A postagem de hoje é dedicada a um dos autores
que mais gostei de estudar em teoria do Direito e que até hoje me parece ser o
que apresenta os argumentos mais perspicazes com o maior grau de simplicidade:
Herbert L. A. Hart (1907-1992). A obra mais importante de Hart para a teoria do
Direito foi “O Conceito de Direito”, publicado em 1961, e com insights
absolutamente relevantes ainda para os dias atuais. Pretendo fazer, no que se
segue, uma exposição geral do projeto de Hart. Mais especificamente, tentarei
lançar um pouco de luz sobre o modo como Hart pretende fazer suas análises e a
tradição anterior à qual ele está se contrapondo. Em muitos pontos serei breve
e não apresentarei a riqueza de detalhes necessária, mas espero que isto possa
servir ao menos como uma orientação para quem esteja estudando o assunto pela
primeira vez.
No
curto prefácio que a obra tem, Hart apresenta sua proposta como uma
investigação que possui ao mesmo tempo duas facetas: é uma jurisprudência analítica e uma sociologia
descritiva. Vamos começar falando sobre o que podemos entender sobre essas
duas coisas.
Herbert Hart (1907-1992) |
Jurisprudência
aqui consta como tradução de jurisprudence,
o nome que se dá à Teoria do Direito em inglês. No sentido em que Hart nos
apresenta, jurisprudência analítica é uma abordagem que consiste em identificar
e esclarecer os principais conceitos envolvidos no Direito. Conceitos como os
de coerção e regra, por exemplo. Esta metodologia não é exatamente uma invenção
de Hart, porque já existia em teóricos anglo-saxões anteriores a ele. A
preocupação original da jurisprudência analítica é trazer clareza e certeza
sobre o que se está dizendo e como devemos compreender os aportes conceituais
que o Direito envolve. Sociologia descritiva, por sua vez, não quer dizer aqui
que Hart irá se filiar a um método sociológico qualquer. O sentido dessa
expressão é mais simples: quer dizer que a análise de Hart pretende também nos
proporcionar informações a respeito das práticas
sociais que constituem o Direito, os tipos de comportamento e as atitudes
envolvidas nos fenômenos jurídicos.
Agora,
vejamos como as duas coisas se relacionam.
Na
época em que escreveu o livro, Hart estava fortemente influenciado por uma nova
forma de fazer filosofia analítica que havia se desenvolvido em Oxford, onde
dava aulas, por pensadores que inclusive faziam parte de seus círculos de
amizade. Era a chamada filosofia da linguagem comum, ou simplesmente Escola de
Oxford. Entre seus principais nomes, podemos encontrar J.L. Austin e Gilbert
Ryle. Tal como outras vertentes da filosofia analítica, a filosofia da
linguagem comum acreditava que problemas filosóficos poderiam ser melhor e maia
apropriadamente solucionados pelo uso de esclarecimentos
linguístico-conceituais. Assim, dada uma questão filosófica qualquer, a forma padrão
de proceder seria separar cada um dos conceitos importantes que estão
envolvido, depois ir delimitando o sentido de cada um deles. Como, para a
filosofia analítica em geral, conceitos são primordialmente entidades
linguísticas, o sentido do conceito seria dado pela análise da linguagem, até
que a problemática fosse solucionada.
No
entanto, a Escola de Oxford, sobretudo na figura de J.L. Austin, possuía um
grande diferencial, que era a forma como ela enxergava uma relação entre o
âmbito linguístico e o âmbito prático. Inspirado fortemente no segundo
Wittgenstein (da obra Investigações Filosóficas), Austin vem a romper com o
modo tradicional como pensamos a linguagem e a ação. Segundo o que nossas
intuições cotidianas tenderiam a nos dizer, ação tem a ver com aquilo que nós
fazemos que efetivamente provoca algum tipo de transformação ou mudança real no
mundo, que altera o estado de coisas ao nosso redor, como arrumar um cômodo da
casa, quebrar um ovo ou participar de um protesto. Já a linguagem seria algo
mais relacionado à fala e à escrita, à transmissão de informações e o
estabelecimento de comunicações, mas não algo que altere a realidade presente.
J.L. Austin (1911-1960) |
Pois
bem, aquilo que Austin, bebendo em Wittgenstein, irá propor é exatamente que
entre a linguagem e as ações existe uma conexão fundamental. Mais
especificamente, a ideia fundamental de Austin que fornece combustível para o
pensamento de Hart, é que toda linguagem está sempre conectada com uma prática
social. O significado de uma expressão linguística só pode ser extraído a
partir da maneira como ela é usada por nós dentro de situações reais. Quando
esclarecemos o que determinada palavra significa, não estamos apenas produzindo
uma definição tal qual um verbete de um dicionário. Toda explicação a respeito
da linguagem invariavelmente nos remete ao tipo de prática com a qual aquela
linguagem está associada.
Vamos
ver um exemplo para que isso fique mais claro. No falar comum da língua
portuguesa, as expressões “rosto” e “cara” indicam uma mesma coisa, normalmente,
ou seja, podemos dizer que elas têm uma mesma referência: a face. No entanto,
ninguém pode negar que uma coisa é quando se diz “vou dar um beijo no seu
rosto” e outra totalmente diferente quando se diz “vou dar soco na sua cara”.
Tanto é verdade que, se trocássemos uma palavra pela outra nas duas situações,
certamente nos soaria estranho.
A
diferença, que nesse caso está seguramente no nível do sentido, diria Austin,
só pode ser encontrada na maneira como as duas expressões são efetivamente
usadas. “Vou dar um beijo do seu rosto” é um enunciado utilizado em situações
que envolvem relações de afeto e carinho, ao passo que “vou dar um soco na sua
cara” implica violência e agressão. A primeira serve para nos dirigirmos,
normalmente, a pessoas que nos são queridas; a segunda, a pessoas que por
alguma razão nos provocam maus sentimentos ou repúdio. Assim, ao explicarmos o
que cada uma das duas significa, trazemos à tona as práticas de como e quando
as usamos. Da mesma maneira, o motivo pelo qual dizemos que esta ou aquela
expressão é racista (como “preto safado”), misógina (como “vadia”) ou
preconceituosa, é porque o tipo de práticas e situações em que elas são
empregas são situações que colocam determinados indivíduos em posição de
inferioridade. São expressões usadas sempre para tratar determinadas pessoas de
uma determinada maneira, a saber, colocando-as em posição de inferioridade.
Nesse
sentido, conforme Wittgenstein, a linguagem não é apenas uma etiquetagem ou uma
forma de representar as coisas do mundo. Ela é, antes de tudo, uma forma de se
comportar e reagir perante situações. Disso, Hart tirará a ideia de que, se
queremos compreender como o Direito funciona o que são os conceitos que ele
emprega, precisamos olhar para as condições e para a maneira como eles são
usados na prática. Se queremos saber o que é coerção, devemos nos perguntar “em
que situação se diz que alguém foi coagido?”. Se queremos saber o que é uma
regra, devemos nos perguntar “em que situação se diz que há uma regra?”. Ou
para usar um par de conceitos famosamente analisados por Hart, se queremos
saber qual a diferença entre dizer que alguém “foi obrigado” a fazer tal coisa
e dizer que alguém “tinha a obrigação” de fazer tal coisa, precisamos nos
questionar em que condições dizemos “foi obrigado a” e em que condições dizemos
“teve a obrigação de”.
Portanto,
a conexão entre a jurisprudência analítica e a sociologia descritiva se dá na
medida em que a análise de conceitos nos revela sobre as práticas sociais. A
metodologia de Hart é sociológica, vale repetir, não porque ela faça uso da
Sociologia enquanto ciência, mas sim porque ela pretende nos explicar de que
forma as noções que estão na base do Direito vividas e utilizadas na realidade.
O estudo dos conceitos é importante porque é a partir dele que extrairemos
informações sobre as práticas. O estudo das práticas é importante porque é isso
que faz com que a teoria do Direito se adeque a nossas intuições e não seja
excessivamente abstrata.
Dito
isso, podemos falar agora sobre a teoria de Hart em contraste com as anteriores
adversárias. No primeiro capítulo do livro, Hart diz que prefere deixar de lado a pergunta direta "o que é o direito", e que em vez disso prefere lidar com três outras perguntas que considera os motivos pelos quais temos dificuldade em dizer de forma definitiva o que o direito é. São elas: (1) como a obrigação jurídica se relaciona com e difere da coerção? (2) como a obrigação jurídica se relaciona com e difere da obrigação moral? (3) o que são regras? O que significa dizer que regras existem? Farei agora um comentário que passa pela resposta que dart irá dar para a primeira pergunta e abre caminho para sua resposta à terceira, de modo que a segunda irei comentar em outro momento de forma mais particularizada.
À
época em que O Conceito de Direito foi escrito, o pensamento jurídico de matriz
anglo-saxã era dominado por uma vertente de positivismo jurídico que podemos
chamar aqui de imperativismo. Essa teoria tem suas raízes na tradição
utilitarista desenvolvida no século XVIII por Jeremy Bentham e ganhou seus
contornos mais definitivos em John Austin (1790-1859). Não confundir este com
J.L. Austin, de quem falamos há pouco.
John Austin (1790- 1869) |
No
contexto em que escreveu sua obra mais importante, The Province of
Jurisprudence Determined, Austin estava fortemente influenciado pelos ideias de
cientificismo e a crença da razão como fonte última do conhecimento confiável.
Era um momento histórico em que as ciências humanas e sociais estavam ainda
dando seus primeiros passos, vivendo sempre à sombra do paradigma investigativo
das ciências naturais. Acreditava-se que, para que fosse possível de se estudar
a história, a cultura, o Direito e a sociedade em geral, seria preciso que os
métodos utilizados incorporassem aspectos dos métodos utilizados no estudo dos
fenômenos naturais. Dentre outras coisas, isso implicava o afastamento (ou pelo
menos a tentativa de afastamento) de todo e qualquer juízo de valor, a elevação
da objetividade a norma fundamental, o gosto pela linguagem clara e com
significados precisos, etc.
Essa
explicação inicial é importante porque, sem ela, não seremos capazes de entender
porque Austin deu à sua teoria do Direito às feições que deu. Ao longo de sua
formulação, Austin estava preocupado não somente em fornecer uma descrição do
Direito axiologicamente neutras, mas também em extirpar toda e qualquer noção
metafísica, toda e qualquer ideia abstrata. Tudo com a intenção de evitar que a
cientificidade da abordagem ficasse comprometida, ou que ela acabasse por se
perder em divagações sem sentido, em busca de respostas a perguntas que jamais
poderiam ser respondidas pela própria falta de substancialidade.
Assim,
a teoria de Austin possui um apelo de utilizar, sempre e na maior medida
possível, apenas elementos fáticos, dos quais podemos ter certeza por serem
verificáveis na realidade. Podemos apresentar seu imperativismo sustentado por
dois eixos principais. Em primeiro lugar, que o Direito nada mais é do que um
conjunto de ordens baseadas em ameaça.
Em segundo lugar, que essas ordens são sempre direcionadas por um soberano a um
súdito, sendo que entre este e aquele existe um hábito de obediência.
As
normas que compõem o Direito nada mais são do que ordens, comandos, enunciados
imperativos. Elas sempre nos mandam fazer ou não fazer alguma coisa, como pagar
impostos, não matar, alistar-se nas forças armadas, etc. Aquilo que nos faz cumprir
essas ordens, mesmo que não queiramos, são ameaças de consequências que podem
resultar do descumprimento. No caso de pagar impostos, a ameaça é a execução de
bens. No caso de não matar, a ameaça é o encarceramento. No caso de alistar-se
nas forçar armadas, a ameaça é a multa e a privação de documentos essenciais.
Para cada ordem que o Direito nos apresenta, há sempre uma ou mais ameaças que
nos são apresentadas. Essas ameaças têm como efeito nos fazer obedecer ao que
foi comandado, por medo da dor e dos prejuízos que pode advir do contrário. O
Direito é, portanto, essencialmente fundamentado na coação.
Mas
essas ordens baseadas em ameaça não são dispersas. Tampouco surgem do nada. Na
verdade, todas elas têm uma origem comum. Elas emanam sempre de um soberano, quer diretamente de suas
ordens, quer das ações de alguém a quem ele tenha concedido o poder de agir em
seu nome. Identificamos o soberano, como aquele que é habitualmente obedecido,
mas que não obedece a ninguém. Segundo essa definição, o soberano nem sempre
será uma pessoa especificamente. Nada impede que ele seja um grupo de pessoas,
um parlamento ou um órgão que detém o poder. Em um sistema jurídico, a
contraparte do soberanos são os seus súditos. De forma como dissemos sobre o
soberano, o súdito é aquele que habitualmente obedece àquilo que lhe é
ordenado, mas habitualmente não está em posição de comandar ninguém. O sentido
de habitualmente aqui é que as coisas normalmente acontecem assim. Ou seja, ao
longo do tempo, o fato de se obedecer ao soberano e o fato de ele próprio não
obedecer a ninguém é uma constante.
Vemos,
portanto, que a teoria de Austin confere um papel preponderante à coerção. O
Direito é um conjunto de ordens baseadas em ameaça, emitidas pelo soberano aos
súditos. Os súditos estão sempre à mercê do soberano. Nos capítulo III e IV de
O Conceito de Direito, Hart irá explorar as fragilidades dessa teoria,
atacando, respectivamente, as ideias de ordem baseada em ameaça e de hábito de
obediência. Finalizarei fazendo um esboço do que Hart diz a respeito desses
dois pontos. Para cada um, são apresentados três argumentos. Tentaria
elenca-los de forma sucinta, mas preservando seu conteúdo.
Sobre
ordens baseadas em ameaça.
Primeiro,
Hart aponta que essa noção talvez até se aplique bem às normas de natureza
penal, mas tem muita dificuldade em explicar aquelas normas que criam
permissões e autorizações. Regras como as de formação de contratos, testamentos
e casamentos, por exemplo, são regras que não nos proíbem nem nos obrigam a
fazer algo, mas antes nos dão a possibilidade de fazê-lo e as instruções de
como proceder. Daí porque dificilmente podemos dizer que são normas baseadas em
ameaça.
Segundo,
nas atuais formas de produção do Direito, as normas produzidas se aplicam
inclusive a quem as criou. Quando os congressistas aprovam uma lei que cria um
novo crime, por exemplo, eles próprios são passíveis de serem investigados e
julgados com base nele. Se tentássemos ver nisso uma ordem baseada em ameaça,
chegaríamos à conclusão de que aquele que criou a lei (o congressista) estaria
criando uma ordem com base em ameaça (de não cometer o crime) para ele mesmo.
Ora, não faz sentido algum uma pessoa ameaçar a si própria.
Terceiro,
para que entendamos certo enunciado como uma ordem, precisamos quem o está
emitindo e se essa pessoa é dotada de autoridade para isso. Vemos isso
claramente no dia a dia, quando uma criança se recusa a fazer o que lhe manda
seu irmão mais velho dizendo “você não manda em mim!”. Ocorre que há normas no
Direito que são derivadas de costume. Ora, pela sua própria natureza, é
impossível determinarmos quem foi a pessoa que criou um costume, motivo pelo
qual ele jamais poderia ser remetido ao soberano, e portanto jamais poderia ser
considerado uma ordem baseada em ameaça.
Finalmente,
sobre a ideia de hábito de obediência.
Imaginemos,
diz Hart, um soberano chamado Rex I e seu filho, Rex II. Suponhamos que Rex I
falece e é substituído por Rex II. Uma teoria baseada em hábito de obediência
teria dificuldades em explicar alguns importantes a esse respeito.
Primeiramente, sobre a continuidade das leis. Em situações normais, as leis que
foram criadas por Rex I permaneceriam valendo mesmo depois de sua morte, a não
ser que Rex II decidisse por revoga-las após tomar posse como soberano. No
entanto, se a validade das leis é pautada em hábito de obediência, elas
deveriam ter deixado de valer no momento em que Rex I morreu, já que o hábito
de obediência que existia para com ele também deixou de existir. Não se
explica, portanto, como leis podem valer ainda depois da mudança de soberano. A
explicação, segundo Hart, só poderia ser dada pela existência de uma regra de validade.
Em
segundo lugar, um hábito de obediência não explica como um soberano pode tomar
o lugar de outro. Até a morte de Rex I, Rex II ainda não havia tido
oportunidade de governar, do que se conclui que em relação a ele ainda não
havia nenhum hábito de obediência. Se é assim, porque aqueles que obedeciam a
Rex I deveriam agora obedecer a Rex II. Em seu primeiro dia de reinado, ele
ainda não seria habitualmente obedecido por ninguém. Nesse sentido, não haveria
nada que explicasse a suposto obrigação em passar em obedecer a ele a partir
desse momento. A explicação, diz novamente Hart, só poderia ser dada através de
uma regra de sucessão.
Terceiro
e último, não podemos encontrar, nos sistemas democrático contemporâneos, nada
que nos pareça razoável de descrever como um sistema em que existe hábito de
obediência em relação ao soberano. Mesmo aqueles que detém grandes poderes,
como presidentes, cortes supremas, ministros de estado e líderes de parlamento,
todos eles respondem a alguém pelos seus atos e infrações cometidas. Não há um
posto que esteja isento de qualquer responsabilidade e cujo ocupante esteja
livre para mandar e desmandar o que quiser, quando quiser. Significa dizer que,
nesses sistemas, que são preponderantes e significativos atualmente, não existe
algo comparável a um soberano habitualmente obedecido, tal como Austin parece
descrever.
Algumas
palavra à guisa de conclusão. Depois de tudo isso, Hart nos deixou claro que
não é possível elaborar uma teoria do Direito que seja puramente factual. Toda
explicação baseada apenas na coerção e nas relações de poder empiricamente
verificáveis padeceria de insuficiência e/ou incoerência. Contra Austin,
portanto, uma teoria do Direito plausível não pode se sustentar a menos que
lance mão de conceitos normativos. No caso de Hart, essa transição se dá pela
despedida do conceito de ordem e imperativo para o conceito de regra. O que são
regras para Hart e como elas nos ajudam a entender o Direito será objeto de uma
outra postagem. Nesta, por enquanto, espero ter sido claro.