A alma nos ordena conhecer quem nos
admoesta “conhece-te a ti mesmo”
(Segundo Alcibíades,
130e)
Todos já ouviram falar de Sócrates, mestre de Platão. Embora sua fama seja notória e a importância de sua figura, inegável, é sabido que nada temos de Sócrates a não ser registros feitos do ponto de vista de outras pessoas, sendo os mais famosos os diálogos de Platão, alguns escritos de Xenofonte e a peça “As Nuvens” de Aristófanes. E, ainda assim, sobre todas essas fontes foram e são objeto de debate entre os historiadores da filosofia a respeito de que aspectos elas verdadeiramente nos revelam sobre quem foi Sócrates. De origens humildes quando comparadas às de seu maior discípulo, Sócrates não hesitou em colocar em questão algumas das principais crenças defendidas em Atenas em seu tempo quando elas não se provassem sustentáveis à luz da razão, o que lhe rendeu uma condenação à morte sob acusação de corromper a juventude, além ter sido considerado por Hegel como o primeiro indivíduo e por Nietzsche como o bastião de uma tradição de pensamento negadora da vida.
Longe de mim ousar pisar o
terreno dessas discussões, gostaria, com essa postagem, de apenas fazer alusão
a três ideias atribuídas a Sócrates e que, quer tenham sido realmente
desenvolvidas por ele ou não, foram determinantes para a tradição filosófica
posterior.
Uma nova concepção de alma
Seria absurdo dizer que
foi Sócrates quem criou o conceito de alma. Afinal, há referências à alma em
Homero, nas seitas órficas, nos pré-socráticos, nos poetas líricos e outras
fontes mais. Nunca, porém, alguém havia concebido a alma como sendo idêntica
à consciência. Em Homero, vemos a alma considerada como um tipo de entidade
que deixa o corpo com a morte e se desloca para o Hades. No orfismo (que terá
grande influência sobre Platão), a alma é algo que habito o corpo em um
processo de expiação, que vive adormecida dentro de cada um de nós, que ascende
a certos estados de consciência quando dormimos e que só se torna livre de sua
prisão corpórea e totalmente dispersa com a morte. Nesse sentido, Sócrates foi
o primeiro grande pensador a designar por “alma” o centro da capacidade
pensante e das faculdades racionais. De Sócrates em diante, a minha alma é o
meu eu, essa dimensão da minha existência que pensa, que raciocina, que decide
e que escolhe. Isso tem pelo menos dois desdobramentos
Se é verdade que a essência do ser humano é sua alma em vez de seu corpo, então também é verdade que, se houver uma forma de vida que possa ser considerada superior às demais, ele deve ser uma forma de vida que atribui prioridade ao cuidado da alma sobre o cuidado do corpo, que valoriza aquilo que é bom para alma acima do que é bom para o corpo. Isso de forma alguma implica dizer que a dimensão corporal humana é desprovida de importância e não merece atenção. Significa, isso sim, que toda força, resistência, desenvoltura que o corpo vier a possuir, e mesmo as riquezas, propriedades e poder político, só possuem valor real na medida em que por trás delas esteja uma alma que alcançou um estágio de excelência
Se é verdade que a essência do ser humano é sua alma em vez de seu corpo, então também é verdade que, se houver uma forma de vida que possa ser considerada superior às demais, ele deve ser uma forma de vida que atribui prioridade ao cuidado da alma sobre o cuidado do corpo, que valoriza aquilo que é bom para alma acima do que é bom para o corpo. Isso de forma alguma implica dizer que a dimensão corporal humana é desprovida de importância e não merece atenção. Significa, isso sim, que toda força, resistência, desenvoltura que o corpo vier a possuir, e mesmo as riquezas, propriedades e poder político, só possuem valor real na medida em que por trás delas esteja uma alma que alcançou um estágio de excelência
Uma nova concepção que integra virtude e
saber verdadeiro
E o que quer dizer a
excelência da alma? Se o ser humano é alma, e se alma, de Sócrates em diante, é
intelectual, quer dizer que alma é tanto mais desenvolta quanto mais sábia e
conhecedora a respeito do mundo e de si mesmo ela for. É por isso que a melhor
das vidas possíveis é a vida na filosofia: aquela que valoriza acima de tudo o
cultivo do saber e a busca da verdade.
Mas não é só isso. Na
época de Sócrates, que também foi o tempo de grandes sofistas, as discussões em
Atenas passavam por uma gama de questões éticas e morais. Por exemplo, se
valores como justiça, coragem, piedade são só formas de comportamento
reproduzidas ao longo do tempo ou se elas têm algum fundamento maior; se essas
qualidades sempre aparecem juntas no indivíduo ou se é possuir algumas sim e
outras não ;se as leis e a instituições se reduzem a costumes e convenções humanas
ou se há algo a mais que as justifique.
A partir da ideia
socrática do saber verdadeiro como valor supremo, uma tentativa de resposta a
todas essas problemáticas começa a despontar. Aquilo a que chamamos de virtudes
nada mais são do que o reflexo prático do conhecimento do bem. Todo aquele que
chegou a compreender a ordem do mundo inevitavelmente sabe quais sãos os fins
que merecem ser perseguidos. Por isso, sempre se comporta da maneira devida perante
a diversidade de situações, e tem ciência exatamente de qual atitude tomar
perante seus temores, desejos, fraquezas, etc. Na nova concepção socrática,
conhecimento teórico e conhecimento prático são dois lados da mesma moeda, de
modo que quem possui um necessariamente possui o outro. Ser sábio significa agir
e viver bem, e só pode agir e viver bem quem conseguiu sair do terreno instável
das opiniões para a verdade. Da mesma forma, a pessoa ignorante necessariamente
padece do vício, e só sofre de vício quem ainda não contemplou a verdade.
Uma nova concepção de liberdade
Disso também deriva uma
nova forma de pensar a liberdade. É famosa (principalmente a partir do texto de
Benjamin Constant) a distinção entre a maneira antiga e a moderna de conceber a
liberdade. Se para nós, modernos, ser livre é pode agir e escolher sem ser
constrangido ou coagido, os antigos entendiam que livre era o homem que podia
participar das instituições e viver somente sob as leis em cuja criação ele
teve a possibilidade de opinar. Para além disso, Sócrates iniciou uma tradição
de pensamento segundo a qual o ser humano pode ser escravo não apenas dos
outros como também de si mesmo. Somos escravos de nós mesmos sempre que sucumbimos
àquelas forças que fazem parte da nossa constituição, mas que não funcionam
segundo nossas escolhas: as paixões. O homem passional não domina o próprio
destino, porque, dado o caráter caótico da passionalidade humana, ele é levado
para qualquer direção instável para onde ela apontar. Em vez disso, o homem livre
possui a capacidade de fazer a razão se sobrepor à paixão, e dá a si mesmo a
possibilidade de dirigir suas ações mesmo quando seu desejo pende para um sentido
diferente. Liberdade aqui, significa autocontrole, domínio de si e
independência em relação ao desejo.
Por último, para mostrar
a importância dessas ideias, gostaria de terminar apontando alguns dos desdobramentos
que elas tiveram na época contemporânea e posterior a Sócrates. Se Sócrates
disse que virtude é saber e que a vida boa é uma vida de conhecimento das coisas
verdadeiras, ele não respondeu à questão de como é possível que possamos sair
da ignorância para a sapiência, de onde as almas vêm porque a verdade é assim e
não de outro. Para isso foi preciso esperar a metafísica platônica, que partirá
daquela premissa do primado da alma como consciência para dizer que a realidade
possui uma estrutura dual, uma das quais é o domínio originário da alma e a
sede dos verdadeiros objetos do conhecimento.
Além disso, na República,
Platão famosamente proporá uma concepção de justiça que pretende fazer com que
a estrutura da cidade idealmente justa corresponda à estrutura da alma,
colocando o poder nas mãos justamente daqueles mais propensos a acessar a
verdade sobre o mundo. No mesmo sentido, no livro I da Ética a Nicômaco,
Aristóteles dirá que, se existe algo que merece ser chamado de bem supremo, ele
consiste no exercício mais elevado e excelente possível daquela parte da alma
que só o ser humano possui, a saber, a alma racional. Existem ainda aqueles
grupos de pensadores que abraçaram partes da herança socrática e a partir dela
desenvolveram doutrinas específicas, os chamados socráticos menores. Dentre
eles estão os cínicos, que, radicalizando a concepção de liberdade inaugurada
por Sócrates, acreditavam que a liberdade verdadeira requer um desligamento
radical em relação às coisas mundanas, sob a forma de um silenciamento da busca
pelos prazeres, do amor pela riqueza e do desejo pela fama, em prol de uma forma
de vida simples, desprovida de luxos e próxima da naturalidade.