sábado, 25 de abril de 2020

A Crítica de Quine à Distinção entre Analítico e Sintético

Willard van Orman Quine, mais conhecido como W.V.O. Quine (1908-2000), foi um dos mais importantes autores da filosofia analítica do século XX. Em suas contribuições à lógica e à epistemologia, Quine foi um dos grandes responsáveis por abrir caminho para aquilo que hoje se conhece como naturalismo, corrente de pensamento segundo a qual não existe distinção qualitativa entre o trabalho investigativo das ciências (especialmente as ciências naturais) e o da filosofia. Em seu famoso artigo “Dois Dogmas do Empirismo” (1951), Quine ataca a conhecida distinção entre enunciados analíticos e sintéticos, argumentando que não há boa razões para aceitar essa distinção. O artigo foi posteriormente incluído na coletânea de Quine chamada “De um Ponto de Vista Lógico”, traduzida no Brasil pela editora Unesp. Dado que esse texto foi decisivo para o projeto de Quine como um todo, pretendo fazer aqui uma pequena esquematização de seu argumento e mostrar como ele acena para uma guinada naturalista na filosofia.
W. V. O. Quine

Antes, porém, gostaria de me debruçar um pouco sobre a distinção analítico-sintético em si, e qual papel até então ela havia desempenhado dentro da filosofia analítica. Essa distinção de forma alguma é uma novidade do século XX. Ela aparece tendo um papel central, pelo menos, desde a Crítica da Razão Pura de Kant (1781). Mas, até o momento em que Quine escreveu sobre o tema, ela havia sofrido algumas modificações consideráveis, de modo que poderia ser colocada mais ou menos assim.
Um enunciado analítico é aquele que pode ser considerado verdadeiro ou falso em virtude apenas do seu significado. Enunciados como “todo triângulo tem três lados”, “a bola é redonda”, “o que é grande não é pequeno”, são enunciados desse tipo, porque basta saber o que significa cada palavra que os compõe e as regras básicas da lógica, e já poderemos dizer se são verdadeiros ou não. Enunciados analíticos dispensam, portanto, qualquer confirmação ou verificação a partir de nada que não seja o enunciado mesmo. O enunciado sintético, como se poderia esperar, é exatamente aquele cujo significado apenas não é suficiente para que se possa dizer que ele é verdadeiro ou não, de modo que isso só pode ser confirmado observando-se algum tipo de estado de coisas no mundo. Para dar novos exemplos, “a soma dos ângulos interno de um triângulo é 180º”, “a bola é amarela”, “a bola é grande”, são enunciados conceitualmente passíveis tanto de veracidade quanto de falsidade, e só é possível dar a palavra final a esse respeito examinado a realidade e objeto de que eles tratam.
O que eu quero deixar claro é que essa distinção não se trata de uma mera forma de categorizar enunciados, mas que ela cumpriu um papel importante na definição daquilo que os primeiros filósofos analíticos consideravam que era sua tarefa em contraste com a ciência. Pois se é verdade que há uma classe de enunciados cuja verificação depende de um exame da realidade concreta, também deve ser verdade que nossa capacidade determinar sua veracidade ou falsidade será tanto maior quanto mais precisos forem os métodos que usarmos para isso. Ou seja, teremos mais certeza a respeito dos enunciados sintéticos quanto maior for o rigor das metodologias que usamos para investigar a realidade.
Isso tem uma consequência crucial para o filósofo. Pois no estágio em que se encontrava o conhecimento humano- ou assim se pensava quando esta ideia surgiu- quem dispunha de métodos precisos e rigorosos era a ciência, sobretudo às ciências naturais. Ao passo que a filosofia contava apenas com o pensamento abstrato, experimentos mentais e o emprego de categorias lógicas. Nessa linha de raciocínio, faz sentido que a filosofia se ocupe exclusivamente daquilo que pertence ao campo da analiticidade, deixando tudo que envolve enunciados sintéticos a cargo da ciência. Ao filósofo, cabe investigar tão somente o que é conceitual e não dependente de provas empíricas. Disso resulta uma espécie de divisão de tarefas entre ciência e filosofia, em que as duas, de certa forma, andam “de mãos dadas”. A filosofia trata de problemas que são pertinentes e relevantes para o progresso da pesquisa científica, mas que o cientista não pode, ele próprio, investigar. Enquanto a ciência procura saber quais as leis que regem o mundo, quais as causas dos fenômenos e quais as propriedades da matéria, a filosofia procura esclarecer o que conta como uma causa, como se pode expressar verdades de forma não-ambígua, o que significa dizer que algo é uma lei, etc.
Muito bem. E como Quine atacará essa distinção? O argumento de Quine possui alguns passos, que transitam de analiticidade à sinonímia, e de sinonímia a intercambialidade salva veritate. A partir de agora, o que significam essas expressões e como ele faz isso.
Quine começa dizendo que os enunciados considerados analíticos aparecem em pelo menos dois tipos. Um, sob certo ponto de vista, apresenta-se forma bastante óbvia, como, para usar o seu próprio exemplo “nenhum homem não casado não é casado”, que é um enunciado aparentemente autoevidente e independente de empiria. Há uma outra forma, porém, como os enunciados analíticos se mostram, que é um pouco mais difícil de encaixar na definição que demos anteriormente. Usando mais uma vez o exemplo do autor, “nenhum solteiro é casado” pertence a esse segundo grupo. E o que há diferente nesse segundo enunciado? É que, se alguém tivesse dúvida sobre ele ser um enunciado analítico, bastaria trocar “solteiro” por “homem não casado”, e ele iria se transformar naquele primeiro enunciado, este, por sua vez, “claramente” analítico.
Ora, mas só podemos fazer essa conversão de enunciado no outro (e assim ter certeza de sua analiticidade), se for verdade que “solteiro” e “homem não casado” são sinônimos. Em outras palavras, a analiticidade do enunciado só se confirma se também pudermos provar a relação de sinonímia existente entre essas duas expressões, e, mais importante de tudo, que essa relação é ela própria independente de informação empírica. Porque, se a veracidade da sinonímia tiver fundamentos empíricos, isso já desmentiria que o enunciado acima é analítico.
Assim, analiticidade precisa de sinonímia. E sinonímia consiste em quê? Quine propõe, a essa altura do argumento, que pensemos a sinonímia pertinente para essa questão pode ser definida como intercambialidade salva veritate. Falar de intercambialidade equivale a dizer que duas palavras ou expressões podem ser trocadas, substituídas uma pela outra. A designação salva veritate, aqui, quer dizer que essa substituição é tal que não modifica o valor de verdade do enunciado em questão, ou seja, o seu status como enunciado verdadeiro ou falso. Em síntese, quanto temos um enunciado verdadeiro (ou falso), podemos dizer que há intercambialidade salva veritate, se, ao trocarmos uma das expressões que o compõem por outra, o enunciado permanece sendo verdadeiro (ou falso). No exemplo em discussão, trata-se de que “solteiro” e “homem não casado” possam ser substituídos um pelo outro de um jeito que a frase como um todo continua verdadeira.
Obs.: Quine faz um adendo sobre esse ponto. Diz que não está interessado em qualquer possibilidade de troca mútua entre expressões, mas apenas no que ele denomina, de maneira preliminar, de sinonímia cognitiva. Não se está falando, portanto, da possibilidade de substituições de termos dentro de textos poéticos ou metafóricos, quando poderíamos observar possibilidades de troca incomuns dentro da linguagem comum ou científica.
Então, analiticidade requer sinonímia. Sinonímia requer intercambialidade salva veritate. O que precisa ser provado, agora, é se podemos demonstrar que duas expressões são intercambiáveis no sentido que estamos falando, de maneira que essa demonstração seja puramente conceitual e despojada de elementos empíricos. Isto é, trata-se, em última instância, de saber se o fato de duas expressões serem intercambiáveis é ou não empiricamente puro, ou, se, ao contrário, é algo que só se confirma analisando algum estado de coisas no mundo. Trata-se, enfim, de saber se intercambialidade salva veritate é condição suficiente de sinonímia.
E aqui vem o momento crucial dessa discussão. Quine tentará nos convencer de que o caráter intersubstituível de duas expressões não é algo que possamos saber de forma abstrata ou apriorística, mas sim que essa é uma característica contingente linguagem, ao qual estamos tão familiarizados a ponto de considerá-lo como não empírico. Abstraindo um pouco as coisas e adaptando a argumentação de Quine, poderíamos pensar numa série de objetos x que tenham todos a propriedade A, o que podemos formular na proposição “todo x é A”. Suponhamos, porém, que todos os objetos x também tenham a propriedade B, o que se expressa na proposição “todo x é B”. Ora, já que A e B são propriedades possuídas ao mesmo tempo por todos os objetos x, é possível trocar “A” por “B” dentro desses enunciados sem mudar o seu valor de verdade. Mas isso definitivamente não significaria que esses são enunciados analíticos. Para pensar em termos menos abstratos, é possível que tenhamos um caso de expressões intercambiáveis que não mantêm o significado em questão, o que significa que não haveria sinonímia, nem, consequentemente, analiticidade. É o que ocorre, como diz Quine, em pares como “criaturas com rins” e “criaturas com coração”, em que a possibilidade de substituição mútua é apenas um acidente que diz respeito a esta linguagem particular.
Ao final de todo esse raciocínio, conclui Quine, percebemos que a intercambialidade salva veritate é insuficiente para explicar sinonímia e analiticidade. Se há expressões que podem ser trocadas umas pelas outras produzindo aquele efeito de verdade aparentemente conceitual, isso é uma propriedade contingente daquele grupo de expressões naquela linguagem específica. Seria perfeitamente possível imaginar um mundo em que “solteiro” e “homem não casado” não fossem sinônimos, nem pudessem formar um enunciado que chamamos de analítico. Nesse sentido, eu só posso saber que “solteiro” e “homem não casado” podem ser tratados como sinônimos porque já tenho um conhecimento prévio sobre o modo como essas duas expressões funcionam nessa linguagem particular. Ou seja, preciso ter algum conhecimento prévio sobre como é que certos falantes usam essas expressões ou não.
Ora, dado que toda informação sobre o uso específico de expressões é uma informação sobre um estado de coisas no mundo, segue-se disso que não há enunciado analítico que não seja formado a partir de alguma informação de natureza sintética. Dito de outra maneira, qualquer enunciado que aparente possuir analiticidade no fundo repousa sobre a presunção de algo que só poderia ser provado de forma empírica. “Todo triângulo tem três lados” depende da maneira particular como uma certa figura geométrica é desenhada. Mas uma pessoa só poderia saber que tal figura é desenhada sempre daquela maneira se já tivesse tido contato com ela repetidas vezes em suas experiência prévias. Quine quer dizer, portanto, que todo enunciado dito analítico possui um “input” que só se revela sinteticamente.
Para concluir essa postagem, quero fazer pelo menos algumas considerações de qual a importância desse argumento para a história da filosofia analítica.
Se todo enunciado antes considerado analítico revela que, em verdade, depende de um esclarecimento de natureza empírica, então não faz mais sentido que esses enunciados sejam discutidos de forma conceitual e apartada da experiência. A própria ideia de uma “verdade conceitual” perde sentido, na medida em que tudo aquilo que pensávamos ser puramente conceitual tem algum elemento empírico tácito.
Mas está longe de ser só isso. Uma vez que a separação analítico-sintético é relativizada, já não há mais bons motivos para crer naquela divisão das tarefas intelectuais entre filosofia e ciência de que falamos no início. Deixar que os filósofos continuassem a tratar de verdades conceituais como se elas independessem da experiência no fundo seria deixar que eles discutissem afirmações dependentes da experimentação sem qualquer método adequado para isso. Aceitar o argumento de Quine acarreta uma revisão substancial na maneira como se pensa a relação entre saber científico e saber filosófico, uma revisão cujo primeiro passo é reconhecer que entre um e outro não há nenhuma diferença qualitativa, mas antes continuidade.
Na prática isso quer dizer, como a ciência é quem possui os métodos rigorosos, e agora sabemos que as questões discutidas pela filosofia ressoam questões empíricas, a maneira adequada de fazer filosofia é trazer o conhecimento produzido pela ciência para dentro do pensamento filosófico. Ou seja, racionar filosoficamente tomando sempre como base e como fonte de informações fidedignas aquilo que for sendo descoberto empiricamente pela ciência ao longo do tempo. Ao filósofo cabe abraçar as descobertas científicas como seu ponto de partida e como seu horizonte de reflexão. A essa perspectiva, de que a filosofia em parte se confunde com a ciência e deve ser informada pelas descobertas das ciências naturais, damos o nome de naturalismo, do qual Quine é um grande defensor.
Assim, o jeito certo de fazer epistemologia passa a ser tomando como base aquilo que for revelado sobre a mente humana pela psicologia cognitiva e o modo como ela interage com a realidade. O jeito certo de fazer ética passa a ser pensar sobre o agir moral e a conduta a partir do que a teoria da evolução biológica tem a dizer sobre o comportamento e a ação humana em seu estágio atual.
No campo da teoria do direito, que é um dos meus interesses pessoais de estudo, a aceitação do naturalismo implica abandonar a famigerada análise conceitual. Se quisermos entender o que o direito é, não podemos nos limitar simplesmente a refletir a partir de nossas intuitivas sobre o direito, como fizeram Hart os outros membros da tradição positivista que se seguiu a ele. Pois, para a nossa surpresa, muito do que consideramos intuitivo muitas vezes se revela como mera idiossincrasia da forma de pensar de uma classe social específica, após uma simples pesquisa empírica. Em vez disso, deveríamos partir de investigações quantitativas e experimentais sobre o comportamento dos operadores do direito e sobre o que os indivíduos realmente pensam sobre as instituições jurídicas, para que aí sim tenhamos uma base de informações seguras para começar a dizer o que o direito é. Na tradição anglo-saxã, talvez o maior nome dessa corrente de pensamento, o naturalismo jurídico, seja o de Brian Leiter