segunda-feira, 18 de março de 2019

Reconstruindo o Pensamento de Rawls (II) "Distributive Justice: Some Addenda" (1968)


Esta postagem dá continuidade ao que foi dito em uma ocasião anterior a respeito de um outro velho artigo de Rawls, chamado “Justice as Fairness” (1958). O objetivo aqui é compreender de que forma a teoria da justiça rawlsiana foi sendo construída ao longo dos anos até culminar com sua versão acabada em “Uma Teoria da Justiça” (1971). O texto de que trata esta postagem é um artigo de Rawls que tem por nome “Distributive Justice: Some Addenda”, publicado em 1968, em um periódico da faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame. O artigo leva adiante uma discussão levantada em um outro, que tinha o mesmo nome, porém sem o subtítulo, ao qual até agora ainda não pude ter acesso.
Recapitulemos brevemente o que Rawls havia dito no texto de 1958. Ali ele havia lançado a público sua tentativa de formular uma nova concepção de justiça com um pano de fundo contratualista. Já aparecia um esboço do que viriam a se tornar os dois princípios de justiça, um prenúncio do construtivismo kantiano que viria a ser utilizado como metodologia futuramente, além de uma argumentação sobre o porquê de essa concepção de justiça ser preferível ao utilitarismo. A ideia central era mostrar como o conceito de justiça está centrado na noção de equidade.
No texto que é objeto desta postagem, Rawls pretende tratar mais detidamente dos dois princípios que havia formulado. Em 1958, eles haviam sido colocados da seguinte maneira: (1) toda pessoa tem igual direito à mais ampla liberdade que seja compatível com uma liberdade semelhante para todos; e (2) desigualdades são arbitrárias a menos que seja razoável esperar que elas funcionem para o proveito de todos e que estejam ligadas a cargos e posições igualmente abertos a todos.
Desta vez, Rawls os apresenta de uma forma ligeiramente modificada, mas já contendo novidades relevantes. Eis como eles aparecem: (1) toda pessoa tem igual direito à mais ampla liberdade básica que seja compatível com um liberdade semelhante para os outros; e (2) desigualdades socioeconômicas devem ser dispostas de forma que tanto (a) possa-se esperar razoavelmente que elas sejam para o proveito de todos e (b) que elas advenham de cargos e posições igualmente abertos a todos.
Vê-se, pois, que já se fazem presentes a ideia de liberdade básica, bem como a necessidade de uma distinção dentro do segundo princípio. O conceito de liberdade básica, como um tipo de liberdade que não se confunde com outras liberdades quaisquer, ganha maior importância quando considerarmos o modo como se chega a ele através da posição original, o que ainda não é exatamente o foco de Rawls. A divisão dentro do segundo princípio já é um prenúncio daquilo que viria a acontecer em Uma Teoria da Justiça, quando Rawls introduzirá a questão da prioridade lexical entre os princípios, fazendo com que sua teoria se torne superior às concorrentes intuicionistas.
Mas aquilo que Rawls realmente tem em mente com esse texto é discutir uma certa questão em torno do segundo princípio. Após terem sido levadas a público, algumas expressões que aparecem nesse princípio foram consideradas como ambíguas de uma forma muito problemática. São as expressões “para o proveito de todos” e “igualmente abertos a todos”. Cada uma das duas, segundo os críticos de Rawls, pode ser lida de duas maneiras significativamente diferentes. De tal modo que, a depender de qual interpretação escolhemos para elas, há quatro possibilidades distintas de se entender o segundo princípio. Significa dizer que a proposta de Rawls, assim como está colocada, pode significar até quatro concepções diferentes de justiça,
O que Rawls pretende fazer, portanto, é examinar cada uma das quatro possibilidades para concluir que apenas uma delas seria aceitável como critério de justiça distributiva, a partir do recurso da posição original, que agora já começa a se parecer com aquele que nos é familiar. Os princípios de justiça serão aqueles que os indivíduos escolheram a partir de uma condição em que desconhecem sua própria identidade e sua posição na sociedade (véu de ignorância). Dessa forma, afasta-se a influência que nossas condições atuais poderiam ter na escolha que faríamos. A ideia é que, nesta condição, os princípios a ser escolhidos por todos seriam os dois apresentados por Rawls e citados anteriormente, e não o princípio de utilidade (utilitarismo). Será esta mesma posição original que irá nos dizer qual a forma adequada de se atribuir sentido às duas partes do segundo princípio.
Para determinar qual a forma adequada de se fazer justiça distributiva, precisamos antes saber o que será distribuído. Precisamos saber o que as pessoas desejam obter, quais suas preferências e quais suas expectativas em relação a um sistema de distribuição. Sem isso, não seríamos capazes de discernir quando um indivíduo está em uma posição mais ou menos proveitosa. Neste ponto, Rawls introduz o conceito de bens primários. Como é impossível (até por causa do modo como é formulada a posição original) saber o que especificamente cada pessoa deseja, é mais apropriado que a distribuição seja pensada em termos daquilo que todo e qualquer indivíduo desejaria. Isso são os bens primários: aqueles que bens que todo indivíduo egoísta racional quereria para si, porque eles são necessários para a realização do seu projeto de vida pessoal, qualquer que ele seja. Dentre os bens primários estão renda, riqueza, liberdade, oportunidades, saúdes, autorrespeito, dentre outros. Por uma questão de simplicidade, Rawls propõe que argumentação que ele irá desenvolver em seguida seja pensada só em termos de renda e riqueza, já que  a distribuição desses bens é um pouco mais fácil e intuitiva de se imaginar.
Vejamos então de que possibilidades de interpretação estamos falando. Reproduzirei aqui, por motivos de didática, o mesmo esquema colocado por Rawls no artigo, e que volta a aparecer em Uma Teoria da Justiça, com algumas diferenças adicionais. A primeira linha da tabela apresenta as duas possibilidades de interpretação da primeira parte do segundo princípio, enquanto que a primeira coluna apresenta as da segunda parte do segundo princípio. A cada combinação dois a dois, obtém-se uma concepção de justiça diferente, que aparecem conforme está colocado nas outras casas. Rawls terá uma argumentação para excluir três dessas quatro concepções e uma argumentação para favorecer a concepção remanescente, que será a da igualdade democrática.



Antes de começar a mostrar como Rawls caracteriza e examina cada uma dessas quatro concepções, acho importante deixar claro o que significa essa “otimalidade de Pareto”, que consta como uma das possibilidades para a primeira parte do primeiro princípio. Expor exaustivamente essa noção excederia os propósitos de uma postagem como esta, então irie me limitar a dizer apenas o indispensável para entender a mensagem que Rawls tentará nos transmitir.
O chamado ótimo (ou otimalidade) de Pareto é um conceito desenvolvido pelo economista italiano Vilfredo Pareto, para descrever situações de eficiência em termos econômicos. Em uma situação prática, estamos diante do ótimo de Pareto toda vez que não for possível melhorar a situação de alguém, sem que para isso se prejudique a situação de outra pessoa. Em se tratando de distribuição de bens e riqueza, o ótimo de Pareto pode ser compreendido da seguinte forma: é toda aquela situação em que a distribuição é feita de tal maneira que é impossível aumentar os bens e a riqueza de alguém sem diminuir os bens e a riqueza de outrem. É, portanto, uma situação limite em termos de distribuição, no sentido de que tentar ir além dela seria privar alguém de alguma parte do que já tem.
Importante dizer que o ótimo de Pareto não é necessariamente a situação em que todos têm o mesmo nível de bens e riqueza. Ao contrário, pode-se fazer uma distribuição que atende ao critério de maximização definido e absolutamente desigual. Suponhamos um total de R$ que precisam ser distribuídos entre duas pessoas. Se dermos R$ 30,00 a uma e R$ 40,00 a outra, ainda não chegamos ao ponto ótimo, porque ainda é possível aumentar a parte de ambos. Se ficassem com R$ 40,00 e R$ 60,00, dessa vez sim estaríamos diante de um ótimo de Pareto, já que seria impossível que um tivesse sua quantia aumentada sem que a do outro fosse diminuída. Vê-se, assim, que uma situação de igualdade para os dois R$ 50,00 seria um ótimo de Pareto assim como uma situação de máxima diferença como R$ 1,00 para um e R$ 99,00 para o outro, e todas as outras possibilidades de se fazer essa distribuição.
Vejamos então as concepções da tabela. A primeira é a liberdade natural. Nessa concepção, como fica claro, uma distribuição é justa quando ela se dá produzindo um estado de coisas que seja um ótimo de Pareto, definido nos termos que expliquei acima. Este é o modo como o sistema de liberdade natural entende a primeira parte do primeiro princípio (“proveito de todos”). No entanto, como já foi dito, não há apenas uma distribuição que configura o ótimo de Pareto. Pelo contrário, há uma infinidade de formas de distribuir bens e riquezas de modo que não se possa dar mais a um sem tirar do outro. Dentre essas possibilidades, há inclusive aquelas em que um indivíduo fique com tudo e os outros sem nada. Como então dizer qual dessas possibilidades é a distribuição justa?
Aqui entra a interpretação para a segunda parte do segundo princípio. A distribuição de bens e riquezas, além de ter de ser um ótimo de Pareto, precisa também ser o resultado de carreiras as quais os indivíduos acessam em função dos seus talentos pessoais. Ser “aberto a todos”, nesse caso significa que ninguém é proibido ou impedido de concorrer. Isto é, as desigualdades que existem são o resultado das renumerações de diferentes cargos que existem na sociedade, e estes cargos são ocupados pelos indivíduos através de uma disputa em que são vencedores aqueles que apresentam mais talentos. O sistema de liberdade natural, portanto, pressupõe um contexto de livre mercado.
O problema com essa concepção, diz Rawls, é que ela não apresenta nenhum elemento que aponte para a necessidade de uma redistribuição de renda e riqueza. Significa dizer que o ponto de partida para a disputa que os indivíduos travarão pelos cargos são as condições sociais (o grau de renda, riqueza, incentivos e oportunidades) que cada um tem na sua condição atual. Em sociedades como as atuais, marcadas pela desigualdade, isso significaria que pessoas extremamente abastadas precisariam concorrer com pessoas extremamente desprovidas. A consequência é que o sucesso de cada um em alcançar algum dos cargos dependeria da sua atuação circunstância social e dos talentos naturais que cada um possui.
Ocorre que ninguém escolheu ter a posição social que tem, assim como ninguém tem mérito por possuir os talentos que possui. Fazer a distribuição depender desses fatores seria fazer a distribuição se basear em fatos que são puramente contingentes e aleatórios, que ninguém é capaz de controlar ou decidir. Ter mais riqueza ou mais talentos é um mero acaso, um mero fortuito. Em última instância, o sistema de liberdade natural estaria baseado em critérios que são moralmente arbitrários. Se nos colocarmos na posição original, o sistema de liberdade natural seria claramente rejeitado. Se não quem sou, e existe a possibilidade de eu ser um dos menos favorecidos, certamente esse sistema me seria desfavorável, já que eu poderia ter a má sorte de ser um dos que têm poucos talentos e recursos escassos.
A chamada igualdade liberal seria a concepção que mantém o ótimo de Pareto como interpretação correta da primeira parte do segundo princípio, mas tem um entendimento diferente a respeito da segunda parte. Enquanto a liberdade natural estabelecia que a distribuição legítima advinha de uma livre concorrência entre as pessoas sem nenhuma alteração do status quo, a igualdade liberal acredita que seja preciso fazer ajustes, de modo que todos possam disputar em pé de igualdade. Em outras palavras, as desigualdades aceitáveis ainda são aquelas que resultam de cargos e posições obtidos por meio de competição, mas essa competição precisa acontecer de uma maneira que nenhuma pessoa tenha vantagem sobre a outra no início. É preciso, então, mecanismos para garantir que todos sejam colocados em um mesmo patamar, para que só depois as pessoas possam concorrer pelos cargos de maior prestígio e remuneração.
Em comparação com a liberdade natural, que continha apenas igualdade formal, o sistema da igualdade liberal se preocupa também com a igualdade material, com a eliminação das posições de superioridade de que os indivíduos se originam. No entanto, diz Rawls, essa concepção ainda tem o problema de fazer a distribuição depender de um fato moralmente arbitrário que são os talentos individuais. Talento e habilidade excepcional (como força, inteligência, etc.) são coisas que se tem por acaso, nunca por merecimento. Menos mérito ainda existe no fato de se viver em uma sociedade que valorize determinados talentos e habilidades em vez de outros. Mesmo em uma disputa que tivesse um ponto de partida igualitário, alguns indivíduos estariam em desvantagem pela simples casualidade de não terem nascido com nenhuma capacidade que a sociedade valorize. Novamente, na posição original, eu não poderia aceitar essa concepção. Isso porque eu poderia ser uma das pessoas que nasceu sem talentos ou que nasceu com talentos que a sociedade despreza. Nas duas situações, estaria em grave desvantagem.
A próxima concepção é a da aristocracia natural. A segunda parte do segundo princípio (“igualmente abertos a todos”) voltará a ser interpretada como era na liberdade natural: os cargos e posições de diferentes socioeconomicamente desiguais serão preenchidos pelos indivíduos mais dotados dos talentos e habilidades requisitadas, em um processo de livre concorrência. Novamente, não há aqui mecanismos institucionais de correção das desigualdades, de modo que a capacidade de competição de cada um é fortemente influenciada pela posição social já ocupada por cada pessoa. A diferença importante que a aristocracia natural apresenta é a interpretação que se dá à primeira parte do segundo princípio (“para o proveito de todos”).
Na aristocracia natural, essa parte deve ser entendida como um princípio da diferença. Significa o seguinte: as desigualdades socioeconômicas só serão consideradas justas se elas proporcionarem algum tipo de benefício para aqueles que são menos favorecidos. Pensemos no caso de alguém que apresente habilidades excepcionais para pesquisa científica na área médica em relação aos demais profissionais da medicina. No caso dessa pessoa, seria justo que ela recebesse mais financiamento e mais recursos para suas atividades. Isso porque todos teriam apenas a ganhar com suas descobertas e inovações de novos medicamentos, novas formas de tratamento, etc.
O que o princípio da diferença exige, nesse sentido, é que nenhum tipo de desigualdade seja proveitosa de forma unilateral. As posições desiguais devem beneficiar não só os que as estão ocupando, como também aqueles que não tiveram a possibilidade de alcança-las. Rawls acredita que essa versão do segundo princípio se justificaria a partir da posição original. Com efeito, eu não poderia aceitar que o outro ficasse melhor colocado dentro da sociedade só pelo fato de ter nascido com esta ou aquela habilidade, amenos que eu soubesse que essa posição mais avantajada seria de alguma forma benéfica para mim.
O sistema de aristocracia natural merece esse nome porque justamente os indivíduos que ocuparão as posições mais levadas são aqueles que já tiverem sido favorecidos por ter uma posição melhor antes do processo de distribuição e por terem sido agraciados com talentos naturais. E esse é o motivo pelo qual Rawls considera que ele deva ser rejeitado. Não sabendo quem sou o que tenho, eu ainda desejaria ter alguma possibilidade de alcançar uma posição social mais elevada, em vez de deixar que isso seja influenciado diretamente por contingenciais sociais como o nascimento (ainda que, na aristocracia natural, eu tenha a certeza de ser beneficiado pelas desigualdades se fosse alguém menos favorecido).
Rejeitadas três das quatro concepções de justiça apresentadas, a única que restou, e que Rawls considera aceitável para um egoísta racional na posição original, seria a igualdade democrática. Nessa concepção, a primeira parte do primeiro princípio significa igualdade de oportunidades, enquanto que a segunda parte é entendida como um princípio da diferença, nos termos que defini há pouco. Por isso, futuramente, o segundo princípio da teoria da justiça rawlsiana ficaria conhecido exatamente como Princípio da Diferença. E é nele que se encontram alguns dos principais pontos de controvérsia levantados pelo debate que se seguiu a 1971
O que temos agora, é uma forma de justiça distributiva com as seguintes feições. Em primeiro lugar, todos os indivíduos gozam das mesmas liberdades básicas (expressão, pensamento, reunião, associação, etc.) sem que jamais possam ser privados delas (primeiro princípio). Nesse sistema, é possível e aceitável que haja desigualdades socioeconômicas, mas apenas se elas atenderem a certos requisitos. Só serão admitidas aquelas desigualdades sejam benéficas inclusive para aqueles que estão nas piores posições. Além disso, essas desigualdades devem ser sempre originadas de cargos e posições sociais aos quais todos têm as mesmas oportunidades de ascender, ou seja, as mesmas condições de disputar.
Rawls acredita que, por mais que o segundo princípio assim formulado possa parecer estranho ou indesejável, ele faz muito sentido do ponto de vista racional. Se a sociedade pode ser adequadamente concebida como um esquema de cooperação- no qual as pessoas colaboram entre si para que possam perseguir seus próprios objetivos-então o princípio da diferença para de fato representar um acordo razoável de ser firmado entre os indivíduos. Ninguém que goze de uma boa posição social e de grandes talentos poderia esperar que uma pessoa desprovida e sem talentos aceitasse firmar um pacto social, já que ela continuaria em seu lugar social inferior. A não ser que o menos favorecido já soubesse de antemão que teria algo a ganhar com as vantagens que o outro possui.
O princípio da diferença pare atraente, também, por ser capaz de pôr em prática o ideal ético kantiano de nunca tratar a humanidade como um mero meio, mas antes sempre como um fim em si mesmo. Isso porque, como o segundo princípio seria a escolha feita na posição original, aplica-lo na prática seria tratar as pessoas de acordo com aquilo que elas mesmas escolheriam para si, de tal modo que a distribuição não seria apenas uma forma instrumental de beneficiar uns em detrimento de outros.

segunda-feira, 4 de março de 2019

A Poiesis Reduzida à Práxis: Agamben e o Homem sem Conteúdo


O Homem sem Conteúdo (1970) é o primeiro livro publicado por Giorgio Agamben, filósofo italiano da contemporaneidade. Nele, Agamben, pretende nos mostrar, a partir de insights contidos em Heidegger, Nietzsche, Arendt e Aristóteles, como o processo de entrada da obra de arte na dimensão estética nos revela algo de relevante sobre a própria condição do ser humano na era moderna.
Giorgio Agamben (1942-)


Composta com capítulos em forma de ensaio, o livro, como o restante da obra posterior de Agamben, é riquíssimo em repertório cultural sobre pintura, escultura, poesia, música e literatura, além de todo o arcabouço filosófico mobilizado pelo autor. A postagem de hoje é dedicada a explicar alguns pontos assinalados por Agamben ao longo do livro, que, não obstante serem relevantes por si mesmos, funcionam de certa forma como prenúncios daquilo que ele viria a desenvolver em seus escritos posteriores. Está longe da minha pretensão e do meu conhecimento dominar por completo todos os variados saberes que Agamben utiliza para sustentar suas conclusões. Meu objetivo, se cumprido com êxito, é apenas o de lançar sobre o diagnóstico que está sendo traçado, a partir da compreensão que tive com a primeira leitura.
Agamben começa com a citação de uma passagem de Nietzsche, contida na terceira dissertação da Genealogia da Moral, em que o filósofo do além-homem critica a abordagem sobre o gosto desenvolvida por Kant na Crítica do Juízo. Como se sabe, Kant teria ali definido o belo como aquilo que apraz de forma desinteressada, isto é, aquilo que nos é aprazível sem que julguemos a coisa em questão com base em nenhum tipo de propósito, expectativa pré-definida, conceito, etc. Isso, disse Nietzsche, fez com que o domínio da estética migrasse totalmente para o expectador. Em outras palavras, agora é no expectador que encontramos a resposta sobre se uma obra de arte tem ou não tem valor estético, e não mais em quem a produziu ou com que finalidade, ou segundo que ideais. Com essa constatação, Nietzsche parece derivar a urgência de uma arte “para artistas”, uma arte “interessada”, uma arte que para ele desempenharia um papel relevante de valorização da vida.
Agamben, por sua vez, acha que essa discussão filosófica sobre o estatuto estético da obra, seja com foco sobre o expectador, seja com o foco sobre o artista, reflete um processo histórico que, na época de Kant e Nietzsche, já estava em um estágio avançado. Esse processo é o que Agamben chama de a entrada da obra de arte na dimensão estética.
Mas o significa exatamente dizer que a obra de arte “entrou para dimensão estética” ou mesmo “vive a sua época estética”? É importante que fique claro que, para Agamben, esse processo tem a ver com uma mudança, operada na idade moderna, sobre o papel e o lugar da arte na vida humana. Uma mudança em que antes, a obra de arte era concebida de uma certa maneira e tinha um certo valor, e depois passa a ser vista pela sociedade de uma outra forma, ganhando um valor diferente daquele que possuíra.
Com efeito, dentro da vida social pré-moderna, a arte não era simplesmente mais uma das esferas da criatividade e da produção humana, ao lado da ciência, da filosofia e outras. A arte desempenhava um papel central na formação do caráter e da personalidade das pessoas. Era uma das responsáveis pela construção e pela manutenção da identidade individual e coletiva, dos valores e das visões de mundo professadas pela comunidade. Isso equivale a dizer que a arte enquanto tal só existia e tinha algum sentido dentro de sua relação com a moral e com a religião. Ela ao mesmo tempo refletia valores morais e religiosos, bem como funcionava com uma maneira de que esses valores se perpetuassem.
Assim, esculturas, pinturas, corais, músicas em ambiente público, tudo isso era visto como tendo um propósito para a construção do tipo de “eu”, do tipo de pessoa e cidadão, com as virtudes que as sociedades, primeiro pagãs e depois cristãs, valorizavam. Fazer arte não podia ser jamais um capricho ou a realização de desígnios meramente pessoais de quem está fazendo, do contrário dificilmente seria reconhecido como arte genuína. Antes, ser artista era, antes de tudo, fazer com que seu trabalho desse voz e substância aos ideais que norteavam a comunidade: seus deuses, suas tradições, sua história, e assim por diante.
Exemplo notável dessa concepção de arte é a que se encontra em Platão. Na República, é famosa a passagem em que Platão afirma que os poetas deveriam ser expulsos da pólis, dado que o efeito da poesia sobre a alma humana pode ser nefasto, desequilibrando os sentimentos, enfraquecendo a razão, fazendo o homem tender à desmesura e à passionalidade.
Na Idade Média não é muito diferente. O belo e o sublime são compreendidos em comparação com o belo transcendental, de origem divina. A arte, enquanto criação humana, é para os homens medievais também uma das formas de ascese e elevação que nos levam, em última instância, à comunhão com Deus. O belo, tal como fora no mundo antigo, continua inseparável do bom e do justo. Aquilo que é belo, verdadeiramente belo artístico, é sempre também algo que nos acrescenta e nos orienta no caminho do bem.
Agamben acredita que, a partir da Idade Moderna, a civilização ocidental passa por um ponto de inflexão no que diz respeito à relação entre a arte e o ser humano. É a época do surgimento do chamado homem de gosto, ou homem de bom gosto. O homem de bom gosto é aquele capaz de apreciar e reconhecer uma boa obra de arte, mas ele mesmo carece das capacidades necessárias para produzi-la. Para ele, que tem um ponto de vista de mero expectador passivo, arte é sinônimo de fruição. Uma obra de arte é algo que nos provoca prazer e nos proporciona um tipo especial de satisfação ao ser admirada.
Essa mudança Agamben tenta representar alegoricamente fazendo uma comparação com a chamada câmara de maravilhas (Wundekammer). A Wunderkammer era um cômodo em que príncipes e eruditos abastados costumavam guardar diversas coisas consideradas como tendo valor (não necessariamente econômico): peças de vestuário, relíquias, objetos antigos, pedras preciosas e obras de arte. O que Agamben vê de interessante nessa imagem da Wunderkammer é que nela a arte aparece ao lado de outros objetos não artísticos, de objetos de certa forma banais e comuns, ou pelo menos que parecem sê-lo comparados à arte, do ponto de vista moderno.
Oposto à Wunderkammer está o museu. Se a Wunderkammer era um ambiente em que, de forma simbólica, a arte convivia lado a lado com outras coisas mais comuns, o museu é o espaço reservado para servir de “residência” às obras de arte por excelência. O fato de haver um local específico para a obra de arte, que é o espaço do museu, possui uma importância simbólica. Significa que agora a obra de arte é vista como uma coisa que não se confunde com outros objetos como os que havia na câmara de maravilhas. Significa que arte ganhou um estatuto especial, em virtude do qual ela precisa ser separada, retirada do ambiente da vida cotidiana e habitual, para ser realocada a um novo local que lhe é próprio.
Agora, arte serve para aproveitamento. Arte é o que nos provoca satisfação e prazer, mexe com as nossas emoções e transforma nosso estado de espírito. A arte nos desloca de nossa consciência cotidiana, apresentando-se para nós como algo diferente, inusitado, original, impensado. A arte é disposta no museu para que possa ser observada e contemplada por aqueles que ali passam, produzindo excitação e gozo estético. O artista, por sua vez, já não é mais alguém incumbido de levar a cabo uma certa tarefa específica. Ele já não é mais visto como alguém que possui responsabilidade na reprodução simbólica dos valores da comunidade. A produção estética se baseia agora tão somente no princípio criador. O artista, sem estar atado a alguma obrigação social, produz agora como lhe apraz. Torna-se, assim, um homem sem conteúdo.
Até agora dissemos o que Agamben vê de transformação no campo da arte. Mas qual a importância disso. Agamben acredita que essa mudança da obra de arte, essa entrada na dimensão estética, é reflexo de uma mudança no próprio fazer e agir humano na modernidade.
Para deixar mais claro o que está querendo dizer, Agamben se vale de termos gregos. No pensamento grego (e, para os propósitos de Agamben, sobretudo o aristotélico), existem as coisas que têm na natureza mesmo o seu princípio (ἀρχή), e aquelas cujo princípio é dado pelo ser humano. Isto é, existem as coisas que existem, se desenvolvem e reproduzem naturalmente, e há coisas que só passam a existir pelas mãos do ser humano, pelo uso da técnica (τέχνη). A produção de algo novo por obra do ser humano é a chamada poiésis (poihsiV). Poiésis é quando trazemos à existência algo que antes não existia, tampouco poderia ter existido se não fosse a intervenção humana na natureza. Poiésis é uma atividade que resulta na produção de algo, uma atividade que tem um fim diferente de seu começo. Assim, utensílios domésticos, artigos de decoração, armas, construtos arquitetônicos e obras de arte são todos, nesse sentido, poiéticos, isto é, derivados da poiésis- já que sua forma não existia antes, e sim lhes foi introduzida pela mão do ser humano.
Ao lado da poiésis, que é uma atividade essencialmente criativa, existe uma outra dimensão do agir humano que é práxis (πράξις). A diferença entre uma e outra é que a práxis não envolve a produção de algo novo. É um agir que consiste apenas no agir. Não cria, não modifica o mundo de forma adicionar um novo ser. A práxis tem a ver com aquelas atividades que são movimentadas pela vontade. Atos como o de comer, de prover sua própria subsistência, de satisfazer as necessidades vitais, de deslocar-se. Enfim, tudo o que não tem a ver com produção ou criação de algo novo pode ser entendido como práxis. O fato de na poiésis haver a geração de coisa nova fazia com que Aristóteles considerasse a práxis inferior à poiésis. No âmbito da poiésis, o ser humano expressa suas potencialidades que mais o tornam especial e que mais o diferenciam dos outros seres. No âmbito da práxis, o ser humano está mais próximo daquilo que o assemelha aos outros animais e mais próximo de suas necessidades básicas, consideradas como baixas e inferiores.
Agamben quer provar que, com a entrada da arte na sua dimensão estética, a obra de arte de pertencer a poiésis e migrou para a práxis.
Com efeito, modernidade, passa a existir uma distinção que antes não faria sentido para o modo grego de ver o mundo. Coisas como um vaso de armazenamento e uma pintura de uma tela, que no mundo grego estariam unidos no campo da poiésis, para nós modernos são substancialmente diferentes. O vaso de armazenamento possui um tipo de valor que a tela não tem e vice-versa.
O vaso tem valor na medida em que ele pode ser usado para um determinado propósito ou para a satisfação de determinada necessidade humana. E só tem valor enquanto pode ser usado para tal. Qualquer outro semelhante capaz de cumprir a mesma função/finalidade vale da mesma forma. A obra de arte, a seu turno, se define pelo seu caráter único, irrepetível, particular. Ela é algo que foi feito em um momento, em certas circunstâncias, e que jamais virão a ocorrer de novo. Em suma, o objeto comum se define pela sua reprodutibilidade, ao passo que a obra de arte se define pela sua originalidade. Se para o grego ambos teriam em comum o fato de serem produtos da técnica, para o moderno apenas o primeiro seria produto da técnica. Isso porque a concepção moderna de técnica assume uma nova conotação, muito mais ligada à produção em série fabril e industrial do que ao poder criativo do ser humano.
Ao mesmo tempo, já que a arte passou a ser um suporte para a produção de gozo e prazer, ela parece estar definitivamente se distanciando daquilo que o grego entendia como poiésis. Se a obra de arte agora é algo que serve ao ser humano para se proporcionar um certo estado de espírito e uma certa forma de excitação, então parece que sua essência já não está mais no fato de ser algo novo, criado. Parece, isso sim, que sua essência e seu valor estão muito mais na sua capacidade de provocar esse estado de espírito e essa excitação, na sua capacidade de gerar gozo e prazer estético tantas vezes quantas nos coloquemos diante dela.
Ora, sendo assim, a obra de arte moderna está cada vez mais próxima de um utensílio do que de um ente de origem poiética, compreendido da forma da Antiguidade. O utensílio serve para a realização ou facilitação de algum tipo de tarefa. A obra de arte serve para proporcionar gozo. Ela já não é obra de arte tanto pelo seu caráter de ter uma essência não criada pela natureza, mas sim porque serve a uma necessidade humana. Em outras palavras, podemos dizer que já não é mais à poiésis que arte pertence, mas sim à práxis. Se isso for verdade, diz Agamben, é porque a poiésis enquanto tal está em vias de desaparecer ou mesmo já desapareceu. O que aconteceu ao longo desse processo, segundo Agamben, é que a poiésis foi cada vez mais perdendo espaço, até ser reduzida à práxis.
As conclusões a que isso nos leva, segundo Agamben, são várias, passando inclusive pela relação entre o passado e o futuro do ponto de vista da humanidade. Mas a ideia de Agamben que acho mais interessante a esse respeito é que essa redução da poiésis à práxis tem a nos dizer sobre a condição humana na época atual. Se só o que há é apenas práxis ou pelo menos um forte predomínio dela, e a práxis está mais ligada a nossas atividades vitais, é que boa parte da existência humana no contexto moderno gira em torno do seu aspecto biológico. Gira em torno de suas necessidades mais básicas. Gira em torno da vida humana como simples vida vivente, vida que nasce, se reproduz e morre. Acredito que isso possa ser entendido como um prelúdio daquilo que Agamben iria dizer anos depois em outros livros. O próximo passo seria o insight de que essa vida humana como vida biológica não apenas é governada pela política, como também é o seu domínio de exercício de poder por excelência, através do dispositivo do estado de exceção, ideia que está no coração da obra Homo Sacer.