Em
“O Império do Direito”, Dworkin sustenta uma teoria do direito baseada na noção
de interpretação como atividade criativa exercitada tanto pelo teórico, ao
tentar explicar o que o direito é, quando pelo juiz, ao aplicar as normas a casos
concretos. Meu objetivo nesta postagem não é tanto de entrar no mérito da interpretação
para Dworkin efetivamente, mas sim explicar como ele traz a ideia de interpretação
para o centro da teoria do direito e chega à conclusão de uma teoria boa e
completa precisa ser uma teoria interpretativa.
A
escalada do o argumento de Dworkin até chegar a esse ponto passa por uma
demonstração de como as outras teorias do direito, com destaque para o
positivismo, fracassam em explicar o fenômeno chamado de desacordos teóricos. Comecemos,
então, abordando a maneira como Dworkin coloca a questão de como construir uma
teoria do direito e como se configura a questão dos desacordos teóricos.
Dworkin inicia o livro dizendo que existem três tipos de desacordos básicos que
pode haver sobre o direito, ou seja, três formas diferentes pelas quais dois ou
mais juristas podem discordar entre si quanto a uma questão jurídica.
Ronald Dworkin (1931-2013) |
Primeiro,
há os desacordos sobre fatos. Esses dizem respeito ao que aconteceu em
um determinado caso, qual foi o momento do acontecimento, quem esteve presente,
quem fez o que, quem deixou de fazer o que, etc. Em situações reais da prática
jurídica, esse é o desacordo que ocorre, por exemplo, quando testemunhas
apresentam relatos diferentes sobre os fatos, quando as partes alegam autorias
diferentes para um mesmo fato, quando não se tem certeza sobre a data de
determinado evento e assim por diante. Disso se segue que os desacordos sobre fatos
são resolvidos com um exame da realidade e uma reconstrução do passado. Uma vez
que se tenha averiguado qual foi o real desenrolar dos acontecimentos, o desacordo
deixa de existir.
Segundo,
há os desacordos de direito. Esses se subdividem em duas outras
categorias. Há, de um lado, os desacordos empíricos. Apesar do que a
nomenclatura pode sugerir, estes não dizem respeito ao que aconteceu no caso,
mas sim sobre a aplicabilidade de uma norma ao caso. Percebemos a ocorrência
desse desacordo quando não se tem certeza se a norma em questão permanece
vigente, se há uma norma mais específica relacionada àquela situação ou se ela
se aplica a fatos ocorridos em determinado momento. Desacordos empíricos têm
sua solução dada examinando qual o estado atual do sistema jurídico, observando
se as normas foram revogadas ou não foram, se possuem período de validade
determinada, se seu período de vacatio legis já se esgotou, dentre outras
questões. A nomenclatura descordo empírico se justifica porque a sua resolução
é dada empiricamente.
O
outro tipo de desacordo de direito é que Dworkin chamará de desacordos
teóricos. Assim como os desacordos empíricos, os desacordos teóricos também
dizem respeito à questão de qual é o direito aplicável a um caso. Porém, diferentemente
do tipo anterior, o desacordo teórico não lida com o problema de uma norma estar
valendo ou não. Esse lida, isso sim, com problema sobre o que aquela norma diz.
O desacordo teórico acontece, portanto, não quando discordamos sobre o que
aconteceu, nem sobre quais as normas vigentes, mas antes sobre o que a norma
manda que façamos dentro daquela situação. Há descordo teórico entre dois
juristas quando ambos se deparam com uma mesma norma, mas cada um acredita que
ela está dizendo uma coisa diferente. Outra forma de dizer isso é dizer que o
desacordo teórico é um desacordo de interpretação. Não se trata de discordar sobre
se a norma existe, mas sim qual a maneira correta de entendê-la e de extrair o
que ela tem a nos dizer sobre o caso que precisa ser julgado.
Como
dissemos no começo, os desacordos teóricos são o tipo de desacordo realmente
relevante para Dworkin. Mas o que há de tão interessantes a respeito deles?
Primeiro, que os desacordos sobre fatos e os desacordos de direito de tipo empírico
são normais dentro do cotidiano do mundo jurídico. São desacordos que ocorrem
com frequência, mas que não costumam despertar preocupação porque toda vez que
eles surgem já sabemos de que maneira poderão ser solucionados: analisando a realidade
fática, seja sobre qual a verdadeira narrativa dos fatos do caso ou sobre a
vigência de certa norma.
Segundo,
e relacionado ao ponto anterior, é que o desacordo teórico não admite
justamente o tipo de solução empírica que basta para os tipos anteriores. Quando
diferentes juristas têm diferentes entendimentos sobre o que uma norma diz, o
que decide qual entendimento é correto não é um exame de fatos, mas sim uma
confrontação de argumentos.
Terceiro,
as teorias do direito existentes até então não são capazes de explicar
adequadamente no que consistem desacordos teóricos e como eles são possíveis
dentro do Direito. Com efeito, segundo Dworkin, toda vez que uma das teorias do
direito predominantes, notadamente o positivismo jurídico, se depara com uma situação
de desacordo teórico, ela tende a não enxergá-lo enquanto tal e a desqualificá-lo
para a terceira e última categoria de desacordos, que Dworkin chama de desacordos
de moralidade e fidelidade. Temos um desacordo de moralidade e fidelidade
quando sabemos efetivamente o que norma impõe que seja feito, mas um de nós
considera que o que ela dispõe é injusto e outro considera que não, ou quando
um de nós considera que devemos aplicá-la a despeito de sua injustiça e outro
considera que a injustiça é um motivo para deixar a norma de lado e decidir
sobre algum outro critério.
Nessa
outra tipologia, então, o que está em questão não é exatamente qual o conteúdo
da norma, mas sim a correção moral desse conteúdo e a obrigatoriedade de aplicá-lo
ao caso. Sabemos o que norma estabelece, mas não concordamos se o que ela estabelece
é bom ou desejável e, ainda, se o fato de ser bom ou desejável acena ou não
para a possibilidade de afastar sua aplicação ao caso.
O
que Dworkin quer nos mostrar é que teorias como o positivismo, jusnaturalismo e
realismo jurídico, quando tratam de um desacordo teórico, falam sobre ele como
se no fundo fosse apenas uma variante desse desacordo que acabamos de explicar.
Ou seja, para essas teorias, da forma como Dworkin as lê, o que está
acontecendo quando operadores do direito discordam sobre o que as normas dizem
é que um deles acredita que o conteúdo das normas e positivo e outro acha que
ele é negativo. É porque um dos lados compreendeu do que se trata a norma ao
passo que o outro não entendeu. Ou mesmo é porque um deles está sendo sincero
quanto ao seu entendimento ao passo que outro está se posicionando de má fé.
O
que essas teorias estariam nos dizendo, segundo Dworkin, é que não há
desacordos genuinamente teóricos. Isto é, não há desacordos genuinamente sobre
o que direito exige para determinado caso, porque se analisarmos a fundo todo
desacordo que se apresenta dessa forma é na verdade uma discussão que descamba
para um domínio extrajurídico, envolvendo questões de moralidade e justiça.
Questões estas que já extrapolam o campo do direito propriamente dito e cruzam
a fronteira para controvérsias que não são realmente jurídicas, mas sim de
alguma outra natureza.
O
modo como Dworkin procura se evadir a esse reducionismo é argumentando que o
desacordo teórico, que aparenta ser um desacordo sobre qual o teor de uma
norma, é na verdade um desacordo de tipo mais fundamental. Com efeito, quando temos
diante de nós uma mesma normas, mas cada um enxerga algo diferente sendo dito
por ela, o ponto de discordância aqui não é meramente os significado das palavras
que estão lá colocadas, e sim o que cada um de nós pensa que o direito é. Por
exemplo, se um de nós pensa que a interpretação correta deve ser teleológica,
mas o outro acha que ela deve ser relacionada ao seu contexto histórico, é
porque um de nós acredita que o direito é uma instituição funciona pela realização
das finalidades que escolhemos para as normas através de nossos representantes
legítimos, e outro acredita que o direito é uma instituição essencialmente
localizada no tempo e no espaço, devendo essa temporalidade ser respeitada quando
um julgamento precisa ser feito em um momento histórico diferentes.
Para
usar um exemplo menos abstrato, podemos tomar um caso concreto empregado pelo próprio
Dworkin para ilustrar sua ideia, o famoso caso Riggs vs. Palmer. A história é
conhecida de todos. No século XIX, Elmer Palmer tomou conhecimento de que
constava como um dos herdeiros no testamento de seu avô. Ávido para possuir sua
parte da herança, Elmer assassina seu avô a sangue frio. Quando a autoria do
crime foi descoberta e o rapaz foi levado a julgamento, uma questão que
suscitou ampla discussão dentre os juízes que compunham o tribunal dizia
respeito se Elmer deveria ou não receber a herança, considerando o fato de que
foi ele o responsável por ceifar a vida do seu ascendente e que as leis do
estado em que o julgamento se deu nada diziam a respeito do recebimento da herança
ser obstado pela prática de homicídio por parte do herdeiro.
De
um lado, estavam aqueles juízes que acreditavam que, na falta de previsão legal
específica sobre o assunto, Elmer deveria herdar normalmente, pois cabe ao tribunal
se pautar nas normas que estão explicitamente colocadas. De outro lado, estavam
os juízes que acreditavam que a perversidade do ato era inaceitável, e que seria
absurdo um alto tribunal permitir que alguém de tamanha vileza moral saísse incólume
no diz respeito a essa questão patrimonial. Para esse segundo grupo de juízes, cujo
entendimento prevaleceu, está claro na tradição jurídica estadunidense que tal
tipo de conduta é inadmissível e que não permitido a ninguém colher os frutos
de sua própria torpeza.
Diante
desse caso, diz Dworkin, aparentemente está claro que os juízes sabiam qual
seria a resposta correta para o caso: Elmer deveria herdar. Seria apenas que alguns
deles estavam relutantes em tomar essa decisão por considerarem-na moralmente
injusta. No entanto, continua Dworkin, a questão é muito mais profunda que
essa. O que estava acontecendo é que uns achavam que o direito se esgota nos
textos legislados, e os outros achavam que inclui também valores morais. Uns
achavam que o direito deve trabalhar para fins de previsibilidade, e os outros
achavam que ele é instrumento para produzir justiça. Uns achavam que o ofício do
juiz é subsunção simples da norma, e os outros achavam que ele inclui avaliação
cuidadosa do mérito. Uns achavam que no direito existe dever estrito de fidelidade
em relação ao texto legal, e outros achavam que há um compromisso maior de assegurar
a correção moral da solução da lide. Em suma, uns achavam que o direito é uma coisa
e serve a determinados propósitos, enquanto os outros achavam que o direito é
outra coisa e serve a outros propósitos.
Nesse
sentido, defende Dworkin, não se pode dizer que todos concordavam sobre o
conteúdo do direito, mas apenas discordavam sobre a sua justeza. Pelo
contrário, o ponto principal do desacordo era não apenas o que as normas dizem sobre
esse caso em particular, mas sim o que o direito é como instituição e o que
podemos esperar dele. É um desacordo sobre qual papel cabe ao direito
desempenhar e a que servem as decisões judiciais. O que temos aqui não é uma
querela sobre questões extrajurídicas que surge no meio de uma controvérsia
jurídicas. É, antes de tudo, um desacordo genuinamente teórico sobre que tipo
de coisa é o direito. Assim, no momento em que os juízes colocavam seus posicionamentos
dissonantes, o que cada um deles estava expressando não era sua visão moral sobre
a aplicação das normas, e sim a visão mais fundamental que cada um deles tinha
sobre o que essas normas efetivamente são.
Dito
isso, estamos agora em condições de compreender por que as outras teorias fracassavam
em explicar os desacordos teóricos. A razão pela qual isso acontecia é que
todas elas tinham um defeito em comum. Todas pressupunham que o direito é algo
que pode ser entendido e descrito objetivamente. Para ser mais exato, todas elas
acreditavam que o direito é um tipo de instituição tal que, se todos
analisarmos de maneira cuidadosa, veremos todos uma mesma coisa com um mesmo
modo de funcionamento.
Dworkin
quer mostrar que a verdade está justamente no ponto de vista oposto a esse.
Longe de vermos o direito de uma mesma forma, cada um de nós possui a respeito
dele a sua própria visão. Ou, para usar a expressão de Dworkin, a sua própria concepção
sobre o que o direito é. A concepção que possuímos é a resposta que cada um de
nós dá para as perguntas “o que o direito é?”, “para que serve o direito?”, “qual
papel ele cumpre ou deve cumprir na sociedade?”. A concepção de direito desempenha
um papel fundamental porque é ela que orienta o modo como as decisões são tomadas,
o modo como as normas são entendidas e o modo como controvérsias são
solucionadas.
De
todas essas explanações, podemos extrair duas conclusões básicas. Primeiro, que
o direito se torna uma coisa diferente para cada forma diferente de entendê-lo que
aplicamos a ele. Ele não é, portanto, um conceito empírico, que pode ser
extraído da descrição do mundo, e sim é um conceito interpretativo, que
depende diretamente do sentido e do propósito que seu intérprete lhe imputa. Compreende-se,
pois, que descrever o direito significa sempre e inevitavelmente fazer uma interpretação
sobre ele. Segundo, que a interpretação ou concepção que temos sobre o direito
é sempre informada pelos valores morais e políticos do intérprete. Isto é, consiste
em uma construção do intérprete, uma construção na qual ele desempenha um papel
ativo e irredutível, e nunca meramente uma extração do sentido já presente em
um texto.
Isso
tem implicações drásticas sobre como uma teoria do direito deve ser. O empreendimento
teórico deixa de ser a busca por uma descrição direito fiel às práticas sociais
reais e passa a ser uma busca, dentre as várias concepções/ interpretações
possíveis sobre o direito, a que mais se justifica moral e politicamente. A
descrição será, nesse sentido, tanto mais verdadeira quanto mais normativamente
correta. Precisaremos, a partir de agora, tentar entender o que está por trás
do ato de interpretar e de que maneira podemos escolher entre diferentes concepções
do direito, lembrando que essa tarefa precisará ser feita tendo sempre em vista
as questões de moralidade política relevantes. Eis aqui como se constrói o edifício
teórico do interpretativismo.
Espero
ter sido suficientemente claro.