Ao
lado de História da Loucura e dos vários volumes que compõem História da
Sexualidade, Vigiar e Punir certamente está entre as obras importantes e mais
conhecidas de Michel Foucault. Ela se situa na chamada fase genealógica de
Foucault, que se distingue das outras duas fases (arqueológica e ética) por ter
como seu fio condutar o projeto de investigar as relações saber-poder: entender
como o surgimento de novas formas se saber propiciam o aparecimento de novas
formas de poder, e vice-versa. No caso de Vigiar e Punir, o objetivo se centra
em compreender a mudança fundamental que aconteceu nas formas de poder
predominantes na sociedade, na passagem da chamada Época Clássica (séc, XVII- até
em torno de meados do séc. XVIII) para a modernidade (final do século XVIII,
século XIX em diante). Em função da complexidade do estudo que Foucault
desenvolve, dividirei a exposição sobre esse tema em partes, por postagens
diferentes, para que a compreensão fique mais organizada e menos cansativa.
Partindo de uma análise sistemática entre a
transformação que ocorreu nas formas de punição clássicas e as modernas,
Foucault pretende desfazer a imagem do poder como algo exclusivo das grandes
instituições, ou como algo que se manifesta eminentemente proibindo,
reprimindo, impondo limites e impedimentos. Antes, diz Foucault, essa nova
faceta do poder, chamada de poder disciplinar, não pode ser percebida a menos
que adotemos uma nova visão do poder como algo difuso, multiforme e presente
até na mais inocente das relações sociais.
Na
Época Clássica, que coincide com o período mais forte do absolutismo monárquico
na Europa, especialmente na França, a forma paradigmática de punição que
existia era o chamado suplício. De uma forma geral, para os propósitos do texto
de Foucault, podemos entender o suplício como aquela formas de execução feita
em público, em que o condenado era submetido aos mais diversos tipos de tortura
até a morte. Podiam envolver afogamento, desmembramento, imolação, ser
arrastado por cavalos ao longo de toda a cidade, esquartejamento, etc. O
exemplo mais nítido que é dado em Vigiar e Punir a respeito do suplício é o de
Damiens, parricida que teve os membros arrancados por cavalos amarrados aos
seus braços e pernas.
Nesse
ponto é importante afastar um eventual erro de interpretação que se poderia
cometer. Por mais que o suplício, aos nossos olhos contemporâneos, pareça
altamente brutal e impiedoso (o que hoje podemos razoavelmente dizer que era),
ele nada tinha de caótico ou irracional. Pelo contrário, a sua execução era
prática altamente calculada e premeditada, de modo que podemos dizer, com certa
licença, que havia uma ciência do suplício. O objetivo dessa prática punitiva
era eminentemente o de produzir dor no corpo do condenado. Uma máquina de
sofrimento. Mas a quantidade, intensidade e duração da dor não eram aleatórios,
e sim previamente previstos de acordo com a sentença que fosse proferida. Não
se deve de forma alguma pensar que o suplício fosse uma parte dos ordálios do
direito germânico, ou que seus fundamentos sejam exclusivamente noções oriundas
da superstição Se o castigo havia sido determinado por perdurar três dias,
havia uma preocupação muito grande para que o condenado sofresse apenas o
bastante para se manter vivo durante os dois primeiros. Se o castigo devesse
ser executado primeiro com uma sessão de esfaqueamento e depois com o arranque
da pele, assim deveria ser procedido.
Aos
crimes considerados mais repugnantes e horrendos, como o caso do parricídio de
Damiens, reservavam-se os castigos mais dolorosos e prolongados. Cabia ao
carrasco empregar as técnicas e os procedimentos corretos para que a dor e o
sofrimento aplicados sobre o condenado não fosse nem superior nem inferior
àquilo que a ele havia sido juridicamente determinado. Tanto prova que, quando
os carrascos faziam com que o condenado morresse antes da hora, ou não
conseguissem finalizá-lo na forma e no tempo estipulado (como aconteceu com o
Damiens, que precisou ter seus membros talhados para que os cavalos
conseguissem arrancá-los) o carrasco era passível de sofrer punições.
Por
fim, o outro aspecto importante da prática do suplício é que ela tomava sempre
a forma de um espetáculo, uma exibição institucional pública. Quando alguém
deveria ser supliciado, o povo era convocado a comparecer à praça pública e
presenciar os últimos momento daquele criminoso, passando junto com ele cada
momento de sua dor. A pessoa e o crime que ela havia cometido, bem como o ciclo
de castigos a serem aplicados, era anunciado à população para que todos
soubessem o que estava acontecendo e por que estava acontecendo.
O
que está por trás do suplício? Por que ele é o mecanismo positivo mais marcante
desse período? Por que ele se preocupa tanto com provocar dor e toma a forma de
um espetáculo? Ao se debruçar sobre essas questões, Foucault é magistralmente
didático em explicar que o suplício tem dois sentido principais, um sentido
religioso e um sentido político.
O
sentido político tem diretamente a ver com a forma de organização que as
sociedades clássicas adotavam, com destaque para o absolutismo. Nesses esquemas
de governo, o soberano era por excelência o detentor do controle de tudo e de
todos, a fonte da obrigatoriedade das normas. O Estado e sua pessoa, como bem
expressou Luís XIV, se confundem. Segue-se disso que a lei não era apenas uma
regra a ser cumprida. Antes de tudo, ela é uma emanação, uma encarnação e um
produto da vontade do soberano. Quem atenta contra lei, com a prática de crimes,
ofende também o rei. Ao cometer um crime, uma pessoa demonstra que não tem pelo
seu senhor o respeito e o amor devidos. Essa violação é a tal ponto inaceitável
que a única forma de corrigi-la é fazendo o criminoso sofrer. Mais do que isso,
é preciso que todos o vejam para que todos estejam sempre lembrados de quem
realmente dita as ordens, de quem realmente está no comando e de quem em última
instância tem nas mãos o destino de cada um. O suplício precisa ser doloroso e
público para que não o súdito desviante seja colocado novamente no seu lugar de
súdito, mas também para que todos tenham em primeira mão uma experiência do que
acontece quando se desafia o soberano.
Mas
o suplício não é um mecanismo de restituir o respeito pela lei e pelo
governante. O sentido religioso tem a ver com a relação estrita que então havia
entre Estado e Igreja, entre sistema político e prática religiosa. O crime não
era apenas um atentado contra o soberano, mas também um pecado, isto é, um
atentado contra Deus. Sendo também uma ofensa contra o divino, nada mais
imperioso que esse débito seja pago pelo sofrimento de quem o cometeu. Se
aquele que comete o crime acha que assim age justamente, é a dor quem irá lhe
ensinar a natureza pecaminosa daquilo que fez. A prática delitiva mancha a alma
do criminoso. Para que ele volte a ter a mais remota esperança de alcançar as
graças do paraíso, é preciso que seus pecados sejam devidamente expurgados.
Isso
explica boa parte de seus aspectos processuais. Nas etapas de julgamento que
poderiam levar ao suplício, o condenado poderia já estar condenado antes mesmo
que a decisão final fosse tomada. Ao contrário do processo penal que hoje
conhecemos, o julgamento de uma pessoa não era concluído para que, só depois,
na hipótese de haver uma sentença condenatória, a sanção fosse aplicada. Na
verdade, cada prova que fosse encontrada no decorrer da investigação já
ensejava que sobre o investigado fosse aplicado um castigo, a depender da força
e do caráter definitivo que essa prova pudesse ter, bem como da capacidade do investigado
de contestá-la.
Assim,
a menor evidência minimamente razoável já poderia significar razão para que uma
sanção de intensidade correspondente fosse aplicada. Por exemplo, se for
encontrada uma testemunha que viu um acusado de assassinato deixar o local do
crime às pressas momentos antes de o cadáver ser achado, um castigo físico já
seria possível, mesmo que ainda se considerasse necessário mais averiguações
para proceder ao suplício propriamente dito.
A
mesma lógica valeria para o uso da tortura, que nesse paradigma punitivo era ao
mesmo tempo uma forma de castigo e um meio de obtenção de provas. Isso pode
parecer, a nossos olhos acostumados ao sistema acusatório, algo paradoxal. Mas,
novamente, faz todo sentido quando vemos do ponto de vista predominante até
então. Se as provas contra o acusado já haviam alcançado determinado patamar,
nada impediria que fosse usada tortura como forma de punição sobre aquilo que
já havia sido descoberto a seu respeito, ao mesmo tempo que essa prática de
tortura faria com que ele confessasse novos fatos até então desconhecidos.
Com
o que já sabemos até aqui a partir dessas explicações, podemos dizer que o suplício
principalmente, mas também as outras modalidades punitivas menores, assumem o
caráter eminentemente de uma prestação de contas. Mas uma prestação com quem?
Pelo que vimos, é uma prestação para com aquele de cuja vontade emanam as leis
(o soberano) e aquele a quem o criminoso deve sua existência (Deus). E essa
prestação de contas se dá justamente como uma retribuição em função das ofensas
que haviam sido praticadas, dos erros que haviam sido cometidas, das regras que
haviam sido quebradas.
Dito
isso, a análise das formas de poder predominantes na Época Clássica nos mostra
que todas elas têm em comum o fato de serem poder de reinar. São poder em que
está em jogo a definição daquilo que é certo ou errado, daquilo que é permitido
ou proibido. Essas definições de lícito e ilícito advém daquilo que é
determinado pelo soberano, o direito de morte pela violação é pode ele
exercido. Esse tipo de poder, que envolve (1) a demarcação de padrões pela lei
e (2) a aplicação de punições sobre quem os violar, é o que Foucault chama de
poder soberano.
A
tese que Foucault pretende sustentar, e que é central para o argumento de
Vigiar e Punir é que, na passagem para a modernidade, o pode soberano não
exatamente desapareceu, mas sim não tem mais a mesma importância que tivera na
época clássica. Isso fica claro quando se percebe o quase que total sumiço do
suplício e o sucesso da prisão enquanto dispositivo punitivo oficial mais
importante. Através do ciclo de transformações, reviravoltas, reformas e
revoluções que levaram à edificação da sociedade burguesa, o poder soberano
cedeu seu lugar a uma outra forma, muito mais sutil, discreta e difícil de
perceber, mas ao mesmo tempo extremamente penetrante, chamada poder
disciplinar. Esse será o assunto de que trataremos em breve.