional e passar por cima de sua autodeterminação. Significa, em outros termos, rebaixá-lo à categoria de um ser qualquer, quando na verdade ele tem um valor que nenhum outro tem. A única possibilidade realmente racional de tratar um ser como esse, é trata-lo como um fim em si mesmo. Dito isso, o imperativo categórico também se exprime assim: age de maneira tal que trates a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na pessoa de outro, sempre também como um fim em si mesmo, e nunca como um mero meio.
Vemos, então, que a lei moral nunca está pautada em qualquer finalidade externa ao agente, mas sim invariavelmente naquelas finalidades que ele escolhe para si. Se ajo de certa forma porque alguém me disse ou comandou, fica evidente que estou me guiando por uma parâmetro externo à minha vontade. Mesmo quando me deixo levar por um sentimento ou um desejo, aparentemente estou agindo por mim mesmo, porém na verdade estou apenas me subordinando a emoções e desejos que eu mesmo não escolhi ter. A ação com valor moral genuíno só pode surgir quando renuncio a todos os fatores que não sejam a minha própria vontade. A lei moral só é realmente lei moral na medida em que ela não é uma lei que outro me fornece, mas antes uma lei que eu dei a mim mesmo. Por isso, toda vez que eu ajo moralmente, devo ser sempre capaz de me enxergar como autor da lei que me guiou. Donde o imperativo categórico ganha uma terceira formulação: age de maneira tal que a vontade na sua máxima possa ao mesmo tempo considerar a si mesma como legisladora universal. À condição de quem age movido por algo externo à sua própria vontade, damos o nome de heteronomia. Quando alguém neutraliza a influência de todos os móveis externo, e permite que sua vontade por si só determine o seu agir, nesse caso dizemos que existe autonomia. Toda ação heterônoma é necessariamente imoral, e toda ação autônoma sempre terá valor moral.

quinta-feira, 13 de junho de 2019

Modernidade e Reconhecimento segundo Charles Taylor


Hoje falaremos um pouco sobre as ideias desenvolvidas pelo pensador canadense Charles Taylor. Seu nome é conhecido sobretudo no campo das teorias da justiça, em que Taylor, ao lado de autores como Michael Walzer, Michael Sandel e Alasdair MacIntyre, é enquadrado dentro do grupo de críticos ao liberalismo igualitário de John Rawls chamado comunitarismo. As principais contribuições de Taylor são no campo da ética e da filosofia política. Embora seja verdade que sua principal obra é “As Fontes do Self”, ela não será abordada aqui pois ainda não tive a oportunidade de lê-la. Em vez disso, irei me basear em dois de seus livros que já li- “Hegel e a Sociedade Moderna” e “A Ética da Autenticidade”- para que possamos discutir, primeiro, um pouco sobre como esse filósofo encara o mundo moderno e, em seguida, qual o papel que ele atribui ao reconhecimento.
Charles Taylor (1931-)

Assim, partindo daquilo que está dito em “A Ética da Autenticidade”, Taylor identifica três aspectos da sociedade moderna considerados problemático. São três aspectos que, em relação ao mundo antigo e ao mundo medieval, são novidades, mas que ao mesmo tempo contam com enaltecedores, de um lado, e críticos ferrenhos, do outro. Posto que Taylor enfatiza o primeiro e o considera que os outros dois em última análise derivam dele, também irei enfocar sobre o primeiro aspecto, para que depois possamos passar à questão do reconhecimento.
O primeiro aspecto é o chamado individualismo. Por individualismo Taylor pretende expressar o traço marcante das sociedades modernas que consiste na afirmação e na primazia da vida individual. Como sabemos, no medievo, o estilo de vida e as funções desempenhadas pelas pessoas era definido quase que completamente pelo grupo em que ela havia nascido. Quem havia nascido servo estava quase que definitivamente condenado a viver como servo até a morte, assim como os descendentes dos senhores feudais e monarcas praticamente não tinham escolha a não ser levarem uma vida de nobreza e um dia ocuparem os postos deixados por seus ascendentes. Aquilo que podíamos ser ou fazer não era o resultado de uma escolha pessoal, mas sim basicamente um determinação advinda da tradição e da comunidade.
No mundo moderno, contudo, o que existe é quase que o perfeito oposto disso. Em nossas intuições cotidianas, parece não apenas estranho, como até mesmo condenável, que uma pessoa tenha sua vida toda traçada ou a permita ser traçada por algo ou alguém que não ela própria. Com efeito, só quem está autorizado a dizer o que é bom para mim sou eu próprio. Cada qual escolhe como pretende viver e escolhe por si quais objetivos deseja perseguir e quais coisas quer valorizar, quais crenças pretende seguir e qual identidade quer adotar. Em vez de ser uma sociedade em que o indivíduos se guiam por uma suposta ordem natural que lhes impões papéis e deveres pelos quais ninguém optou, a sociedade moderna é aquela em que cada um está em busca dos propósitos que escolheu para si.
O segundo aspecto é a razão instrumental. Uma vez que não acreditamos mais, como disse, em uma ordem natural ou leis naturais que determinam o quem devemos ser o que devemos fazer, as coisas do mundo também perdem qualquer propósito intrínseco. Os animais, a flora, os recursos naturais e outros elementos do mundo externos ao ser humano, na visão moderna, já não possuem nenhuma finalidade, a não ser aquela que nós próprios dermos a eles. Dizer que as coisas não servem a um fim natural/ intrínseco, nesse sentido, significa dizer que podemos usá-las da forma como bem entendermos. Significa dizer que elas são utensílios à disposição da humanidade para fazer com elas o que se achar mais adequado.
O que Taylor chama de razão instrumental, aqui, é o novo tipo de racionalidade que surge uma vez que se passou por esse processo de desencantamento do mundo. Se as coisas estão ao dispor da vontade humana, tudo pode ser reorganizado utilizado de modo a produzir os resultados que queremos. Afastada a ideia cristã de que a usura é pecaminosa, por exemplo, o mercado financeiro pôde se expandir até se tornar o grande sistema de trocas e vendas, lucros e negociações que é hoje. As coisas já não são mais usadas de modo a cumprir aquilo que as leis divinas ou as regras da tradição estabelecem, mas sim de uma forma que elas possam gerar o máximo de benefícios com o mínimo de custos, por isso o nome razão instrumental.
O problema é que a busca cega pela produtividade e pela eficiência acaba por negligenciar questões que de outra forma consideraríamos como importantes, como por exemplo meio-ambiente e a desigualdade social. Na modernidade, aquilo que não está de acordo com a lógica dos lucros e do custo benefício ou é deixado de lado ou é sacrificado em nome do crescimento econômico. A razão instrumental engole todos os outros valores que não sejam aqueles que ela própria endossa.
O terceiro aspecto é a perda da liberdade. Em um mundo em que os indivíduos possuem forte tendência a serem autocentrados e em que o funcionamento das instituições é governado pela razão instrumental, há pelo menos duas maneiras como nós todos temos nossas liberdades diminuídas. A primeira é que as circunstâncias ao nosso redor não raramente nos obrigam a tomar escolhas que de outra forma não tomaríamos. Para usar um exemplo do próprio Taylor, o fato de viver em uma sociedade urbanizada e super complexa faz com que eu não tenha outra escolha senão adquirir um automóvel próprio para atender a meus compromissos, ainda que esse não fosse meu desejo.
Mas existe ainda uma outra maneira, muito mais sutil e por isso mais perigoso, de como nossas liberdades no contexto moderno são cerceadas. O que acontece é o seguinte: por estar imerso uma cultura autointeressada, o indivíduo se preocupa cada vez mais com aquilo que diz respeito à sua vida privada, e cada vez menos com aquilo que não diz respeito a ela. Da forma como ele vê as coisas, aqueles assuntos que não afetam o seu plano de vida, ou pelo menos que não o afetam de modo direto e evidente, são menos importantes e menos dignos de atenção. Dentre esses assuntos está a política, ou seja, o processo de decisões que determina o rumo que a sociedade deve tomar.
Uma vez que a política nos parece mais e mais irrelevante, mais e mais longe daquilo que realmente nos interessa (nossa concepção de bem), maior é a facilidade com que nós entregamos o poder político na mão de pessoas designadas para essa função. Nos regimes democráticos contemporâneos, essas pessoas são os representantes eleitos. O que se observa na prática, segundo Taylor, é que os cidadãos se desconectam da esfera pública para se concentrar em seus projetos pessoais de tal forma que quem de fato tem nas mãos o poder de decidir não são eles, e assim aqueles que foram escolhidos para os cargos. Trata-se de uma situação, em que o único momento de verdadeira influência do povo sobre a esfera pública são nas eleições. E de resto ela fica praticamente entregue àqueles agentes políticos e aos burocratas. No entanto, como a esfera pública impacta diretamente sobre a vida privada, ao perdermos o controle sobre ela, perdemos junto nossa capacidade de decidir em que tipo de sociedade queremos viver. Em outras palavras, perdemos, também, parte de nossa liberdade.
Nesse ponto, é preciso tomar cuidado para evitar maus entendidos. Taylor insiste bastante que não devemos toma-los por um mero detrator da modernidade ou alguém que enxerga nela nada mais do que problemas e decadência. Ao contrário, o objetivo do seu projeto teórico é justamente trazer à luz o que está por trás de cada um desses fenômenos, quais são os ideias que os movimentam e como podemos realiza-los adequadamente sem gerar aquelas condições nefastas que acabamos de descrever.
Assim, no que se refere ao individualismo moderno, Taylor dirá que ele não pode ser reduzido, como pensam muitos anti-modernos, a um mero hedonismo, egoísmo ou busca cega pelos desejos. Muito mais profundo que isso, diz Taylor, no cerne do individualismo está um ideal de autenticidade. A ideia fundamental de que “você deve ser você mesmo”. O motivo pelo qual cada um formula seu plano de vida não é simplesmente que cada um anseia por prazer e satisfação, mas sim porque no fundo e nossa consciência se encontra a ideia de que precisamos ser fiéis a nós mesmos. Em nossa forma moderna de pensar, a vida que tem valor é a vida autêntica, a vida pautada na autorrealização. Com efeito, da forma como vemos o mundo, parece estranho ou até mesmo errado que alguém viva sua vida segundo o que o outro lhe diz, ou segundo o que uma autoridade lhe comanda.
Segundo Taylor, o ideal de autenticidade não surgiu repentinamente no imaginário moderno. Na verdade, ele é o resultado de um longo processo de sedimentação de ideias que vem desde a Antiguidade Tardia, contando com pensadores do mais alto calibre. Agostinho, e a ideia de que o encontro com nossa interioridade é o caminho para a Verdade. Rousseau, e a ideia de que uma vida sob as próprias escolhas é a única vida digna do ser humano. Kant, e a ideia de que só somos livres quando damos a nós próprios a lei que iremos seguir. Herder, e a ideia de que cada ser humano, assim como cada grupo, é uma entidade única e irrepetível cuja identidade se expressa no mundo exterior.
E a questão do reconhecimento, onde se encaixa? O ponto alto da argumentação de Taylor, a meu ver, é mostrar que a realização do ideal de autenticidade não é algo que dependa unicamente do indivíduo, mas principalmente do reconhecimento que ele recebe dos outros. Para ser mais exato, Taylor pretende nos convencer de que a nossa própria identidade é construída e consolidada devido a relação de reconhecimento intersubjetivo. Eu não sou quem sou apenas porque escolho ser assim, mas também porque os outros me reconhecem assim. É dos laços da comunidade que advém a identidade, e não o contrário.
Para sair dos termos abstratos, tomemos um exemplo concreto. Imaginemos um certo homem que seja dito como um bom professor universitário. Vejamos. A partir do nosso conhecimento cotidiano, dizer que ele é um bom professor geralmente implica que os discentes tecem comentários positivos a respeito de suas aulas. Também significa dizer que a instituição à qual ele está vinculada reconhece o seu trabalho e considera que ele cumpre os padrões exigidos. Quer dizer, além disso, que ele foi considerado apto ao ofício pelo estágio probatório. Significa, ainda, que a comunidade científica vê valor na sua produção.
Como podemos ver, o fato de ser um professor é algo que depende, sim, do que ele faz e de como age, mas depende primordialmente, do modo como ele é visto e considerado pelos outros. São as atitudes dos outros, ao elogiá-lo, comentar seu trabalho, aprovar sua produção, etc, que o constituem enquanto um professor que podemos chamar de bom. O que Taylor quer mostrar é que com todos os aspectos de nossa identidade acontece a mesma coisa. Ser pai, amigo, irmão, empregado, presidente, par romântico, rival, inimigo, e tudo o mais que nos define está invariavelmente ligado ao reconhecimento que os outros nos dão. Se o indivíduo autêntico é aquele caracterizado por ser livre, independente, dono de si e bem sucedido, ele só pode ser tudo isso porque os outros assim o reconhecem. Eu só sou livre e autônomo porque vivo e fui criado em um ambiente que faz com que eu veja a mim mesmo assim
É isso que Taylor quer dizer quando diz a identidade humana tem um caráter dialógico. Dialógico aqui quer dizer que cada elemento que compõe essa identidade sempre diz respeito a algo da comunidade a que esse indivíduo pertence. Para exemplificar, na Idade Média, saber quem uma pessoa era implicava saber qual sua família de origem, qual a profissão de seus pais e onde ela havia nascido. No contexto moderno, diferentemente, saber quem uma pessoa é envolve saber qual seu plano de vida pessoal, quais suas preferências, qual sua ocupação e a qual classe ela pertence. As escolhas feitas por alguém podem, é verdade, influenciar fortemente no quanto de recursos esse alguém terá, mas jamais poderá influenciar o fato de que a posse ou ausência desses recursos seja um fator definidor da posição social.
Por isso que na modernidade, o reconhecimento, como nunca antes na história, passa a ser um problema, isto é, como uma questão a ser pensada. Se o reconhecimento já não é mais conferido a partir de um critério fixo (o estamento de origem), ele agora precisa ser conquistado. Contudo, se, como vimos, o reconhecimento depende invariavelmente dos outros, o indivíduo ou o grupo, isoladamente, não é capaz de determinar seu sucesso ou fracasso ou obtê-lo.
A consequência direta disso é que toda negação de reconhecimento é sempre também uma negação da identidade. Toda vez que humilhamos, constrangemos ou impedimos alguém de manifestar seu jeito de ser, estamos negando a ela sua própria identidade. Se o reconhecimento é o que constrói a identidade, é a falta dele o que a torna vulnerável. Assim, incutir em outrem uma imagem depreciada ou negativa de si, como alguém de menor valor e menos capaz é talvez a forma mais eficaz de manter uma pessoa sob opressão.
A mesma lógica vale para grupos. Todos aqueles grupos cujas práticas e formas de vida são sistematicamente proibidas, malvistas, proscritas e desconsideradas, ou até mesmo perseguidas e caçadas, sofre um constante atentado contra sua própria identidade. Isso possui uma consequência importantíssima para o campo da política. A saber, sempre que a instituições combatem ou reprimem uma determinada prática coletiva, elas estão negando reconhecimento ao grupo de origem daquela prática, o que significa, como vimos, vulnerar a sua identidade. É o que acontece, por exemplo, quando uma sociedade obriga indígenas a trocarem suas vestimentas tradicionais pelas roupas ocidentais. Ou quando obriga uma comunidade religiosa a abandonar seus ritos que envolvem sacrifício de animais. Toda vez que algo assim ocorre, para Taylor, o que está acontecendo é uma tentativa de imposição de um modo de vida sobre outro, de uma forma de existir e ver o mundo sobre outra, ainda que para nós possa parecer como sendo apenas a coisa mais certa e racional a fazer.
Politicamente falando, essa questão do reconhecimento, em Taylor, representa uma lição que precisa ser absorvida pelo liberalismo. Se uma sociedade liberal pretende ser aquela em que pode haver pluralidade, isso imediatamente exclui qualquer forma de domesticação ou adaptação forçada de grupos não liberais que existam dentro dela. A bem da verdade, o liberalismo, em suas raízes, é ele próprio uma cultura, uma forma de decidir quais coisas possuem valor e qual a vida boa a ser vivida.
É uma concepção dotada de seus méritos, como admite o próprio Taylor, mas que precisa estar atenta para seus próprios limites. No momento em que sejam implementadas práticas como aquelas que citamos, ou outras à maneira da colonização, o que se tem é exatamente o tipo de dominação e imposição que o próprio liberalismo havia se proposto a combater. Só que uma versão etnocêntrica e, do ponto de vista de quem está acostumado a sociedades liberais, travestida de legitimidade.
A melhor saída seria, então adotar uma política que permita dentro do Estado formas de vida que não liberais, em vez de uma política de uniformização da população interna segundo os mesmos parâmetros. Ou, para usar os termos de Taylor, uma política do reconhecimento no lugar de uma política da igualdade. Dado o que se disse sobre o reconhecimento, a opção política moralmente mais responsável de governar seria entender que, dentro do mesmo território, há uma pluralidade de culturas que demandam respeito. Em outras palavras, seria uma sociedade multicultural.