segunda-feira, 13 de maio de 2019

H.L.A. Hart: Uma Introdução



 A postagem de hoje é dedicada a um dos autores que mais gostei de estudar em teoria do Direito e que até hoje me parece ser o que apresenta os argumentos mais perspicazes com o maior grau de simplicidade: Herbert L. A. Hart (1907-1992). A obra mais importante de Hart para a teoria do Direito foi “O Conceito de Direito”, publicado em 1961, e com insights absolutamente relevantes ainda para os dias atuais. Pretendo fazer, no que se segue, uma exposição geral do projeto de Hart. Mais especificamente, tentarei lançar um pouco de luz sobre o modo como Hart pretende fazer suas análises e a tradição anterior à qual ele está se contrapondo. Em muitos pontos serei breve e não apresentarei a riqueza de detalhes necessária, mas espero que isto possa servir ao menos como uma orientação para quem esteja estudando o assunto pela primeira vez.
No curto prefácio que a obra tem, Hart apresenta sua proposta como uma investigação que possui ao mesmo tempo duas facetas: é uma jurisprudência analítica e uma sociologia descritiva. Vamos começar falando sobre o que podemos entender sobre essas duas coisas.
Herbert Hart (1907-1992)
Jurisprudência aqui consta como tradução de jurisprudence, o nome que se dá à Teoria do Direito em inglês. No sentido em que Hart nos apresenta, jurisprudência analítica é uma abordagem que consiste em identificar e esclarecer os principais conceitos envolvidos no Direito. Conceitos como os de coerção e regra, por exemplo. Esta metodologia não é exatamente uma invenção de Hart, porque já existia em teóricos anglo-saxões anteriores a ele. A preocupação original da jurisprudência analítica é trazer clareza e certeza sobre o que se está dizendo e como devemos compreender os aportes conceituais que o Direito envolve. Sociologia descritiva, por sua vez, não quer dizer aqui que Hart irá se filiar a um método sociológico qualquer. O sentido dessa expressão é mais simples: quer dizer que a análise de Hart pretende também nos proporcionar informações a respeito das práticas sociais que constituem o Direito, os tipos de comportamento e as atitudes envolvidas nos fenômenos jurídicos.
Agora, vejamos como as duas coisas se relacionam.
Na época em que escreveu o livro, Hart estava fortemente influenciado por uma nova forma de fazer filosofia analítica que havia se desenvolvido em Oxford, onde dava aulas, por pensadores que inclusive faziam parte de seus círculos de amizade. Era a chamada filosofia da linguagem comum, ou simplesmente Escola de Oxford. Entre seus principais nomes, podemos encontrar J.L. Austin e Gilbert Ryle. Tal como outras vertentes da filosofia analítica, a filosofia da linguagem comum acreditava que problemas filosóficos poderiam ser melhor e maia apropriadamente solucionados pelo uso de esclarecimentos linguístico-conceituais. Assim, dada uma questão filosófica qualquer, a forma padrão de proceder seria separar cada um dos conceitos importantes que estão envolvido, depois ir delimitando o sentido de cada um deles. Como, para a filosofia analítica em geral, conceitos são primordialmente entidades linguísticas, o sentido do conceito seria dado pela análise da linguagem, até que a problemática fosse solucionada.
No entanto, a Escola de Oxford, sobretudo na figura de J.L. Austin, possuía um grande diferencial, que era a forma como ela enxergava uma relação entre o âmbito linguístico e o âmbito prático. Inspirado fortemente no segundo Wittgenstein (da obra Investigações Filosóficas), Austin vem a romper com o modo tradicional como pensamos a linguagem e a ação. Segundo o que nossas intuições cotidianas tenderiam a nos dizer, ação tem a ver com aquilo que nós fazemos que efetivamente provoca algum tipo de transformação ou mudança real no mundo, que altera o estado de coisas ao nosso redor, como arrumar um cômodo da casa, quebrar um ovo ou participar de um protesto. Já a linguagem seria algo mais relacionado à fala e à escrita, à transmissão de informações e o estabelecimento de comunicações, mas não algo que altere a realidade presente.
J.L. Austin (1911-1960)
Pois bem, aquilo que Austin, bebendo em Wittgenstein, irá propor é exatamente que entre a linguagem e as ações existe uma conexão fundamental. Mais especificamente, a ideia fundamental de Austin que fornece combustível para o pensamento de Hart, é que toda linguagem está sempre conectada com uma prática social. O significado de uma expressão linguística só pode ser extraído a partir da maneira como ela é usada por nós dentro de situações reais. Quando esclarecemos o que determinada palavra significa, não estamos apenas produzindo uma definição tal qual um verbete de um dicionário. Toda explicação a respeito da linguagem invariavelmente nos remete ao tipo de prática com a qual aquela linguagem está associada.
Vamos ver um exemplo para que isso fique mais claro. No falar comum da língua portuguesa, as expressões “rosto” e “cara” indicam uma mesma coisa, normalmente, ou seja, podemos dizer que elas têm uma mesma referência: a face. No entanto, ninguém pode negar que uma coisa é quando se diz “vou dar um beijo no seu rosto” e outra totalmente diferente quando se diz “vou dar soco na sua cara”. Tanto é verdade que, se trocássemos uma palavra pela outra nas duas situações, certamente nos soaria estranho.
A diferença, que nesse caso está seguramente no nível do sentido, diria Austin, só pode ser encontrada na maneira como as duas expressões são efetivamente usadas. “Vou dar um beijo do seu rosto” é um enunciado utilizado em situações que envolvem relações de afeto e carinho, ao passo que “vou dar um soco na sua cara” implica violência e agressão. A primeira serve para nos dirigirmos, normalmente, a pessoas que nos são queridas; a segunda, a pessoas que por alguma razão nos provocam maus sentimentos ou repúdio. Assim, ao explicarmos o que cada uma das duas significa, trazemos à tona as práticas de como e quando as usamos. Da mesma maneira, o motivo pelo qual dizemos que esta ou aquela expressão é racista (como “preto safado”), misógina (como “vadia”) ou preconceituosa, é porque o tipo de práticas e situações em que elas são empregas são situações que colocam determinados indivíduos em posição de inferioridade. São expressões usadas sempre para tratar determinadas pessoas de uma determinada maneira, a saber, colocando-as em posição de inferioridade.
Nesse sentido, conforme Wittgenstein, a linguagem não é apenas uma etiquetagem ou uma forma de representar as coisas do mundo. Ela é, antes de tudo, uma forma de se comportar e reagir perante situações. Disso, Hart tirará a ideia de que, se queremos compreender como o Direito funciona o que são os conceitos que ele emprega, precisamos olhar para as condições e para a maneira como eles são usados na prática. Se queremos saber o que é coerção, devemos nos perguntar “em que situação se diz que alguém foi coagido?”. Se queremos saber o que é uma regra, devemos nos perguntar “em que situação se diz que há uma regra?”. Ou para usar um par de conceitos famosamente analisados por Hart, se queremos saber qual a diferença entre dizer que alguém “foi obrigado” a fazer tal coisa e dizer que alguém “tinha a obrigação” de fazer tal coisa, precisamos nos questionar em que condições dizemos “foi obrigado a” e em que condições dizemos “teve a obrigação de”.
Portanto, a conexão entre a jurisprudência analítica e a sociologia descritiva se dá na medida em que a análise de conceitos nos revela sobre as práticas sociais. A metodologia de Hart é sociológica, vale repetir, não porque ela faça uso da Sociologia enquanto ciência, mas sim porque ela pretende nos explicar de que forma as noções que estão na base do Direito vividas e utilizadas na realidade. O estudo dos conceitos é importante porque é a partir dele que extrairemos informações sobre as práticas. O estudo das práticas é importante porque é isso que faz com que a teoria do Direito se adeque a nossas intuições e não seja excessivamente abstrata.
Dito isso, podemos falar agora sobre a teoria de Hart em contraste com as anteriores adversárias. No primeiro capítulo do livro, Hart diz que prefere deixar de lado a pergunta direta "o que é o direito", e que em vez disso prefere lidar com três outras perguntas que considera os motivos pelos quais temos dificuldade em dizer de forma definitiva o que o direito é. São elas: (1) como a obrigação jurídica se relaciona com e difere da coerção? (2) como a obrigação jurídica se relaciona com e difere da obrigação moral? (3) o que são regras? O que significa dizer que regras existem? Farei agora um comentário que passa pela resposta que dart irá dar para a primeira pergunta e abre caminho para sua resposta à terceira, de modo que a segunda irei comentar em outro momento de forma mais particularizada.
À época em que O Conceito de Direito foi escrito, o pensamento jurídico de matriz anglo-saxã era dominado por uma vertente de positivismo jurídico que podemos chamar aqui de imperativismo. Essa teoria tem suas raízes na tradição utilitarista desenvolvida no século XVIII por Jeremy Bentham e ganhou seus contornos mais definitivos em John Austin (1790-1859). Não confundir este com J.L. Austin, de quem falamos há pouco.
John Austin (1790- 1869)
No contexto em que escreveu sua obra mais importante, The Province of Jurisprudence Determined, Austin estava fortemente influenciado pelos ideias de cientificismo e a crença da razão como fonte última do conhecimento confiável. Era um momento histórico em que as ciências humanas e sociais estavam ainda dando seus primeiros passos, vivendo sempre à sombra do paradigma investigativo das ciências naturais. Acreditava-se que, para que fosse possível de se estudar a história, a cultura, o Direito e a sociedade em geral, seria preciso que os métodos utilizados incorporassem aspectos dos métodos utilizados no estudo dos fenômenos naturais. Dentre outras coisas, isso implicava o afastamento (ou pelo menos a tentativa de afastamento) de todo e qualquer juízo de valor, a elevação da objetividade a norma fundamental, o gosto pela linguagem clara e com significados precisos, etc.
Essa explicação inicial é importante porque, sem ela, não seremos capazes de entender porque Austin deu à sua teoria do Direito às feições que deu. Ao longo de sua formulação, Austin estava preocupado não somente em fornecer uma descrição do Direito axiologicamente neutras, mas também em extirpar toda e qualquer noção metafísica, toda e qualquer ideia abstrata. Tudo com a intenção de evitar que a cientificidade da abordagem ficasse comprometida, ou que ela acabasse por se perder em divagações sem sentido, em busca de respostas a perguntas que jamais poderiam ser respondidas pela própria falta de substancialidade.
Assim, a teoria de Austin possui um apelo de utilizar, sempre e na maior medida possível, apenas elementos fáticos, dos quais podemos ter certeza por serem verificáveis na realidade. Podemos apresentar seu imperativismo sustentado por dois eixos principais. Em primeiro lugar, que o Direito nada mais é do que um conjunto de ordens baseadas em ameaça. Em segundo lugar, que essas ordens são sempre direcionadas por um soberano a um súdito, sendo que entre este e aquele existe um hábito de obediência.
As normas que compõem o Direito nada mais são do que ordens, comandos, enunciados imperativos. Elas sempre nos mandam fazer ou não fazer alguma coisa, como pagar impostos, não matar, alistar-se nas forças armadas, etc. Aquilo que nos faz cumprir essas ordens, mesmo que não queiramos, são ameaças de consequências que podem resultar do descumprimento. No caso de pagar impostos, a ameaça é a execução de bens. No caso de não matar, a ameaça é o encarceramento. No caso de alistar-se nas forçar armadas, a ameaça é a multa e a privação de documentos essenciais. Para cada ordem que o Direito nos apresenta, há sempre uma ou mais ameaças que nos são apresentadas. Essas ameaças têm como efeito nos fazer obedecer ao que foi comandado, por medo da dor e dos prejuízos que pode advir do contrário. O Direito é, portanto, essencialmente fundamentado na coação.
Mas essas ordens baseadas em ameaça não são dispersas. Tampouco surgem do nada. Na verdade, todas elas têm uma origem comum. Elas emanam sempre de um soberano, quer diretamente de suas ordens, quer das ações de alguém a quem ele tenha concedido o poder de agir em seu nome. Identificamos o soberano, como aquele que é habitualmente obedecido, mas que não obedece a ninguém. Segundo essa definição, o soberano nem sempre será uma pessoa especificamente. Nada impede que ele seja um grupo de pessoas, um parlamento ou um órgão que detém o poder. Em um sistema jurídico, a contraparte do soberanos são os seus súditos. De forma como dissemos sobre o soberano, o súdito é aquele que habitualmente obedece àquilo que lhe é ordenado, mas habitualmente não está em posição de comandar ninguém. O sentido de habitualmente aqui é que as coisas normalmente acontecem assim. Ou seja, ao longo do tempo, o fato de se obedecer ao soberano e o fato de ele próprio não obedecer a ninguém é uma constante.
Vemos, portanto, que a teoria de Austin confere um papel preponderante à coerção. O Direito é um conjunto de ordens baseadas em ameaça, emitidas pelo soberano aos súditos. Os súditos estão sempre à mercê do soberano. Nos capítulo III e IV de O Conceito de Direito, Hart irá explorar as fragilidades dessa teoria, atacando, respectivamente, as ideias de ordem baseada em ameaça e de hábito de obediência. Finalizarei fazendo um esboço do que Hart diz a respeito desses dois pontos. Para cada um, são apresentados três argumentos. Tentaria elenca-los de forma sucinta, mas preservando seu conteúdo.
Sobre ordens baseadas em ameaça.
Primeiro, Hart aponta que essa noção talvez até se aplique bem às normas de natureza penal, mas tem muita dificuldade em explicar aquelas normas que criam permissões e autorizações. Regras como as de formação de contratos, testamentos e casamentos, por exemplo, são regras que não nos proíbem nem nos obrigam a fazer algo, mas antes nos dão a possibilidade de fazê-lo e as instruções de como proceder. Daí porque dificilmente podemos dizer que são normas baseadas em ameaça.
Segundo, nas atuais formas de produção do Direito, as normas produzidas se aplicam inclusive a quem as criou. Quando os congressistas aprovam uma lei que cria um novo crime, por exemplo, eles próprios são passíveis de serem investigados e julgados com base nele. Se tentássemos ver nisso uma ordem baseada em ameaça, chegaríamos à conclusão de que aquele que criou a lei (o congressista) estaria criando uma ordem com base em ameaça (de não cometer o crime) para ele mesmo. Ora, não faz sentido algum uma pessoa ameaçar a si própria.
Terceiro, para que entendamos certo enunciado como uma ordem, precisamos quem o está emitindo e se essa pessoa é dotada de autoridade para isso. Vemos isso claramente no dia a dia, quando uma criança se recusa a fazer o que lhe manda seu irmão mais velho dizendo “você não manda em mim!”. Ocorre que há normas no Direito que são derivadas de costume. Ora, pela sua própria natureza, é impossível determinarmos quem foi a pessoa que criou um costume, motivo pelo qual ele jamais poderia ser remetido ao soberano, e portanto jamais poderia ser considerado uma ordem baseada em ameaça.
Finalmente, sobre a ideia de hábito de obediência.
Imaginemos, diz Hart, um soberano chamado Rex I e seu filho, Rex II. Suponhamos que Rex I falece e é substituído por Rex II. Uma teoria baseada em hábito de obediência teria dificuldades em explicar alguns importantes a esse respeito. Primeiramente, sobre a continuidade das leis. Em situações normais, as leis que foram criadas por Rex I permaneceriam valendo mesmo depois de sua morte, a não ser que Rex II decidisse por revoga-las após tomar posse como soberano. No entanto, se a validade das leis é pautada em hábito de obediência, elas deveriam ter deixado de valer no momento em que Rex I morreu, já que o hábito de obediência que existia para com ele também deixou de existir. Não se explica, portanto, como leis podem valer ainda depois da mudança de soberano. A explicação, segundo Hart, só poderia ser dada pela existência de uma regra de validade.
Em segundo lugar, um hábito de obediência não explica como um soberano pode tomar o lugar de outro. Até a morte de Rex I, Rex II ainda não havia tido oportunidade de governar, do que se conclui que em relação a ele ainda não havia nenhum hábito de obediência. Se é assim, porque aqueles que obedeciam a Rex I deveriam agora obedecer a Rex II. Em seu primeiro dia de reinado, ele ainda não seria habitualmente obedecido por ninguém. Nesse sentido, não haveria nada que explicasse a suposto obrigação em passar em obedecer a ele a partir desse momento. A explicação, diz novamente Hart, só poderia ser dada através de uma regra de sucessão.
Terceiro e último, não podemos encontrar, nos sistemas democrático contemporâneos, nada que nos pareça razoável de descrever como um sistema em que existe hábito de obediência em relação ao soberano. Mesmo aqueles que detém grandes poderes, como presidentes, cortes supremas, ministros de estado e líderes de parlamento, todos eles respondem a alguém pelos seus atos e infrações cometidas. Não há um posto que esteja isento de qualquer responsabilidade e cujo ocupante esteja livre para mandar e desmandar o que quiser, quando quiser. Significa dizer que, nesses sistemas, que são preponderantes e significativos atualmente, não existe algo comparável a um soberano habitualmente obedecido, tal como Austin parece descrever.
Algumas palavra à guisa de conclusão. Depois de tudo isso, Hart nos deixou claro que não é possível elaborar uma teoria do Direito que seja puramente factual. Toda explicação baseada apenas na coerção e nas relações de poder empiricamente verificáveis padeceria de insuficiência e/ou incoerência. Contra Austin, portanto, uma teoria do Direito plausível não pode se sustentar a menos que lance mão de conceitos normativos. No caso de Hart, essa transição se dá pela despedida do conceito de ordem e imperativo para o conceito de regra. O que são regras para Hart e como elas nos ajudam a entender o Direito será objeto de uma outra postagem. Nesta, por enquanto, espero ter sido claro.