domingo, 28 de abril de 2019

A Genealogia do Poder Disciplinar em Foucault Parte 1: O Poder Soberano



Ao lado de História da Loucura e dos vários volumes que compõem História da Sexualidade, Vigiar e Punir certamente está entre as obras importantes e mais conhecidas de Michel Foucault. Ela se situa na chamada fase genealógica de Foucault, que se distingue das outras duas fases (arqueológica e ética) por ter como seu fio condutar o projeto de investigar as relações saber-poder: entender como o surgimento de novas formas se saber propiciam o aparecimento de novas formas de poder, e vice-versa. No caso de Vigiar e Punir, o objetivo se centra em compreender a mudança fundamental que aconteceu nas formas de poder predominantes na sociedade, na passagem da chamada Época Clássica (séc, XVII- até em torno de meados do séc. XVIII) para a modernidade (final do século XVIII, século XIX em diante). Em função da complexidade do estudo que Foucault desenvolve, dividirei a exposição sobre esse tema em partes, por postagens diferentes, para que a compreensão fique mais organizada e menos cansativa.

 Partindo de uma análise sistemática entre a transformação que ocorreu nas formas de punição clássicas e as modernas, Foucault pretende desfazer a imagem do poder como algo exclusivo das grandes instituições, ou como algo que se manifesta eminentemente proibindo, reprimindo, impondo limites e impedimentos. Antes, diz Foucault, essa nova faceta do poder, chamada de poder disciplinar, não pode ser percebida a menos que adotemos uma nova visão do poder como algo difuso, multiforme e presente até na mais inocente das relações sociais.
Na Época Clássica, que coincide com o período mais forte do absolutismo monárquico na Europa, especialmente na França, a forma paradigmática de punição que existia era o chamado suplício. De uma forma geral, para os propósitos do texto de Foucault, podemos entender o suplício como aquela formas de execução feita em público, em que o condenado era submetido aos mais diversos tipos de tortura até a morte. Podiam envolver afogamento, desmembramento, imolação, ser arrastado por cavalos ao longo de toda a cidade, esquartejamento, etc. O exemplo mais nítido que é dado em Vigiar e Punir a respeito do suplício é o de Damiens, parricida que teve os membros arrancados por cavalos amarrados aos seus braços e pernas.
Nesse ponto é importante afastar um eventual erro de interpretação que se poderia cometer. Por mais que o suplício, aos nossos olhos contemporâneos, pareça altamente brutal e impiedoso (o que hoje podemos razoavelmente dizer que era), ele nada tinha de caótico ou irracional. Pelo contrário, a sua execução era prática altamente calculada e premeditada, de modo que podemos dizer, com certa licença, que havia uma ciência do suplício. O objetivo dessa prática punitiva era eminentemente o de produzir dor no corpo do condenado. Uma máquina de sofrimento. Mas a quantidade, intensidade e duração da dor não eram aleatórios, e sim previamente previstos de acordo com a sentença que fosse proferida. Não se deve de forma alguma pensar que o suplício fosse uma parte dos ordálios do direito germânico, ou que seus fundamentos sejam exclusivamente noções oriundas da superstição Se o castigo havia sido determinado por perdurar três dias, havia uma preocupação muito grande para que o condenado sofresse apenas o bastante para se manter vivo durante os dois primeiros. Se o castigo devesse ser executado primeiro com uma sessão de esfaqueamento e depois com o arranque da pele, assim deveria ser procedido.
Aos crimes considerados mais repugnantes e horrendos, como o caso do parricídio de Damiens, reservavam-se os castigos mais dolorosos e prolongados. Cabia ao carrasco empregar as técnicas e os procedimentos corretos para que a dor e o sofrimento aplicados sobre o condenado não fosse nem superior nem inferior àquilo que a ele havia sido juridicamente determinado. Tanto prova que, quando os carrascos faziam com que o condenado morresse antes da hora, ou não conseguissem finalizá-lo na forma e no tempo estipulado (como aconteceu com o Damiens, que precisou ter seus membros talhados para que os cavalos conseguissem arrancá-los) o carrasco era passível de sofrer punições.
Por fim, o outro aspecto importante da prática do suplício é que ela tomava sempre a forma de um espetáculo, uma exibição institucional pública. Quando alguém deveria ser supliciado, o povo era convocado a comparecer à praça pública e presenciar os últimos momento daquele criminoso, passando junto com ele cada momento de sua dor. A pessoa e o crime que ela havia cometido, bem como o ciclo de castigos a serem aplicados, era anunciado à população para que todos soubessem o que estava acontecendo e por que estava acontecendo.
O que está por trás do suplício? Por que ele é o mecanismo positivo mais marcante desse período? Por que ele se preocupa tanto com provocar dor e toma a forma de um espetáculo? Ao se debruçar sobre essas questões, Foucault é magistralmente didático em explicar que o suplício tem dois sentido principais, um sentido religioso e um sentido político.
O sentido político tem diretamente a ver com a forma de organização que as sociedades clássicas adotavam, com destaque para o absolutismo. Nesses esquemas de governo, o soberano era por excelência o detentor do controle de tudo e de todos, a fonte da obrigatoriedade das normas. O Estado e sua pessoa, como bem expressou Luís XIV, se confundem. Segue-se disso que a lei não era apenas uma regra a ser cumprida. Antes de tudo, ela é uma emanação, uma encarnação e um produto da vontade do soberano. Quem atenta contra lei, com a prática de crimes, ofende também o rei. Ao cometer um crime, uma pessoa demonstra que não tem pelo seu senhor o respeito e o amor devidos. Essa violação é a tal ponto inaceitável que a única forma de corrigi-la é fazendo o criminoso sofrer. Mais do que isso, é preciso que todos o vejam para que todos estejam sempre lembrados de quem realmente dita as ordens, de quem realmente está no comando e de quem em última instância tem nas mãos o destino de cada um. O suplício precisa ser doloroso e público para que não o súdito desviante seja colocado novamente no seu lugar de súdito, mas também para que todos tenham em primeira mão uma experiência do que acontece quando se desafia o soberano.
Mas o suplício não é um mecanismo de restituir o respeito pela lei e pelo governante. O sentido religioso tem a ver com a relação estrita que então havia entre Estado e Igreja, entre sistema político e prática religiosa. O crime não era apenas um atentado contra o soberano, mas também um pecado, isto é, um atentado contra Deus. Sendo também uma ofensa contra o divino, nada mais imperioso que esse débito seja pago pelo sofrimento de quem o cometeu. Se aquele que comete o crime acha que assim age justamente, é a dor quem irá lhe ensinar a natureza pecaminosa daquilo que fez. A prática delitiva mancha a alma do criminoso. Para que ele volte a ter a mais remota esperança de alcançar as graças do paraíso, é preciso que seus pecados sejam devidamente expurgados.
Isso explica boa parte de seus aspectos processuais. Nas etapas de julgamento que poderiam levar ao suplício, o condenado poderia já estar condenado antes mesmo que a decisão final fosse tomada. Ao contrário do processo penal que hoje conhecemos, o julgamento de uma pessoa não era concluído para que, só depois, na hipótese de haver uma sentença condenatória, a sanção fosse aplicada. Na verdade, cada prova que fosse encontrada no decorrer da investigação já ensejava que sobre o investigado fosse aplicado um castigo, a depender da força e do caráter definitivo que essa prova pudesse ter, bem como da capacidade do investigado de contestá-la.
Assim, a menor evidência minimamente razoável já poderia significar razão para que uma sanção de intensidade correspondente fosse aplicada. Por exemplo, se for encontrada uma testemunha que viu um acusado de assassinato deixar o local do crime às pressas momentos antes de o cadáver ser achado, um castigo físico já seria possível, mesmo que ainda se considerasse necessário mais averiguações para proceder ao suplício propriamente dito.
A mesma lógica valeria para o uso da tortura, que nesse paradigma punitivo era ao mesmo tempo uma forma de castigo e um meio de obtenção de provas. Isso pode parecer, a nossos olhos acostumados ao sistema acusatório, algo paradoxal. Mas, novamente, faz todo sentido quando vemos do ponto de vista predominante até então. Se as provas contra o acusado já haviam alcançado determinado patamar, nada impediria que fosse usada tortura como forma de punição sobre aquilo que já havia sido descoberto a seu respeito, ao mesmo tempo que essa prática de tortura faria com que ele confessasse novos fatos até então desconhecidos.
Com o que já sabemos até aqui a partir dessas explicações, podemos dizer que o suplício principalmente, mas também as outras modalidades punitivas menores, assumem o caráter eminentemente de uma prestação de contas. Mas uma prestação com quem? Pelo que vimos, é uma prestação para com aquele de cuja vontade emanam as leis (o soberano) e aquele a quem o criminoso deve sua existência (Deus). E essa prestação de contas se dá justamente como uma retribuição em função das ofensas que haviam sido praticadas, dos erros que haviam sido cometidas, das regras que haviam sido quebradas.
Dito isso, a análise das formas de poder predominantes na Época Clássica nos mostra que todas elas têm em comum o fato de serem poder de reinar. São poder em que está em jogo a definição daquilo que é certo ou errado, daquilo que é permitido ou proibido. Essas definições de lícito e ilícito advém daquilo que é determinado pelo soberano, o direito de morte pela violação é pode ele exercido. Esse tipo de poder, que envolve (1) a demarcação de padrões pela lei e (2) a aplicação de punições sobre quem os violar, é o que Foucault chama de poder soberano.
A tese que Foucault pretende sustentar, e que é central para o argumento de Vigiar e Punir é que, na passagem para a modernidade, o pode soberano não exatamente desapareceu, mas sim não tem mais a mesma importância que tivera na época clássica. Isso fica claro quando se percebe o quase que total sumiço do suplício e o sucesso da prisão enquanto dispositivo punitivo oficial mais importante. Através do ciclo de transformações, reviravoltas, reformas e revoluções que levaram à edificação da sociedade burguesa, o poder soberano cedeu seu lugar a uma outra forma, muito mais sutil, discreta e difícil de perceber, mas ao mesmo tempo extremamente penetrante, chamada poder disciplinar. Esse será o assunto de que trataremos em breve.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

Noções Básicas de Ética das Virtudes


Dentre todas as abordagens éticas ocidentais, a ética das virtudes provavelmente é a mais antiga. Ao lado das éticas do dever e das éticas consequencialistas, ela hoje disputa adeptos entre os filósofos e conta com fortes defensores. Nesta postagem, pretendo esclarecer brevemente algumas das principais ideias envolvidas quando se fala em ética das virtudes. Como a essa doutrina normalmente se opõem críticas específicas, ao final da postagem farei rápida menção a duas possíveis linhas de objeção a uma ética baseada em virtudes, seguida de uma possível defesa feita por um de seus mais importantes defensores contemporâneos.
Antes de tudo, é preciso dizer que, diferente das éticas deontológicas e consequencialistas (ou menos as versões mais comuns dessas duas últimas) a ética das virtudes não está preocupada exclusivamente com o agir humano. Os atos humanos importam para ela na medida em que desempenham um papel na formação da identidade de um todo maior, que é o próprio ser humano. Assim, uma ética das virtudes está preocupada, em última instância, em prescrever não uma regra para se distinguir ações boas de ações ruins, mas sim em propor um estilo de vida completo, um modelo de ser humano.
E é por esse motivo que essa abordagem ética se situa sempre sobre a questão da personalidade e do caráter. Não basta que uma pessoa aja da forma certa. É preciso também que ela tenha agido na hora certa, devido à motivação certa, com o desejo certo, assim como é preciso que ela tudo isso seja uma constante ao longo de sua vida. Ninguém é virtuoso por ter agido bem uma única vez, e sim apenas quando esse agir bem se incorpora à sua identidade e ao seu modo de ser.
A formulação mais clássica e até hoje mais famosa de ética das virtudes está em Aristóteles. É verdade que algo nesse sentido já poderia ser encontrado em Platão, já que para ele a cidade justa era aquela em que as aptidões naturais de cada um eram cultivadas de modo que cada pessoa ocupasse o nicho social apropriado para si (seja como filósofo-governante, como protetor da cidade ou como produtor) tendo como pano de fundo a razão governando as paixões. Mas a formulação mais completa sobre o que são virtudes, qual seu fundamento e como se atinge um comportamento virtuoso só foram aparecer nos escritos do famoso discípulo de Platão. E é por isso que irei me concentrar nele agora.
Um panorama completo do pensamento de Aristóteles, de modo que eu pudesse situar onde se encontra a ética dentro dele, é impossível aqui. Então irei me limitar a fazer algumas considerações sobre sua visão de mundo, que está pressuposta em sua ética, para logo em seguida passar ao nosso tema principal.
É lugar comum dizer que Aristóteles vê o mundo de forma teleológica. E o que quer dizer isso? Quer dizer, em primeiro lugar, que nessa visão tudo aquilo que existe possui uma certa finalidade, um propósito a ser realizado (telos). Para ser mais exato, em Aristóteles, todas as coisas são dotadas de certas potencialidades que lhes são intrínsecas e inseparáveis, potencialidades estas que vão se desenvolvendo ao longo da existência de cada coisa no mundo, dentro das condições adequadas, até que se chegue ao ponto culminante desse processo, que é justamente o seu telos. O telos é, ao mesmo tempo, o ápice e a máxima realização de uma coisa. No caso das coisas que existem em nosso mundo cotidiano, o que ocorre após o atingimento do telos é apenas decadência e destruição da coisa. Conhecer algo, nesse sentido, é conhecer qual é o seu telos e como ela o alcança.
Apenas para dar um exemplo que eu gosto de usar, podemos pensar em uma árvore. A árvore de certa forma já está contida na sementes, mas está apenas como potência, como algo que pode vir a se realizar ou não. A finalidade da semente é germinar e se tornar árvore, espalhando novas sementes ao ambiente. Ela atinge seu telos quando se transforma, efetivamente, em uma árvore frondosa. Com o passar do tempo, ela decai até morrer e se decompor. Quem não sabe que a finalidade da semente é se tornar árvore não sabe realmente o que é uma semente, tampouco o que é uma árvore.
Aristóteles acredita que mais ou menos a mesma lógica se aplica ao ser humano. Assim como os outros entes do mundo, o ser humano também é dotado de propósitos intrínsecos a serem realizados, propósitos estes que habitam nele enquanto potencialidade e que o distingue de outros animais. Isso fica mais claro quando se vê como Aristóteles enxerga a estrutura a alma humana.
No nível mais basilar, existe a alma vegetativa, responsável por manter nossas funções vitais e fazer com que o organismo permaneça funcionando. É uma parte compartilhada com os vegetais (donde o nome). Existe a alma apetitiva, que responde pelos nossos desejos e emoções. É errado pensar que a ética das virtudes aristotélica pretende apagar os desejos. Pelo contrário, os desejos desempenham nela uma função importante. O que ela pretende é nos mostrar quais desejos são bons e em que situação devemos atendê-los. A última parte é a alma racional, que podemos ainda dividir em deliberativa e contemplativa. A parte deliberativa é a que se ocupa de definir como serão nossas ações: o que iremos fazer e como iremos fazer. A parte contemplativa, como o próprio nome diz, não tem a ver diretamente com ações, mas sim com a contemplação do mundo e a percepção das verdades últimas por trás dele.
Viver bem (ou a vida humana boa) nesse sentido, é viver de maneira que realizemos esses nossos propósitos. O estado de ampla e plena realização de nossas finalidades enquanto humanos é aquilo que Aristóteles chama de eudaimonia (normalmente traduzido como felicidade, da qual falaremos mais adiante). No entanto, só somos capazes de fazer isso se nos comportarmos de uma certa forma, se aprendermos a agir de uma maneira que nos leve a esse resultado. Para Aristóteles, o campo do saber que se ocupa em determinar qual o estilo de vida que nos conduz a essa realização é a ética.
Já sabemos, então, que nem todas as formas de vida nos levarão a essa realização. O homem que vive de forma a exercer bem aquelas potencialidades que o tornam humano é, para Aristóteles, o homem virtuoso Vidas voltadas unicamente para o prazer e a lascívia certamente deixam de contemplar alguns de nossos aspectos mais importantes, como o da reflexão racional. Por outro lado, vidas muito voltadas para o interior de si e de renúncia a qualquer tipo de satisfação também tendem a nos tornar insensíveis. Qualquer tipo demasiado de falta ou excesso tende a enfatizar muito algumas dimensões da existência humana e negligenciar outros. É necessário, então, viver de modo que não caiamos nem na falta nem no excesso. Daí porque, em uma primeira análise, Aristóteles dirá que a virtude pode ser concebida como uma disposição de agir, que se coloca como um meio termo entre um excesso e uma falta.
Aristóteles concebe dois tipo de virtudes. O primeiro são as chamadas virtudes de caráter. Essas são aquelas virtudes ligadas diretamente ao nosso modo de agir diante dos acontecimentos da vida. Entre elas estão a coragem, a temperança, a gentileza, etc. São virtudes relacionadas às atitudes tomadas pelas pessoas de acordo com as situações. As virtudes de caráter recebem esse nome porque a presença ou ausência delas nos permite dizer que tipo de pessoa aquele alguém é, que tipo de personalidade ele possui. São virtudes que não se exercem apenas em ocasiões especiais, mas sim nas atividades cotidianas de cada um, sendo praticadas a todo momento.
Mas isto apenas não basta. Uma pessoa verdadeiramente virtuosa precisa também ter a capacidade de analisar uma determinada situação de acordo com as suas circunstâncias próprias. É preciso saber quando se está diante de uma ocasião normal ou uma ocasião anômala. É preciso saber identificar quais os riscos envolvidos. É preciso saber identificar quais são as precauções a serem tomadas. Para um guerreiro, por exemplo, ser corajoso normalmente pode significar não se deixar dominar pelo medo de avistar o inimigo. Mas e se esse mesmo guerreiro se vir incumbido de uma tarefa específica, que ele nunca havia realizado antes, de cujo sucesso depende a vitória ou a derrota de seu povo? Possivelmente, o mero dizer que coragem é meio termo entre covardia e temeridade não seria o bastante. Em suma, é preciso que o indivíduo tenha a capacidade de saber como agir sem ficar limitado a fórmulas ou padrões fechados.
É justamente para cumprir essa função que existem as chamadas virtudes intelectuais. Ao contrário das virtudes de caráter, as virtudes intelectuais estão relacionadas ao modo como o sujeito pensa, organiza seus atos e decide o que irá ou não fazer. De todas as virtudes intelectuais (que envolvem, por exemplo, sabedoria, episteme, técnica, dentre outras), Aristóteles considera que a mais importante seja a prudência. Ser prudente é conseguir, em uma situação real, perceber quais são os fins a serem buscados e qual a melhor forma de fazer isso. Não devemos cometer o erro de misturar prudência com astúcia ou esperteza. Uma pessoa astuta ou esperta é aquela que consegue encontrar os meios adequados para chegar ao objetivo que pretendia. Prudência é isso e muito além. Não basta que a pessoa seja apta a conseguir o que quer. É preciso também que aquilo que ela quer alcançar seja bom, e que os meios para isso também sejam bons. Uma pessoa não pode ser realmente virtuosa sem ser prudente, e o contrário também é verdade.
Uma vez dito tudo isso, também é importante lembrar o velho dito aristotélico de que virtude é produto do hábito. Isso significa que ninguém traz a virtude consigo desde o nascimento, muito menos adquire virtude somente pela aquisição de saber intelectual (algo que normalmente é imputado a Platão). Qualquer pessoa só pode se tornar uma pessoa virtuosa se ela passar por um processo constante de prática, exercício e repetição, como eu disse no começo. É somente após um considerável período, que corresponde a boa parte de nossa juventude, que podemos adquirir os dois tipos de virtude, sendo razoável pensar que adquirimos as virtudes de caráter antes das intelectuais, já que normalmente aprendemos a agir segundo determinados preceitos antes de propriamente desenvolvermos a faculdade de pensamento para tal.
Chegamos agora ao momento das críticas.
Uma coisa que se pode opor à ética das virtudes é que ela seria estruturalmente incompatível com o pluralismo que se tem abertamente nas sociedades pelo menos desde a modernidade. De fato, todos nós sabemos que nos dias de hoje cada pessoa tem uma opinião diferente de como se deve viver, assim como tem um projeto pessoal diferente, tem gostos diferentes, valoriza coisas diferentes, etc. Ora, o desenvolvimento de uma ética das virtudes, pelo menos nos termos que acabo de expor, parece ir de encontro a isso. Com efeito, continua objeção, uma sociedade regida por uma ética das seria uma sociedade que se veria fechada a valorizar um tipo específico de personalidade, com alguns gostos específicos, com algumas escolhas pessoais específicas, etc. Todas as demais formas de vida que fossem desviantes em relação a esse padrão seriam consideradas menos valiosas e não dignas de apreciação. Adotar uma ética das virtudes significa estabelecer de antemão o que é bom e o que é ruim, significa tirar das pessoas o poder de fazerem essa escolha elas mesmas.
A segunda objeção, que no momento acho bastante pertinente, consiste em dizer que o sucesso de uma ética das virtudes depende essencialmente de uma estrutura de comunidade forte. Dito outro modo: só é possível formar um indivíduo virtuoso, da forma como essa ética o concebe, se já existe um grupo forte e coeso de pessoas que vivem segundo esses mesmos padrões. Seria preciso, nesse sentido, que já houvesse se consolidado uma comunidade de pessoas virtuosas, para que elas pudessem orientar aqueles que estão em processo de formação, Um único indivíduo desgarrado que decidisse viver segundo uma ética das virtudes não teria parâmetro algum para saber se está trilhando o caminho certo ou se na verdade está nos rumos do vício. Como nas sociedades modernas para praticamente não haver nenhum grupo humano que atende a esses requisitos, uma proposta de ética das virtudes, ainda que fizesse sentido do ponto de vista racional, seria impraticável.
Terminarei com uma possibilidade de contra-argumentação a essas críticas. Mas isso nada tem a ver com o meu posicionamento pessoal sobre o assunto.
Em seu livro Depois da Virtude, Alasdair MacIntyre nos apresenta uma interessante e instigante proposta de defesa de uma ética das virtudes. MacIntyre acredita que até o surgimento da modernidade, com o iluminismo, o que prevaleceu na antiguidade e no medievo era uma visão de mundo teleológica mais ou menos nos termos que defini ainda há pouco.
Primeiro de matriz helênica, depois embebida de vieses teológicos cristãos, era essa visão teleológica que conferia sentido às expressões morais, como justo, certo, errado, bom, ruim, etc. O que aconteceu foi que o iluminismo, com sua nova proposta de edificar um mundo longe da tradição e da superstição, aboliu essa visão teleológica, em prol de uma visão de mundo mais pautada na ciência e na racionalidade moderna. O problema é o seguinte: se antes da modernidade havia valores morais de certa forma estáveis, consensuais e fortes em orientar o agir e o viver das pessoas, o iluminismo pôs abaixo essa estrutura sem nos deixar nada que pudesse substituí-la.
Aquilo que nos restou, nas palavras de MacIntyre, foi uma moral fragmentada. Foram expressões reconhecidamente morais, como as que citei ainda há pouco, mas sem nenhum tipo de preceito que pudesse nos orientar a como usá-las, ou a ter certeza sobre o que elas significam. Ficamos apenas com algumas intuições sobre o que é o ser humano: o ser humano tem razões e emoções, possui interesses, possui faculdades especiais em relação aos outros animais, etc. Mas tudo isso, segundo MacIntyre, nada mais é do que a maneira como se concebia o ser humano na visão teleológica, antes de ele realizar suas potencialidades. Esses pressupostos correspondem, de outro modo, àquilo que o ser humano é em “estado bruto”, sem ter ainda se tornado virtuoso. No entanto, como a perspectiva moderna abomina a teleologia, e essa teleologia que embasa toda a proposta ética pré-moderna, a modernidade foi obrigada a se contentar com apenas esse fragmento daquela visão, já que a outra parte lhe era inaceitável.
Frente ao vazio deixado pelo projeto avassalador do iluminismo, MacIntyre acredita que nos tornamos emotivistas. Isto é, em nossas sociedades, expressões morais passaram a ser usadas unicamente como expressão de nossas emoções, de nosso agrado ou desagrado em relação aos acontecimentos. E é exatamente por isso que, para MacIntyre, como incapazes de alcançar qualquer consenso quando se trata de questões morais.
A única solução que MacIntyre enxerga é um retorno a um modelo de vida comunitário, em que cada um tem consciência de seu lugar dentro do todo maior que é a comunidade, da qual derivaríamos padrões de excelência para construir quem somos. Seria um retorno, por assim dizer, a uma éticas das virtudes. Essa é uma proposta bastante instigante e provocativa. Talvez falemos sobre ela novamente, em uma outra postagem.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Ética: Três Níveis


No estado da arte contemporâneo da Filosofia Moral ou Ética (enquanto campo de estudo filosófico), sobretudo na filosofia analítica, é comum de fazer uma distinção entre três níveis diferentes em que se pode discutir sobre a moralidade: metaética, ética normativa e ética prática.
METAÉTICA
Metaética é um termo que vem da justaposição das palavra “meta” e “ética”, ambas de origem grega. “Meta”, no grego, tem uma conotação que pode ser mais ou menos traduzida como “para além de”. Assim, o campo da metaética, como o próprio nome já tende a nos fazer entender, não é o campo da ética propriamente dita, isto é, as discussões metaéticas não são exatamente discussões sobre o que é certo e errado. São discussões epistemologicamente anteriores. Para ser mais claro, a metaética se preocupa com as condições de possibilidade da ética. Ou, dito de outra maneira, com as condições de possibilidade dos juízos morais.
Quando falamos de metaética, estamos preocupados com uma série de questões que funcionam como o pano de fundo para qualquer ética. Para citar alguns exemplos, estamos preocupados em saber se de fato podemos dizer se algo é certo ou errado, se existe algum método que possamos usar para descobrir isso (questão epistemológica). Estamos preocupados em saber se os valores morais têm o mesmo tipo de existência do que as coisas materiais ou não (questão metafísica). Ou mesmo, estamos preocupados em saber se juízos morais exprimem valores morais ou se na verdade eles são outra coisa completamente diferente (questão semântica).
Como se pode perceber, a metaética por si só é riquíssima em possibilidades de problematização. Possivelmente, a maior disputa travada nesse terreno talvez seja entre as correntes que poderíamos chamar de objetivistas, de um lado, e subjetivistas, do outro. De forma sintética, objetivista é todo aquele que acredita que existem valores morais independentes das nossas vontades individuais, ou seja, valores morais existem da mesma forma como existem pessoas, rios e mares. De tal forma que um juízo moral é verdadeiro quando estiver de acordo com esses valores, e falso quando for contrário a eles. A seu turno, o subjetivismo, aqui usado em sentido amplo, é como podemos denominar qualquer teoria que não acredite em valores morais objetivos, que acredite que todo juízo moral não é nem verdadeiro nem falso, mas sim é a mera expressão de um estado subjetivo (como um sentimento, uma emoção, etc.).
Teorias subjetivistas têm um histórico importante principalmente no contexto filosófico anglófono do século XX. Isso se deve, em grande parte, à influência do pensamento cientificista e por algumas teses que foram levantadas naquele mesmo período. Talvez a mais importante delas tenha sido o famoso argumento da questão aberta, formulado por G.E. Moore.
Moore, juntamente com Bertrand Russel, pertenceu a uma geração de filósofos que revolucionaram o pensamento britânico introduzindo uma série de abordagens de problemas filosóficos por meio da linguagem, lançando as bases para o que conhecemos hoje como filosofia analítica. De um modo geral, a filosofia acredita que questões filosóficas podem ser resolvidas se forem decompostas em problemas menores, identificando-se, por meio de uma análise da linguagem, quais conceitos e operadores estão envolvidos. No caso da vertente que nasce a partir de Moore e Russel, a chamada Escola de Cambridge, esse procedimento de desembaraço e esclarecimento da linguagem seria feito buscando-se trazer à tona a forma lógica das proposições.
O argumento de Moore pode ser resumido da seguinte forma: uma questão como “X é Y” é uma questão fechada se o próprio sentido ou significado de X já implica. Do contrário, é uma questão aberta. Assim, a questão “quadriláteros são polígonos de quatro lados?” é uma questão fechada, porque o próprio sentido do termo quadrilátero já implica que se trate de um polígono de quatro lados. Em outra palavras, é impossível pensarmos em algo que seja um quadrilátero e não seja um polígono de quatro lados. Não faria sentido perguntar, por exemplo, “isto é um polígono de quatro lados, mas é um quadrado?”
Moore pretendia usar essas ideias para provar que qualquer abordagem ética que identificasse o bom com alguma propriedade natural (material, não metafísica, não mundana) seria falha porque cairia em uma questão aberta. Para usar o exemplo clássico, suponhamos que nós acreditássemos que “o bom é prazer” (um exemplo um tanto próximo do utilitarismo, com algumas ressalvas). Em nossa doutrina ética, estamos afirmando que o bom se identifica com o prazer. Para usar os termos que empreguei há pouco, estamos afirmando que “o bom é prazer” se trata de uma questão fechada.
Ocorre que parece não haver absolutamente nenhum problema em fazer a pergunta “isto é prazeroso, mas é bom?”. Se essa questão é possível, significa que no fundo não existe a identidade entre uma coisa e outra. Quer dizer que é possível, ao menos conceitualmente, que nem sempre algo seja prazeroso e bom ao mesmo tempo. Portanto, a doutrina ética que iguala prazer e bom é contestável.
Moore acreditava que o mesmo aconteceria com qualquer tentativa de identificar o bom com alguma propriedade do mundo natural, qualquer propriedade fática. Independentemente de qual seja o conteúdo da teoria ética, ela padeceria desse problema se tivesse aquela característica. Como essa tese de Moore ainda está discutindo o conteúdo de uma doutrina específica ou os critérios que ela propõe, mas apenas a plausibilidade de éticas que façam aquele tipo de identificação, é uma tese de natureza metaética. Como sua proposta, Moore achava que não podemos deduzir um método preciso e exato o bastante que nos permitisse concluir com certeza quando alguma coisa é certa ou errada. Só o que temos nesse sentido são intuições. Intuições que não fornecem respostas definitivas. Daí porque a linha de pensamento de Moore é chamada normalmente de intuicionismo.
Uma das reações mais interessantes ao argumento de Moore foi a tentativa de alguns teóricos de atacar uma de suas premissas. O que esses teóricos tentaram propor foi que, ao contrário do que Moore pressupõe, alguém que defende uma doutrina como a do “bom é prazer” não está afirmando uma identidade entre bom e prazer. Essa pessoa não estaria tentando atribuir ao bom uma propriedade natural.
Na verdade, para esses teóricos, nenhuma juízo moral é uma tentativa de atribuição de propriedade alguma, nenhum juízo moral identifica uma coisa com outra. Juízos morais são, isso sim, enunciados que exprimem as preferências e as emoções de quem os está emitindo. Quando dizemos “tal coisa é boa”, estamos só querendo dizer “tal coisa me agrada”. E o único motivo pelo qual formulamos a frase na primeira forma em vez de na segunda é que assim ela parece menos pessoal e mais convincente do que se ela fosse dita em primeira pessoa.
Esses teóricos acreditavam, portanto, que, em se tratando de juízos morais, não se pode dizer que eles são verdadeiros nem falsos, porque eles são apenas afirmações de natureza pessoal e subjetiva. No campo da moralidade, não há conhecimento verdadeiro e certo, apenas pontos de vista que os sujeitos expressam pela linguagem moral. Como a forma tradicional de definir conhecimento consistem em dizer que ele é crença verdadeira e justificada, e para esses teóricos a moral nada tem de verdadeira, eles ficaram conhecidos como não-cognitivistas morais. Entre eles estão R.M. Hare, A. J. Ayer, C.L. Stevenson, e outros. Para manter a terminologia que usamos anteriormente, podemos dizer que os não-cognitivistas se encaixam dentro do grupo dos subjetivistas.
ÉTICA NORMATIVA
A ética normativa, por sua vez, é o campo que está mais próximo daquilo que entendemos por ética em nossas intuições cotidianas.  A ética normativa é aquela parte da filosofia moral preocupada em encontrar algum critério que nos permite diferenciar o certo e o errado, o bom e o ruim, o virtuoso do vicioso, o justo do injusto, etc., a depender da terminologia usada pela teoria ética de que estivermos falando. Nesse sentido, todas aquelas famosas doutrinas éticas que conhecemos -como a ética kantiana, o utilitarismo, a ética das virtudes, a ética da alteridade, dentre outras- são éticas normativas.
Cada uma delas, com seus pressupostos, origens históricas e métodos próprios, é uma tentativa de nos ensinar como devemos escolher nossas ações e tomar decisões moralmente relevantes. Toda ética normativa se caracteriza pela proposição de princípios gerais destinados a guiar o agir humano nas mais diversas situações da vida.
ÉTICA PRÁTICA
No entanto, existem algumas situações que envolvem problemas tão específicos e complexos que acabam adquirindo um status especial e se destacando das demais. Esse é o caso do aborto, da eutanásia, da clonagem, da manipulação genética em humanos, e vários outros. Por terem uma série de complicações que os tornam especiais, esses casos merecem um domínio próprio da ética, que é a chamada ética prática.
A ética prática advém da constatação de que questões como as citadas praticamente não podem ser resolvidas apenas com a aplicação de uma ética normativa previamente formulada, porque até mesmo os adeptos de uma mesma ética normativa poderia discordar fortemente de qual seria a coisa certa a fazer naquele contexto. Para dar apenas um exemplo, é perfeitamente possível que dois kantianos convictos tivessem posicionamentos opostos quanto à questão do suicídio assistido (pressupondo que a máxima da ação já esteja definida, tal como a ética kantiana exige). Um deles poderia se manter fiel àquilo que o próprio Kant colocou, e entender que o suicídio, ainda que assistido, implica utilizar a si mesmo como um meio para um fim, o que é inadmissível do ponto de vista kantiano. Já o outro poderia achar que esse raciocínio é problemático porque contém premissas de natureza questionáveis sobre para que servem as emoções humanas e como elas estão envolvidas no caso do caso do suicídio.
Assim, embora a ética prática não exclua completamente o uso de insights advindos de éticas normativas, ela considera que isso sempre será insuficiente para as questões morais especialmente controversas, de forma que, quando estivermos diante de alguma delas, precisamos sempre analisar também os fatos e as controvérsias particulares que ali se fazem presentes, como a incerteza sobre se o feto conta como humano no caso do aborto, a dúvida sobre a possibilidade de decidir sobre a vida e a morte de alguém em estado vegetativo no caso da eutanásia, o risco da eugenia no caso da manipulação genética, e assim por diante.